Maquiavel, pragmático e consequencialista: uma visão optimista da razão em O Príncipe. Texto de João N.S. Almeida.
Em meados de 2016, ao chegar à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa para iniciar o curso de Mestrado em Teoria da Literatura, assisti a um seminário de um outro departamento, onde o tópico de discussão dessa sessão era, entre outros, Maquiavel. Apesar de não conhecer a fundo a obra desse autor, sempre me pareceu, à distância, um pensador complexo, ao contrário da forma como é comummente encarado, fixada no léxico com a expressão «maquiavélico», que tipicamente indica algum tipo de comportamento perverso, exercido de modo sub-reptício, tendo em vista fins considerados, em geral, também como maléficos. Nesse seminário de doutoramento na área da literatura, o autor foi descrito, para meu grande espanto, como um filósofo que louvava o «poder pelo poder»; alguém que quase nem seria um pensador digno desse nome, mas mais uma espécie de sádico, um epifenómeno literário dessas coisas a que chamamos crueldade ou maldade. Apesar de, na altura, a minha leitura de O Príncipe ser muito superficial, achei tal descrição muito suspeita; quando intervi no seminário, indaguei se não se poderia levantar a hipótese da dita obra ser muito simplesmente um manual prático do bem comum. A resposta a essa possibilidade, não só da parte da docente mas também da maioria dos colegas presentes, foi um rotundo não, um não estranho e pouco crítico. Segundo a leitura ali apresentada, Maquiavel, aparentemente, estar-se-ia «nas tintas para o povo». Resignado, calei-me; mas mais do que resignado — ou, talvez, menos do que isso — eu estava espantadíssimo: como seria possível apresentar, neste nível avançado de estudo das humanidades, um pensador como Maquiavel dessa forma tão redondamente simplista, era coisa que me intrigava — na verdade, ainda me intriga, embora já não me incomode tanto. O presente texto, e a apresentação em público para a qual foi inicialmente preparado, é assim como que um exercício de higiene depois desse episódio, mas também uma maneira útil de aproveitar o meu espanto para levantar questões sobre a filosofia de Maquiavel. Se tais questões parecerem redundantes ou anacrónicas, desculpo-me com o facto de pelo menos uma dezena de alunos de doutoramento e uma docente terem lido Maquiavel da maneira tão redutora e errada como descrevi.
Na descrição do autor feita nesse seminário, o que estaria a ser proposto era pensar em Maquiavel como alguém que se comprazeria no exercício do poder e/ou na crueldade que esse exercício implica. Ele veria assim o próprio poder ou o comprazimento no uso do poder como fins em si mesmos. A minha suspeição começa por dever-se, em parte, à grande dificuldade que tenho em atribuir a preponderância de qualidades teleológicas a processos ou objectos cuja definição envolva, à partida, uma espécie de omnipresença substancial. Isto ocorre, por exemplo, com o dinheiro, com o poder, ou com o sexo: é frequente estes conceitos me parecerem simplesmente meios muito universais e muito vastos que se usam para se obterem determinados fins mais precisos, acabando assim por ser uma representação destes, não se tratando de conceitos puramente objectivos. Assim, dei por mim a imaginar: como seria realmente ter o dinheiro, o poder, ou o sexo, como fins em si mesmos? Começando com o dinheiro, esclareçamos o seguinte: dinheiro é um símbolo de outros bens materiais, funcionando autenticamente como uma moeda de troca por outras materializações concretas. Quanto ao poder — o ser em potência, em termos aristotélicos — é um estado que leva naturalmente a actualizações; e parece que apenas no reino da metafísica especulativa se encontram potências pela potência, ou uma possível identidade entre actualização e potência, como proposto pelas concepções do divino em Aristóteles ou S. Tomás de Aquino. Finalmente, quanto ao sexo, uma leitura que o interpretasse como fim em si mesmo seria facilmente deitada abaixo pelas finalidades psíquicas complexas que a emergência do homem psicológico do séc. XX põe em destaque (já para não falar da finalidade muito estrita e muito evidente de criação da vida que é indesmentivelmente comprovada por cada uma das nossas existências).
Assim, olhando para estes conceitos com a devida distância, podemos imaginar como seriam tais meios se fossem pensados e experienciados enquanto fins. No caso do dinheiro, se imaginarmos uma criatura com um apetite pelo próprio dinheiro, ou somente pelas manifestações mais explícitas do conceito, seja na sua forma física (notas, moedas, cheques), ou, mais latamente, riqueza material (pedras preciosas, diamantes) ou, mais abstractamente, dinheiro virtual (notas de crédito, acções, produtos financeiros derivativos), será difícil encontrar uma pessoa, real ou ficcionada, que não associe o dinheiro aos fins a que possa corresponder, ou seja, à actualização dessa potência. Talvez uma excepção pudesse ser encontrada na personagem ficcional do Tio Patinhas, já que a sua forretice incurável e o curioso fetichismo com piscinas de moedas poderia levar-nos a vê-lo como alguém com um desses apetites excêntricos. No entanto, se o fim do Tio Patinhas for, na verdade, a poupança — como eu creio que é — então já não se trata de dinheiro pelo dinheiro, mas de uma representação que o dinheiro faz de segurança financeira projectada no futuro. Quanto ao caso do poder pelo poder, precisaríamos de encontrar uma personagem absolutamente devota da potência e quase inteiramente avessa às suas actualizações (pois, afinal, exercer o poder é perdê-lo). É certo que essas acções que anulem a potencialidade existente podem ter por fim a obtenção de mais poder em esferas conceptuais vizinhas ou superiores. Por exemplo, na emergência do nazismo, uma noite das facas longas destinaria-se-ia a acumular mais poder; mas tais acções do regime tinham como fins um genocídio e um imperialismo territorial e, portanto, podemos encarar o Führer seguramente como um quase vulgar tarado, mas não um tarado exótico do poder pelo poder. Por último, quanto ao sexo pelo sexo, existem de facto diagnósticos clínicos sobre casos de pessoas que têm um apetite desmesurado, irracional e insaciável pela prática sexual, ou seja, tarados. Mas é precisamente nesta terminologia que encontramos a maneira correcta de ver estas coisas: quando falamos de trocar os meios pelos fins estamos, afinal, a falar de taras, e não de quadros psíquicos corriqueiros.
Os diagnósticos psiquiátricos/psicológicos são exemplos bastante explícitos das taras, mas estas não se esgotam aí, pois existem taras perfeitamente inocentes que não chegam a perturbar a vida do seu portador, ou daqueles em seu redor, para merecerem tal atestado. Ser-se louco por chocolates, por touradas ou por jogos de tabuleiro não merecerá, em geral, uma conotação clínica. Mas o fenómeno da tara, mesmo nestes casos inocentes, é sempre algo bastante explícito, distorcendo de tal modo a distinção entre sujeito, desejo e objecto, que se torna difícil de ignorar; e é esse sinal da tara, essa distorção visível, que seria importante procurar na obra de Maquiavel, para sabermos se, de facto, estamos na presença de um mero tarado, ou, pelo contrário, de um pensador com uma complexidade acrescida.
Sendo assim, pretendo abordar, nesta exposição, três pontos distintos, um mais extenso e dois outros pontos mais secundários e abreviados. Em primeiro lugar, como só em circunstâncias muito esdrúxulas é que o poder pode ser considerado um fim por si só, e demonstrar como é que isso não está presente no texto de O Príncipe. Em segundo lugar, já mais distante dessa minha embirração específica, pretendo elaborar um pouco sobre a dependência que a filosofia maquiavelista tem de uma determinação mais exacta do princípio e do fim de um efeito. Por último, bastar-me-á salientar como o pensamento de Maquiavel é de um optimismo exuberante e salutar quanto à capacidade humana de avaliar efeitos e pôr-se um pouco mais perto do juízo divino, provavelmente não como seu igual mas como seu assistente, capaz de confiar mais — e perigosamente — nas capacidades intelectuais para substanciar uma noção de acto humano mais alargada e, consequentemente, tornar mais maleável o juízo moral aplicável às acções.
Ao propor-me à tarefa de encontrar sinais contrários a essa leitura, imaginei que iria ter de procurar muito até encontrar uma descrição inequívoca de como o poder está indissociavelmente ligado à manutenção do reino; mas, ao invés disso, encontrei com grande facilidade a exposição dessa doutrina, de forma bastante explícita em várias partes do texto — o que me leva a crer que só uma leitura ignorante ou mal-intencionada de Maquiavel, ou uma leitura parcial e fora do contexto, pode levar alguém a simplificar o autor do modo que enunciei. De facto, não encontrei as tais distorções evidentes da ligação sujeito-desejo-objecto, mas apenas um calculismo muito meticuloso, destinado unicamente à sobrevivência do estado. É certo que, mesmo assim, a finalidade dessa sobrevivência poderia coabitar com um prazer sádico na crueldade e na perversão; porém, no retrato do governante que Maquiavel propõe, não há nem tempo a perder, nem gosto a ter, com tal comprazimento. A satisfação de um desejo costuma ser acompanhada por uma expressão de prazer, e, no texto de O Príncipe, encontramos sempre essa expressão ligada à sobrevivência do reino. Isto só demonstra como o conhecimento de taras de quem imagina o texto ligado a uma noção como a do poder pelo poder é muito limitado, ou que então terão lido Maquiavel de um modo muito apressado e tendencioso.
Logo nos capítulos iniciais da obra, o autor deixa claro que actos cruéis por si só, sem uma finalidade precisa, podem trazer poder mas não trazem glória. «Still, it cannot be called virtue to kill one’s fellow citizens, to betray allies, to be without faith, without pity, without religion; by these means one can acquire power, but not glory».[1] Poderíamos aqui concluir temporariamente que a glória — seja lá o que isso for — está a ser descrita como uma finalidade superior à do poder; mas, mais à frente, o autor desenvolve o argumento:
I believe that this depends on whether cruelty be badly or well used. Those cruelties are well used (if it is permitted to speak well of evil) that are carried out in a single stroke, done out of necessity to protect oneself, and then are not continued, but are instead converted into the greatest possible benefits for the subjects. Those cruelties are badly used that, although few at the outset, increase with the passing of time instead of disappearing. Those who follow the first method can remedy their standing, both with God and with men, as Agathocles did; the others cannot possibly maintain their positions.[2]
Por si só, talvez estas passagens bastassem para deitar por terra o argumento do poder pelo poder: ao longo de toda a obra, o mal não é descrito como uma prática contínua que se auto-justifique ou que se redunde no comprazimento do governante, mas sim como um instrumento a ser administrado com precisão. Isto acontece, por exemplo, com a necessidade de oprimir as classes menores, que Maquiavel várias vezes prescreve, atribuindo a essa prática uma função meramente utilitária para a continuidade do poder. Tal continuidade, por sua vez, é também descrita como necessária para a obtenção do bem comum, e não como a manifestação de um vício de satisfação pessoal do príncipe.[3] Para ilustrar esta tese, temos, na seguinte passagem, a evidência do carácter anti-cristão, mas não necessariamente perverso, do autor:
Many writers have imagined republics and principalities that have never been seen nor known to exist in reality. For there is such a distance between how one lives and how one ought to live, that anyone who abandons what is done for what ought to be done achieves his downfall rather than his preservation. A man who wishes to profess goodness at all times will come to ruin among so many who are not good. Therefore, it is necessary for a prince who wishes to maintain himself to learn how not to be good, and to use this knowledge or not to use it according to necessity.[4]
Não há dúvida de que estas palavras são calculistas ao ponto daquilo que consideramos como imoralidade; mas não detectamos aqui qualquer comprazimento na crueldade, nem sequer naquela crueldade enquanto prazer puramente intelectual a que o adjectivo maquiavélico dá por vezes expressão.
Muitas destas passagens parecem enraizadas numa visão judaico-cristã do ser humano enquanto criação imperfeita, já que Maquiavel, apesar de não lhe atribuir directamente uma qualificação inerentemente perversa, descreve-o como portador de uma instabilidade emocional baseada em relações de afecto que não permitem o tipo de lealdade suficientemente fiável à manutenção da coisa pública:
But since it is difficult to be both together, it is much safer to be feared than to be loved, when one of the two must be lacking. For one can generally say this about men: they are ungrateful, fickle, simulators and deceivers, avoiders of danger, and greedy for gain. While you work for their benefit they are completely yours, offering you their blood, their property, their lives, and their sons, as I said above, when the need to do so is far away. But when it draws nearer to you, they turn away[5].
O uso da crueldade e do terror pelo príncipe parece destinado precisamente a colmatar essa falha inerente à criatura humana. Aliás, tal instabilidade parece fazer parte da essência não apenas da criatura, mas do próprio mundo; perante isso, o dever do governante é assumir um comportamento moralmente maleável, capaz de se adequar às circunstâncias, sempre com vista à obtenção do bem maior:
Therefore, it is not necessary for a prince to possess all of the above-mentioned qualities, but it is very necessary for him to appear to possess them. Furthermore, I shall dare to assert this: that having them and always observing them is harmful, but appearing to observe them is useful: for instance, to appear merciful, faithful, humane, trustworthy, religious, and to be so; but with his mind disposed in such a way that, should it become necessary not to be so, he will be able and know how to change to the opposite[6].
Se o problema em que Maquiavel se baseia para aconselhar tal postura se trata de um problema de desconcerto do mundo, de uma falibilidade — mas não necessariamente malignidade — inata à matéria, daí decorre que o exercício da manutenção do estado, o exercício da aplicação da ordem a uma substância perenemente instável, implica necessariamente um desequilíbrio moral da parte do agente, já que este está sempre dependente da moral de outros agentes, internos ou externos:
And so, as I said above, if a prince wishes to maintain the state, he is often obliged not to be good, because whenever that group you believe you need to support you is corrupted– whether it be the people, the soldiers, or the nobles– it is to your advantage to follow their inclinations in order to satisfy them, and then good deeds are your enemy[7].
Dado que é o estado que possibilita as condições para o exercício da moral — porque aquele não apenas representa mas legitima a coisa colectiva — a perpetuação da sua existência situa-se como que numa área pré-moral ou meta-moral. Deste modo, as relações de estado não se orientam pelos mesmos princípios que regem a vida comum. Mas Maquiavel não define a falibilidade do homem ou do mundo como tendendo em absoluto para o caos, e, por conseguinte, também não prescreve que o governante actue, em contraponto, como agente portador de uma impulsividade arbitrária; a sua concepção da perversão humana não é absolutamente negativa, já que a categoriza como previsível, e acrescenta que os homens raramente a exercem até ao ponto do absurdo:
But when the prince declares himself energetically in favour of one side, if the one with whom you have joined wins, he has an obligation towards you and there exists a bond of affection between you, although he may be powerful and you may be left in his power. Men are never so dishonest that they will repress an ally with such a flagrant display of ingratitude[8].
Bastar-nos-iam estes apontamentos para percebermos quão errada seria uma descrição de comprazimento na crueldade, ou da manutenção do estado para engrandecimento pessoal egomaníaco, que estivesse eventualmente presente no texto de O Principe. Além disso, uma consulta breve pela principal crítica maquiavelista tornaria também evidente como a aceitação dessas ideias é muito limitada. Maurizio Viroli, por exemplo, em Machiavelli, numa análise muito elogiosa do autor, descreve como O Príncipe não é um tratado científico — já que, por exemplo, não rejeita conceitos como a fortuna e o sobrenatural — nem é um tratado moral destinado ao público em geral, mas sim mais especificamente uma obra epistolar, dirigida ao Duque Lorenzo de Medici — ao contrário de Os Discursos, que é dirigido aos cidadãos. Esta qualidade epistolar representa, total ou parcialmente, uma tradição que é oposta ao tratado científico, já que o seu estilo deriva da tradição da retórica clássica e não de todo do argumento lógico moderno. Viroli vê também o conceito de virtú, tão presente na obra do autor, não como sinónimo de nobreza moral, numa visão inteiramente benigna, nem como impulso de raiz predatória, numa visão moralmente mais censurável, mas antes como um traço de carácter, de manifestações variadas, necessário à ordem e ao cumprimento das leis da república. Assim, Viroli descreve:
The image of the political leader, and more generally of the citizen involved in political deliberations, is very different from the stereotype of the cruel, cunning, deceitful, and ambitious man that bigots and bad scholars have attributed to him. The political man is for Maquiavel a magnanimous soul who commits himself, or herself, to goals that go beyond the horizon of self-interest, or family, or social group, but encompass the entire political community, the republic at large[9].
Leo Strauss, outro crítico, em Thoughts on Machiavelli, aceita a ideia de Maquiavel como «professor do mal», pressupondo que o exercício de alguma perversão é sempre necessário à administração do estado; mas essa perspectiva, segundo Harvey C. Mansfield,[10] apenas dá como adquirido que não iremos encontrar em Maquiavel a moral unidimensional da herança platónica e cristã. Strauss descreve a nossa impressão da maldade no autor como um preâmbulo necessário a compreender e também a transcender a sua filosofia, um pouco à semelhança da escada que se deita fora no final do Tractatus de Wittgenstein. Assim, não é certo que a reputação do maquiavelismo como uma doutrina da perversão seja uma falsidade, e talvez nem sequer um exagero, mas apenas uma leitura errónea e incompleta, se deixada no ponto das classificações morais substanciais e definitivas.
Por ora, podemos perceber o que Maquiavel não é. Já vimos que não é um sádico. O Príncipe também não parece ser uma sátira ou uma ironia, já que para Maquiavel a perversão é sempre explicitamente pensada como tendo em fim a manutenção da rede de segurança do estado. Além disso, a exposição da perversão é sempre literal, ou seja, não se trata de uma metáfora, algo que significasse simbolicamente uma outra coisa, mas sim de um epifenómeno do verdadeiro fim, a manutenção do estado. E a obra também não é uma exortação a Lorenzo de Médicis, apesar de lhe ser dirigida, pois algumas das passagens contradizem a prática da sua própria governação. Assim, Viroli conclui que O Príncipe não deve ser lido como um tratado moral — um erro que deriva tanto da Inglaterra puritana como da França moralista — mas sim, a par de Cícero, como um ensaio sobre a arte do estado, na tradição dos livros de príncipes. Mesmo assim, o pensamento intensamente original do autor não deixa de exercer, pelo menos parcialmente, uma crítica a Cícero, já que Maquiavel não equivale actos honestos a actos úteis, ao contrário do autor romano.
Passando agora a abordar mais especificamente o conceito de virtú em O Príncipe, vemos como este não é equivalente à virtude moral cristã, mas, segundo os críticos, mais próximo de uma raiz clássica, embora não se esgote nessa leitura. É uma virtú que parece ainda parcialmente alicerçada numa ética metafísica, ou seja, não depende apenas das consequências práticas; mas o idealismo de Maquiavel não é muito estrito, e rejeita em absoluto quadros morais puritanos que resultassem numa inacção com piores consequências do que a acção, mesmo que se trate de uma acção substancialmente perversa. Assim, apesar deste contraste entre uma virtú idealista e a virtú prática de Maquiavel, esta assemelha-se, mesmo assim, a uma ética mais idealista, não sendo exactamente idêntica a nível substancial, mas simplesmente coincidindo com aquela que seria a posição de uma ética tradicionalmente cristã. Por exemplo, na parte final da obra, mais dedicada à táctica militar objectiva, Maquiavel explica como o uso de mercenários como soldados não é tipicamente um acto virtuoso, não devido à falta de virtú idealista quer desse acto, quer dos mercenários individualmente, mas precisamente devido a uma consequência prática: a fraca fiabilidade desse tipo de soldados:
He has preferred to lose with his own troops rather than to win with those of others, judging that to be no true victory which has been gained by means of foreign troops. […] If a prince holds on to his state by means of mercenary armies, he will never be stable or secure. Mercenaries are disunited, ambitious, undisciplined, and disloyal. They are brave with their friends; with their enemies, they are cowards. They have no fear of God, and they keep no faith with men. Their ruin is deferred only so long as an attack is deferred. In peacetime you are plundered by them, in war by your enemies. The reason for this is that they have no other love nor other motive to keep them in the field than a meagre salary, which is not enough to make them want to die for you. They love being your soldiers when you are not waging war, but when war comes, they either flee or desert.[11]
Assim, se alguma da ética clássica e da moral escolástica medieval exigem que cada acto temporal e terreno seja uma imitação de um acto puro celeste, Maquiavel nega claramente a necessidade de tal equivalência; apesar disso, o seu pensamento tende quase para consubstanciar as duas esferas, já que a razão de princípio se confunde muitas vezes com a razão prática, como no exemplo anteriormente citado. Ao afastar-se da simplicidade de um binómio bem/mal, ou divino/telúrico, Maquiavel acrescenta-lhe uma complexidade: a liberdade intelectual humana para calcular os efeitos do acto, não incluindo assim a nossa percepção do acto, enquanto fenómeno delimitado num curto espaço de tempo, numa visão substancialista. Todo o conteúdo prescritivo de O Príncipe pode ser justificado deste modo: enunciam-se actos cujo efeito imediato é perverso mas cuja virtude do efeito, a longo prazo, em muito excede a perversidade inicial. E isto antecede, de modo claro, muito do foco sobre os efeitos trazido pela filosofia moderna, quer a nível da filosofia da ética, como no utilitarismo ou no consequencialismo, quer a nível da filosofia do conhecimento, como no pragmatismo.
Assim, é com essa noção de uma virtude moldada às circunstâncias, adaptada à esfera terrestre e não ao paraíso cristão, que Maquiavel conclui O Príncipe, numa passagem que irei citar por três razões distintas: a ressalva da liberdade humana, o optimismo perante o casamento entre essa liberdade e o desconcerto inerente ao mundo, e a visão de um estado de coisas negativo como necessário à produção de estados positivos superiores:
Nevertheless, in order not to wipe out our free will, I consider it to be true that Fortune is the arbiter of one half of our actions, but that she still leaves the control of the other half, or almost that, to us.I also believe that the man who adapts his method of procedure to the nature of the times will prosper, and likewise, that the man who establishes his procedures out of tune with the times will come to grief. I therefore conclude that, since Fortune varies and men remain obstinate in their ways, men prosper when the two are in harmony and fail to prosper when they are not in accord. And if, as I said, it was necessary for the people of Israel to be enslaved in Egypt to make known the virtue of Moses, and it was necessary for the Persians to be oppressed by the Medes to make known the greatness of spirit in Cyrus, and it was necessary for the Athenians to be scattered to make known the excellence of Theseus, then at present, to make known the virtue of an Italian spirit, it was necessary for Italy to be reduced to her present conditions, and that she be more enslaved than the Hebrews, more servile than the Persians, and more scattered than the Athenians: without a leader, without order, beaten, despoiled, ripped apart, overrun, and having suffered every sort of ruin.[12]
A partir destes pontos, torna-se evidente como é possível descrever Maquiavel tanto como um consequencialista precoce, ou uma espécie de proto-pragmático. Qualquer uma destas hipóteses parece bastante promissora a partir de vários pontos até agora levantados, aos quais acrescento as seguintes passagens, onde o autor descreve o benefício da perversidade aplicada na medida certa (envolvendo, assim, um cálculo subjectivo), a desvantagem comparativa da inacção (que assume, num calculismo pró-indivíduo, o papel decisivo do homem enquanto agente) e uma referência específica ao resultado final (que, mesmo assim, é generalista e aponta para um estado de coisas, não para um evento específico):
Therefore, a prince must not worry about the infamy of being considered cruel when it is a matter of keeping his subjects united and loyal. With a very few examples of cruelty, he will prove more compassionate than those who, out of excessive mercy, permit disorders to continue from which arise murders and plundering, for these usually injure the entire community, while the executions ordered by the prince injure specific individuals. […] In the actions of all men, and especially of princes, where there is no tribunal to which to appeal, one must consider the final result.[13]
Se o consequencialismo do pensamento de Maquiavel puder de facto ser descrito como uma filosofia do conhecimento proto-pragmática – e, adicionalmente, a nível da filosofia da ética, a virtú que leva ao bem comum estiver dependente dos efeitos – torna-se necessário perceber como se calculam os efeitos resultantes do acto e em que é que difere esse objecto-acto-efeito do tradicional objecto-acto-substância da moral cristã.
Na famosa passagem de Charles Sanders-Pierce frequentemente citada como definição da epistemologia pragmática, encontramos uma definição de objecto epistemológico que inclui os efeitos práticos decorrentes da sua existência, mas isto não deixa claro nem qual a diferença entre um «efeito prático» e um «efeito não prático», nem qual deve ser a delimitação daquilo que consideramos ser um efeito prático.[14] Neste quadro, as coisas não são tão simples como na lógica aristotélica ou na física newtoniana, onde é possível simplificar o mecanicismo da acção causal até ao ponto em que entendemos que o efeito prático cessa — quando, por exemplo, numa mesa de bilhar, a bola pára de se mover. Nessa esfera, uma tal descrição simplificada pode ser aceitável, apesar do movimento ter ainda reacções físicas que se lhe sucedem, não perceptíveis, além de efeitos mentais sobre os sujeitos que observarem a acção, por exemplo. Se aplicarmos à acção política esta mesma fórmula de causalidade física simples, a nossa concepção sobre a sua consequência terá de estar limitada àquilo que for empiricamente verificável já não a curto prazo — seria difícil exigir em política resultados tão imediatos como a acção de uma bola de bilhar sobre outra — mas sim a médio prazo; e é aqui que a diferença entre a ética de Maquiavel e a ética clássica e judaico-cristã mais sobressai. Nestas, um acto é substancialmente bom ou mau: o homem responde à acção com a reacção e deixa o resto a cargo da Providência; a moral maquiavelista vai além disso, já que eleva os limites da intervenção humana até mais perto da providência divina, e, de certo modo, redime o papel do acto telúrico, atribuindo ao homem a capacidade pseudo-omnisciente de julgar a benignidade dos seus actos não através da sua essência pré-determinada mas através da concepção temporalmente extensível dos seu efeitos. Porém, a diferença entre a consideração a curto prazo, mais próxima de uma natureza substancial do juízo moral, e a consideração a médio prazo, que inclui alguns, mas não todos, dos efeitos proporcionados pela existência/acção do objecto, é uma diferença de grau e não de espécie, já que o juízo moral aplica-se não sobre um objecto substancialmente diferente, mas sobre um alargamento da concepção desse objecto.
Ao contrário disso, nos sistemas platónicos — entre os quais podemos incluir o cristianismo — não há um prolongamento significativo do cálculo da consequência, a menos que consideremos o substancialismo da atribuição prévia de valor moral como uma espécie de cálculo por estimativa. Assim, é curioso como o platonismo, apesar de alicerçado em princípios metafísicos, na prática se aproxime mais de uma escala humana, já que é mais simples atribuir valor moral a partir de arquétipos que não envolvam um calculismo empírico complexo. Por outro lado, no proto-pragmatismo de Maquiavel, a concepção da totalidade do acto, que, ao incluir os seus efeitos, pode ser demasiado vasta e quase indeterminável, acaba por correr o risco de se inserir numa escala quase supra-humana, em que critérios irremediavelmente arbitrários definem os limites da nossa concepção do objecto. Assim, ao ultrapassar as consequências empíricas verificáveis apenas no imediato e permitir o alargamento do génio humano à consideração de efeitos mais distantes, Maquiavel — e as escolas filosóficas sucedâneas — acabam por se aproximar, curiosamente, de um idealismo ainda mais ousado do que o idealismo puramente essencialista da moralidade cristã: enquanto a moralidade idealista, de raiz platónica e metafísica, acaba por resultar numa aplicação mais visível, de efeito prático, ready-made e pronta-a-vestir, uma moral pragmática resulta em aplicações que parecem ser mais inconcebíveis para a escala humana, já que a estimativa das consequências do acto é feita a partir de dados empíricos que são necessariamente limitados. Por isso, tanto o proto-pragmatismo de Maquiavel como a filosofia do pragmatismo em si mesma não podem deixar de contar, também, com uma metafísica: já que a rede causal disposta defronte do sujeito colapsa para a sua parte perceptível e calculável, o resultado são representações mentais assumidamente incompletas, dependentes de uma teoria da correspondência imperfeita que precisa assim de um pressuposto metafísico para merecer credibilidade perante o sujeito.
As consequências deste hipotético pragmatismo em Maquiavel para uma filosofia da ética são mais claras; enquanto que uma leitura proto-pragmática das suas ideias implica impor ao autor um sistema epistemológico que não está explícito no texto de O Príncipe, no terreno da filosofia da ética; pelo contrário, o autor deixa perfeitamente claro como esta se define precisamente através desse calculismo consequencialista. Parece, no entanto, que o autor se distingue do utilitarismo de Jeremy Bentham, John Stuart Mill e Henry Sidgwick, e da teoria consequencialista em Elizabeth Anscombe, pois parece manter aspectos normativos na sua noção de justiça, de virtú e de ética política. Por exemplo, Maquiavel permanece fiel à noção de coesão social, à capacidade de resolução do indivíduo, e também considera a governação do estado como um fim supremo, não tendo necessidade de o justificar com nenhuma teoria meta-política. Enquanto Anscombe modifica o utilitarismo clássico com um ênfase na capacidade e no dever humano de prever as consequências dos actos até à medida do possível, alicerçando o juízo moral não só a partir desse âmbito limitado da acção e da intelectualidade humana, mas também num quadro assumidamente judaico-cristão que não põe em questão uma aplicação absolutista do binómio bem/mal a certas acções, Maquiavel parece assumir diferentes prerrogativas na sua justificação do estado e do governante como responsável pela coesão e pela acção correcta do estado enquanto gestor da coisa colectiva. Isto alarga a liberdade de acção do actor político para transpor fronteiras da moral tradicional e substancialista e pensar a manutenção da esfera pré-moral ou meta-moral do estado como superior quer a uma moral substancialista quer a uma moral consequencialista, alicerçando assim o seu pensamento numa normatividade que não passa necessariamente nem pelo utilitarismo conceptualmente confuso de Bentham e Mill, em que o conflito entre o interesse geral e o interesse particular nunca é resolvido de modo satisfatório, nem passa também pela distinção acrescida entre consequências previstas e não-previstas introduzida por Anscombe (embora se aproxime mais desse pensamento). Maquiavel permanece com um sistema de valores e de ética baseado em princípios simples como o da virtú individual e a primazia do estado, distinguindo porém a ética aplicada aos gentios da ética aplicável ao governante; aparentemente, enquanto o homem comum está sujeito às leis aplicáveis ao mundo terreno, substanciadas provavelmente por um fundamento divino, o governante não se encontra na mesma esfera, pois é ele que alicerça a aplicação da existência do estado, que é, como já vimos, condição necessária à existência de quadros morais no mundo terreno; assim, não é propriamente um sujeito extra-ético, mas é-lhe aplicada uma ética diferente, mais maleável, mais pragmática e mais consequencialista.
Para concluir, como já vimos, o conceito de acto e de efeito em Maquiavel parecem muito diferentes do pensamento anterior à modernidade, e antecedem claramente algumas das tendências da filosofia contemporânea, como o foco nos efeitos; mas, mesmo assim, o autor não parece colocar inteiramente de parte uma metafísica de que depende a sua filosofia. A diferença para com as éticas clássicas e cristãs, em termos sumários, é significativa: se em Maquiavel é possível prever consequências benignas a médio e longo prazo, mesmo de uma acção perversa, e atribuir a partir daí valor moral, no platonismo e no cristianismo a acção inclui apenas efeitos de curto alcance, ou chega mesmo a não os incluir de todo, numa concepção absolutamente substantiva do acto como cópia da forma platónica ou do acto puro divino. Enquanto a moral cristã entende o acto como uma unidade simplificada, mais próxima da forma platónica e da sua repetição no mundo da matéria, na moral proto-pragmática de Maquiavel a unidade da acção dissipa-se na extensão dos seus efeitos, o que pode acabar por correr o risco de destruir o seu valor moral substancialista. O summun bonnum, um bem comum, em Maquiavel, é perfeitamente concebível, e parece mesmo alicerçar muitas das premissas que sustentam o seu pensamento; mas a sua obtenção poderá estar muito distante de uma concepção imediatista da acção, correndo assim o risco de ser dissolvido nas perversões contingentes que são exigidas. No entanto, como já assinalei, Maquiavel admite essa licença à razão humana, o que não deixa também de ser exemplarmente optimista.
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- Machiavelli, Niccolò. The Prince. Ed. Peter Bondanella, Oxford University Press, 2005, p. 84. ↑
- Id, Ibid, p. 86. ↑
- Vd., p. ex., Ibid, pp. 88-89. ↑
- Ibid, p. 106. ↑
- Ibid, p. 113. ↑
- Ibid, p. 116. ↑
- Ibid, p. 117. ↑
- Ibid, p. 130. ↑
- Viroli, Maurizio. Machiavelli. Oxford University Press, 1998. p. 147. ↑
- «Strauss, then, accepts the distinction between Maquiavelanism and Maquiavel, but believes it necessary to begin with Maquiavelanism in order to ascend from it.» (Mansfield 1975:378) ↑
- Machiavelli, p. 93. ↑
- Ibid, p. 87. ↑
- Ibid, pp. 112-116. ↑
- “Consider what effects, which might conceivably have practical bearings, we conceive the object of our conception to have. Then, our conception of those effects is the whole of our conception of the object. (EP1: 132)” ↑