Nanoestruturas de Celulose: Aplicações Tecnológicas Emergentes

Texto de Ana Catarina Trindade, CENIMAT|i3N, Department of Materials Science, School of Science and Technology, NOVA, University Lisbon and CEMOP/UNINOVA, Caparica, Portugal e Universidade Atlântica e ESSATLA – Escola Superior de Saúde Atlântica, Fábrica da Pólvora de Barcarena, Portugal.

A natureza é uma rica fonte de inspiração para a ciência dos materiais, graças à evolução e à seleção natural. Ao longo do tempo, a vida na Terra desenvolveu uma vasta gama de moléculas e materiais multifuncionais, cada um com propriedades únicas. Dos animais às plantas, dos sistemas naturais às estruturas microscópicas, podem destacar-se uma variedade impressionante de funções distintas. Por exemplo, podemos observar a coleta direcional de água em teias de aranha molhadas, as propriedades antiembaçamento nos olhos dos mosquitos, a captura de água e a desaceleração das asas dos besouros, a variedade de cores nas asas de borboletas e a super hidrofobicidade e baixa adesão nas folhas de lótus. [1]

Recentemente, as cores estruturais têm recebido uma atenção especial em diversas áreas de pesquisa e investigação, devido às intrincadas interações entre a luz e as sofisticadas microestruturas presentes no mundo natural. [2] Esse fenómeno serve como base para algumas das mais impressionantes exibições de cores na natureza, como as observadas em borboletas, mariposas, besouros, escaravelhos, pássaros, peixes, plantas e frutas (conforme exemplos na Figura 1). Um exemplo clássico dessa coloração é encontrado nas asas da borboleta Morpho blue, onde a presença de estruturas lamelares nas suas cristas resulta numa forte reflexão num comprimento de onda específico. [3]

Figura 1 – Exemplos de côr estrutural na natureza: (a) Pollia condensata [4]; (b) escaravelho Dogbane [5]; (c) Penas do pavão [6]; (d) Borboleta Blue Morpho [7].

O interesse crescente no desenvolvimento de materiais ambientalmente sustentáveis, impulsionado pelo esgotamento dos recursos derivados do petróleo e pelos problemas ambientais, como o aquecimento global, tem destacado os materiais de base biológica como alternativas viáveis. A celulose, o composto orgânico renovável mais abundante na Terra, desponta como um polímero natural sustentável fascinante e praticamente inesgotável, amplamente utilizado em diversas aplicações do dia-a-dia. As suas inúmeras vantagens, como disponibilidade, baixo custo, baixa densidade, não toxicidade, biocompatibilidade e biodegradabilidade, tornam a celulose uma escolha atraente em uma ampla gama de setores, incluindo a indústria automóvel, de construção, eletrónica, desportiva e de lazer. [9] Além disso, a celulose é considerada uma alternativa aos polímeros à base de combustíveis fósseis. Mais recentemente, descobriu-se que a celulose é um material ecológico ideal para imitar micro e nanoestruturas periódicas que produzem iridiscência e coloração estrutural. [10] Originada na parede celular de plantas, algas, bactérias e alguns animais marinhos (como os tunicados), a celulose é uma cadeia principal de polímeros composta por unidades de β-glicose alternadamente invertidas a 180°, formando um polímero de cadeia principal por meio de ligações glicosídicas 1,4 formadas através de uma reação de condensação. As cadeias são estabilizadas lateralmente por ligações de hidrogénio, formando microfibrilas que são agrupadas em regiões cristalinas e desordenadas (Figura 2). Essas microfibrilas organizam-se em macrofibras e fibras, formando estruturas hierárquicas auto-organizadas. [11] O grau médio de polimerização () da celulose varia conforme a fonte, sendo aproximadamente 10.000 para celulose extraída da madeira e 15.000 para celulose extraída da lã. [12]

Figura 2 – (a) Estrutura química da celobiose, a unidade de repetição da celulose.
(b) Representação esquemática de uma cadeia de celulose, mostrando regiões amorfas e cristalinas.

O avanço da nanotecnologia, juntamente com o crescente interesse em materiais ecológicos de base biológica, tem suscitado grande interesse na nanocelulose. Ao ser reduzida para a escala nanométrica, a nanocelulose expande significativamente o leque de aplicações em que a celulose pode ser utilizada. Estes nanocristais de celulose apresentam diversas vantagens, incluindo rigidez combinada com baixo peso, uma relação área-volume extremamente alta, propriedades mecânicas impressionantes (conhecida como “nano resistência”), biodegradabilidade, baixa densidade (1,6 g.cm-3) e uma superfície reativa com grupos laterais hidroxilo, –OH, que facilitam a ligação de outros grupos funcionais, possibilitando a obtenção de diferentes propriedades de superfície. [11] Além disso, sendo um material nanoestruturado, a nanocelulose possui uma série de benefícios adicionais: é amplamente disponível em escala industrial, renovável, economicamente viável, ecologicamente amigável, biocompatível e não tóxica. Portanto, as propriedades químicas, ópticas e elétricas dos nanocristais de celulose (NCCs) têm inspirado investigações biomiméticas, visando a obtenção de materiais com propriedades semelhantes às encontradas na natureza. [8], [13]

Os nanocristais de celulose são obtidos por meio da remoção das regiões amorfas da cadeia principal, mantendo intactas a maior parte das regiões cristalinas. Esse processo de produção dos NCCs a partir das moléculas de celulose ocorre em duas etapas distintas (conforme mostrado na Figura 3): na primeira etapa, ocorre um processo químico ou enzimático que envolve a remoção da lignina e da hemicelulose presentes nas fibras, resultando no isolamento da celulose purificada, livre de impurezas; na segunda etapa, os cristais de celulose são extraídos da matriz amorfa por meio de hidrólise ácida. As dimensões geométricas dos nanocristais de celulose, como comprimento e largura, variam e dependem da origem das microfibrilas de celulose e das condições da hidrólise ácida, como tempo e temperatura. [8]

A extração de nanocristais de celulose por hidrólise ácida resulta numa suspensão composta por nanorods. [15] Acima de uma concentração crítica e sob condições adequadas, os nanocristais de celulose se auto-organizam na suspensão e formam uma fase líquida cristalina nemática quiral, devido à sua forma de haste. [16] Esse fenómeno foi observado pela primeira vez na produção de suspensões estáveis de cristais de celulose de tamanho coloidal por hidrólise com ácido sulfúrico de madeira e celulose de algodão em 1949. [17] O esquema apresentado na Figura 3 ilustra a forma helicoidal como os nanocristais de celulose se auto-organizam ao longo de seu eixo colestérico. O passo colestérico (pitch, P) é, por definição, a distância para uma revolução de 360°. Esse passo da hélice colestérica, formado pelo ordenamento orientacional das moléculas, é comparável à faixa de luz visível onde dispersará ou refletirá luz iridescente, e pode ser estimado usando a equação de de Vries. Por outras palavras, a cor da luz dispersada e, consequentemente, a produção de um efeito cromático, são comparáveis ao comprimento de onda da luz.

Quando o solvente é evaporado, esse arranjo colestérico pode ser “congelado” ou mantido, o que resulta em filmes sólidos preparados a partir de nanocristais de celulose com notáveis propriedades ópticas, como iridescência, reflexão seletiva de luz polarizada circularmente à esquerda e transmissão de luz polarizada circularmente à direita. [18] Fernandes et al. relataram que as propriedades mecânicas e ópticas de filmes finos celulósicos transparentes micrométricos podem ser ajustadas modificando as características do cristal líquido precursor do sistema e adicionando nanocristais de celulose. [19] Foram observados filmes celulósicos iridescentes, com propriedades mecânicas e estruturais de cor sintonizáveis, que imitam as estruturas encontradas em pétalas de algumas flores, cuja coloração é resultado do arranjo estrutural helicoidal em nanoescala.

Figura 3 – Representação esquemática da ordem quiral nemática apresentada pelas nanopartículas de celulose, demonstrando a dependência da estrutura e propriedades dos NCCs nas condições experimentais da sua produção. A equação de de Vries é representada como: θ – ângulo de incidência; λ – comprimento de onda da luz refletida; n – índice de refração médio da amostra; P – passo do colestérico (“pitch“).

A Figura 4 apresenta uma fotografia de alguns filmes finos celulósicos com coloração estrutural obtidos a partir de suspensões de nanocristais de celulose em água, além de uma imagem de microscopia eletrónica de varrimento (SEM) da seção transversal de um desses filmes, revelando a organização em estrutura helicoidal. Vale ressaltar que as suspensões colestéricas de nanocristais de celulose sempre apresentam uma estrutura helicoidal esquerda, enquanto nenhum arranjo helicoidal direito foi encontrado até o momento. [20]

Todos estes estudos demonstram que é viável a obtenção de materiais coloridos biodegradáveis, sustentáveis e economicamente viáveis a partir de suspensões de nanocristais de celulose em água. Além disso, a afinação da tonalidade será responsável pela coloração característica dos filmes sólidos obtidos a partir da suspensão de NCCs-água.

Figura 4 – a) Filmes finos celulósicos com coloração estrutural, provenientes de suspensões
líquido-cristalinas de nanocristais de celulose. b) Imagem da seção transversal de um desses filmes, capturada por microscopia eletrónica de varrimento (SEM), revelando a estrutura helicoidal esquerda.

Referências Bibiográficas:

[1] Z. Ha, M. Yang, B. Li, Z. Mu, S. Niu, J. Zhang and X. Yang, “Excellent structure-based multifunction of morpho butterfly wings: A review”, J. Bionic Eng., vol. 12, no. 2, pp. 170–189, 2015.

[2] S. Kinoshita, “Structural Colors in the Realm of Nature”, Front Matter, vol. 136, no. 1. Singapore: World Scientific Publishing Co. Pte. Ltd., 2008.

[3] S. Tadepalli, J.M. Slocik, M.K. Gupta, R.R. Naik, and S. Singamaneni, “Bio-Optics and Bio-Inspired Optical Materials”, Chem. Rev., vol. 117, no. 20, pp. 12705–12763, 2017.

[4] “Pollia condensata” [Online] Disponível: https://funflowerfacts.wordpress.com/2013/01/23/the-worlds-shiniest-plant-the-pollia-condensata/ [Acessado: 25-Março-2024]

[5] “Dogbane Beetle.” [Online]. Disponível: https://bugoftheweek.com/blog/2016/7/18/one-gorgeous-beetle-dogbane-leaf-beetle-ichrysochus-auratusi. [Accessado: 25-Março-2024].

[6] “Peacock Feathers.” [Online]. Disponível: https://pixabay.com/images/search/peacock
%20feathers/ [Accessado: 25-Março-2024].

[7] “Morpho Butterfly.” [Online]. Disponível: https://pixabay.com/images/search/blue%20morpho%20butterfly/ [Accessado: 25-Março-2024].

[8] J. George and S.N. Sabapathi, “Cellulose nanocrystals: Synthesis, functional properties, and applications”, Nanotechnol. Sci. Appl., vol. 8, pp. 45–54, 2015.

[9] J.P. Borges, J.P. Canejo, S.N. Fernandes, P. Brogueira, and M.H. Godinho, “Cellulose-Based Liquid Crystalline Composite Systems”, Nanocellulose Polym. Nanocomposites Fundam. Appl., vol. 9781118871, pp. 215–235, 2014.

[10] A.G. Dumanli, A.G. Dumanli, G. Kamita, J. Landman, H. van der Kooij, B.J. Glover, J.J. Baumberg, U. Steiner and S. Vignolini, “Controlled, bio-inspired selfassembly of cellulose-based chiral reflectors”, Adv. Opt. Mater., vol. 2, no. 7, pp. 646–650, 2014.

[11] M. Kaushik, C. Fraschini, G. Chauve, J.-L. Putaux, and A. Moores, “Transmission Electron Microscopy for the Characterization of Cellulose Nanocrystals”, Transm. Electron Microsc. – Theory Appl., 2015.

[12] G. Siqueira, J. Bras, and A. Dufresne, “Cellulosic bionanocomposites: A review of preparation, properties and applications”, Polymers (Basel)., vol. 2, no. 4, pp. 728–765, 2010.

[13] M. Shishehbor and P.D. Zavattieri, “Effects of interface properties on the mechanical properties of bio-inspired cellulose nanocrystal (CNC)-based materials”, J. Mech. Phys. Solids, vol. 124, pp. 871–896, 2019.

[14] H. Kargarzadeh, M. Ioelovich, I. Ahmad, S. Thomas and A. Dufresne, “Methods for Extraction of Nanocellulose from Various Sources”, Handb. Nanocellulose Cellul. Nanocomposites, pp. 1–49, 2017.

[15] M.S. Reid, M. Villalobos, and E.D. Cranston, “Benchmarking Cellulose Nanocrystals: From the Laboratory to Industrial Production”, Langmuir, vol. 33, no. 7, pp. 1583–1598, 2017.

[16] U. Gill, “Mechanical Properties of Cellulose Nanocrystal Thin Films,” 2017.

[17] S. Beck-Candanedo, M. Roman, and D.G. Gray, “Effect of reaction conditions on the properties and behavior of wood cellulose nanocrystal suspensions”, Biomacromolecules, vol. 6, no. 2, pp. 1048–1054, 2005.

[18] S.N. Fernandes, P.L. Almeida, N. Monge, L.E. Aguirre, D. Reis, C.L.P. de Oliveira, A.M.F. Neto, P. Pieranski and M.H. Godinho, “Mind the Microgap in Iridescent Cellulose Nanocrystal Film”, Adv. Mater., vol. 29, no. 2, 2017.

[19] S.N. Fernandes, Y. Geng, S. Vignolini, B.J. Glover, A.C. Trindade, J.P. Canejo, P.L. Almeida, P. Brogueira and M.H. Godinho “Structural Color and Iridescence in Transparent Sheared Cellulosic Films”, Macromol. Chem. Phys., vol. 214, no. 1, pp. 25–32, 2012.

[20] A.P.C. Almeida, J.P. Canejo, S.N. Fernandes, C. Echeverria, P.L. Almeida, and M.H. Godinho, “Cellulose-Based Biomimetics and Their Applications”, Advanced Materials, vol. 30, no. 19. pp. 1–31, 2018.