Nostalgia de uma sociedade mais humana

Texto de Vítor Oliveira Jorge (https://flup.academia.edu/VITOROLIVEIRAJORGE, https://ihc.fcsh.unl.pt/vitor-oliveira-jorge/), Loures, setembro de 2024. Imagem: Espaço público: Piazza della Signoria, em Florença, vista a partir da varanda do Palazzo Vecchio. Autor: Samuli Lintula, 2006. Reproduzida aqui ao abrigo de Creative Commons cc-by-2.5. Link para o original publicado em Wikimedia Commons: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Piazza_della_Signoria.jpg

O modelo de sociedade em que vivemos – no meu país, Portugal, e à escala do mundo, em geral – é um modelo que fomenta a infelicidade das pessoas. É um modelo desumano. Esta afirmação, para não ser vazia de sentido, implica a explicitação prévia – alguns traços apenas, não se trata de apresentar definições – do que entendo por pessoa humana e por felicidade.

Todo o ser humano é um ente provido de características que o distinguem profundamente dos outros animais, apesar de ser, como eles, e como todas as espécies, um produto da evolução destas, e não uma criatura criada por um qualquer ser transcendente e eterno. Neste aspeto, a crença religiosa – sobretudo ao nível da sua institucionalização e funcionamento, e não tanto ao nível individual, em que cada caso é um caso, e é necessário eticamente respeitar essa subjetividade singular – é em geral um impedimento à verdadeira compreensão do humano, ou seja, à sua objetiva integração racional no seio dos outros entes.

A paleontologia humana demonstrou-nos, de forma inequívoca, como é que o aparecimento do Homo sapiens se processou a partir da evolução dos Primatas. Porém, é claramente insuficiente para nos caracterizar na nossa especificidade. Produto da evolução material, o ser humano é dotado de Espírito, o que os crentes habitualmente designam alma, e é um ser eminentemente histórico, isto é, a autoconsciência que possui leva-o a compreender que o tempo é uma coordenada essencial para se entender a si próprio, aos outros, e à própria realidade em si. Ou seja, a sua imensa contingência, a sua vulnerabilidade, a sua precaridade, em tudo o que faz, mesmo que seja o autor de “obras-primas” dotado dos maiores galardões. Tudo perecerá, mais cedo ou mais tarde. E ao nível da realidade, a mesma coisa: tudo flui, embora a diferentes “velocidades”, inexoravelmente.

Sem consciência histórica, quer individual, quer coletiva, o ser humano ficaria placado numa situação absurda e paralisante. Ao contrário, ele é um ser que sabe como nasceu, num processo inteiramente independente da sua vontade – o que desde logo o alerta para uma reflexão importante, a de que se encontra lançado involuntariamente ao mundo, tendo aí de, por si, fazer o esforço individual de se constituir de modo a sobreviver, por muito que seja ajudado por outrem, progenitores, outros familiares, etc. – e que sabe que vai envelhecer e finalmente morrer. A consciência da morte – inexistente nas outras espécies – retroage (mesmo inconscientemente) sobre todos os aspetos da vida, permitindo ao humano compreender o carácter finalmente absurdo da sua própria existência, como o existencialismo claramente nos mostrou.

O ser humano não pode subsistir sem os outros, já que o seu nascimento é, poderíamos dizer, sempre precoce, porque quando sai do ventre da mãe se encontra totalmente impreparado, sem autonomia, e à mercê da ajuda de outrem. Essa dependência do Outro não é, como sabemos, apenas funcional (aliás em nós não há nada de exclusivamente funcional, isso é um mito) é também reflexiva: o Outro, cada um dos outros, é para o ser humano um espelho, que lhe devolve uma imagem de certo modo ambígua, inquietante ou até momentaneamente reconfortante: uma interrogação fundamental sobre quem é ele e quem é o Outro, e o que cada um pode esperar do Outro, etc. O estado amoroso (o do apaixonado/a) leva-o/a, por “momentos”, a ver em alguém a “parte” que idealmente completaria a sua falha, a sua contingência, mas como sabemos esse estado de delírio é de duração relativamente limitada.

Inventámos, para melhor nos tentarmos compreender a nós próprios, a ideia de Natureza, como algo inteiramente separado de nós, uma envolvente, e atribuímos a nós mesmos a exclusividade do seu contraponto, a cultura. Desde os antigos gregos, para não ir mais longe, que se considera esta como algo de divino, um sinal e “parte” ou eco de um Grande Outro, um elemento de redenção e de eventual ascensão à “eternidade”, à perfeição, à Totalidade que não encontramos de modo algum em parte alguma. Torna-se evidente a arbitrariedade dessa distinção entre natureza e cultura.

Sendo o ser humano um produto da evolução da matéria (passe agora por comodidade esta generalização), percebemos que tal matéria tem uma história própria, a qual a levou, ao nível das espécies vivas, a diferentes fases qualitativas que desembocaram na consciência, ou Espírito humano. Ou seja, o Espírito, para se entender, criou uma alteridade, a Natureza, a qual lhe é precisa como espelho, sendo que essa outridade natural volta para a consciência do humano, qual bumerangue, já mediatizada pelo Espírito: são elementos que estão em relação dialética. A Natureza é assim espiritualizada e o Espírito naturalizado. Um modo hegeliano de dizer que desde que o ser humano existe toda a realidade é uma realidade humana, mesmo que a pensemos quando já existia antes da nossa emergência na história do cosmos. Somos seres falantes, mesmo quando estamos calados, e a linguagem permite a imaginação e a reflexão sobre o que não está presente, mas introduz uma linha de cesura na realidade: cria-a, mas cria-a já mediada pelas palavras.

Do ponto de vista materialista que é o meu – e que, portanto, valoriza a imanência dos processos – não há um terceiro elemento, transcendente, uma divindade, a quem se devam as determinações referidas: não há um criador da “natureza” e do ser humano. Seria uma solução demasiado fácil e até ingénua, embora como figura mítica seja um “cajado de apoio” fundamental para milhões de pessoas. Há sim um meio ambiente terreno que tem a sua própria história, e que possibilitou a evolução da vida (primeiro na água, depois em terra com o aparecimento de órgãos que permitem respirar na atmosfera, depois a capacidade de voar, etc.) no que retrospetivamente nos aparece como uma teleologia, um percurso determinado, mas que na verdade não resulta de qualquer programa prévio, é o produto cego, temporal, de um processo cego.

Também não há qualquer entidade transcendente capaz de intervir na realidade para regular a complexidade da vida tal como ela nos aparece, a nós seres humanos, que temos, para sobreviver, que existir em comunidade; é absurda e simplista a ideia, durante muito tempo acalentada, de “contrato social”, mesmo como simples metáfora. E o que a pré-história nos ensina é que, certamente por tentativa e erro, através de momentos de estabilidade e/ou de instabilidade social (o ser humano caracteriza-se pelo par de opostos amor-ódio, que podem levá-lo a uma intensidade emotiva de todos conhecida, e em particular a uma agressividade muito forte) se foram constituindo, ao longo do tempo, coletividades mais ou menos complexas, que em grande parte desembocaram, em épocas e circunstâncias muito diversificadas, na forma política do Estado.

O ser humano só se realiza em comunidade, e só consegue alguma estabilidade, permitindo as condições psíquicas para criar soluções para a sua vida em cada ecologia particular, através da mediação de uma entidade formal, que concentra e administra o poder, e que em muitos casos da história nos aparece como tão “elevada” acima do comum que parece adquirir uma essência transcendente (teocracias em particular). Trata-se de algo que procura corresponder ao papel da tal “terceira entidade” de que falei acima, agora transmutada num aparelho de Estado que certifica, naturaliza, e assim legitima, a apropriação privada (por grupos, ou indivíduos da elite) dos bens comuns essenciais à vida, a começar pelos próprios meios de subsistência básicos, e a continuar eventualmente em narrativas que fazem do soberano o próprio representante (e intermediário) do deus na Terra, assim legitimando ideologicamente a sua supremacia em princípio incontestável.

O soberano, num regime constitucional, não precisa de governar nem de decidir seja o que for: precisa apenas de ser o polo simbólico, como Hegel compreendeu, da estrutura estatal de decisões, apondo a sua assinatura ao já determinado pelos representantes dos súbditos; o soberano é apenas uma assinatura. O rei que acreditasse que é mesmo “rei”, que essa função corresponderia a algo de substantivo em si, de constitutivo de si, cairia no ridículo de levar mesmo a sério todo o ritual que preside à sua vida, e que na verdade até é na aparência levado muito a sério pelo povo, pelos súbditos, todos fazendo de conta de que “o rei não vai nu”, que ele de facto representa o Grande Outro, por sua vez eventualmente legitimado superiormente pelo Grande Outro eterno. Qualquer coletividade política precisa de um esquema de poder que lhe garanta uma certa estabilidade, e que esconda o que o poder tem de face oculta, de convencionalidade e arbitrariedade, o seu lado obsceno. Como o filósofo Zizek tem acentuado repetidamente, sem essa faceta obscena a realidade social desfazer-se-ia, como aliás sem a componente da fantasia a própria realidade humana (toda a realidade, portanto) se desfaria também.

A felicidade do ser humano conjuga-se essencialmente ao nível individual, mas bem sabemos como a própria noção de indivíduo, tal como a compreendemos hoje, um sujeito autónomo e enquadrado numa coletividade que o integra e formata em deveres e direitos, é tipicamente moderna e ocidental. Ou seja, se algo caracteriza o Ocidente é a sua primazia, real ou ficcional, dada ao sujeito e à sua, pretensa embora, possibilidade de “escolher”, mais uma vez assumindo que se não trata, na verdade, de uma escolha forçada. Porque todas as nossas escolhas não são conscientes, o elemento principal que manda em nós é o inconsciente, e por isso cada um de nós é para si mesmo, como para os outros, um enigma. Ou, dito de outra forma, um vazio, o qual, quer cada um de nós, quer cada um dos outros sobre si ou sobre nós, procura preencher através de uma fantasia. A partilha de um certo número de ilusões coletivas enforma as comunidades, e por vezes, sobretudo se tem a ver com o plano religioso ou com o plano das convicções mais arreigadas, pode levar milhares ou milhões de seres humanos à morte, convictos de que defendem a sua própria essência existencial. É nesse sentido que o ser humano é o mais “louco” de todos os animais. Ser do desejo, precisa de ser ensinado (ou de aprender) a desejar, precisa de, repetidamente e até à morte, tentar preencher a lacuna que lhe é constitutiva.

Ora, comecei por afirmar que o modelo preponderante nas sociedades modernas é inumano, é contrário à felicidade de cada pessoa e à harmonia dos grupos e das entidades mais vastas. O avanço da ciência e da tecnologia trouxe benefícios que tendem a ser apanágio de minorias, e as desigualdades sociais, à escala global, longe de se atenuarem, aumentaram e aumentam cada dia. Essa injustiça radical está à vista de todos. Mas toda a história está cheia de equívocos e de “injustiças” (sobretudo aos nossos olhos de hoje), podendo mesmo dizer-se que as aquisições positivas que a “cultura” e a tecnologia foram conseguindo se deveram, precisamente, à exploração de uns seres humanos (a maioria) por outros. Essa exploração foi sempre, até hoje, uma condição sine qua non do “progresso”.

Na verdade, todo esse chamado “progresso”, em que o século XIX em particular tanto apostou (e muitas coisas pareciam comprová-lo, nomeadamente para as classes abastadas) se esboroou perante as calamidades terríveis do séc. XX, as quais, longe de esmorecer, continuam e se incrementam no século em que vivemos. Portanto, o ideal de felicidade – a nostalgia edénica, a paz universal, o perfeito entendimento entre os indivíduos, os povos e as nações – afasta-se de nós à mesma velocidade (mas em sentido oposto) com que a humanidade se trucida aos nossos olhos, nós, espectadores das desgraças dos outros, enquanto elas não chegam até nós. Todas as promessas de redenção coletiva que a ciência ou a política nos fizeram, se desfizeram. Há boas notícias de um lado, logo temperadas por más ou péssimas notícias noutro. E nós, animais gregários, não podemos ser felizes, como habitantes de um planeta globalizado, se temos conhecimento (hoje, em direto, pelos meios de comunicação) de que outros como nós são chacinados e trucidados a cada passo. A tensão acentua-se à escala global, as refregas regionais rapidamente se espalham, a linguagem e a economia da guerra substituem a vida normal dos seres, e elas são apenas a ponta de um icebergue de mal-estar, de ansiedade, de angústia que caracteriza a sociedade do empreendedorismo, da competição e da fuga em frente por quaisquer meios, circunstâncias que evidenciam bem a “perda de futuro”, de esperança, de alegria. Até o humor, como espetáculo, tão importante, é cada vez mais difícil de produzir, redundando rapidamente numa caricatura, ou no abastardamento (apelando ao obsceno mais básico, por exemplo) de si mesmo.

Este mal-estar, esta doença social contangiante, começa logo na perceção de que há cada vez mais gente sobre a Terra, e de que uma porção cada vez maior dessa população está destinada à morte, dadas as condições ambientais que se degradaram a tal ponto que não é imaginável encontrar para todos (para a maioria) uma vida digna, um “lugar ao sol”. E são em geral os países mais pobres, ou com maiores desigualdades sociais, aqueles em que as pessoas menos cuidam de planear as suas vidas para não darem origem a mais criaturas que vão morrer. Vemos imagens de refugiados, multiplicados por toda a parte em campos de morte, rodeados de filhos expostos e indefesos, e perguntamo-nos qual o sentido de produzir mais vidas num mundo assim. Sabemos que uma pequeníssima percentagem de indivíduos possui o correspondente ao que poderia, se distribuído, permitir uma vida minimamente digna à maioria dos seus semelhantes. Mas tais indivíduos, ou organizações, não abdicam da sua fama e proveito, e quando muito usam-na num modo caritativo, constituindo fundações ou outras instituições “humanitárias”, que, sob a figura da “alma bela”, acrescentam valor à marca ou marcas que tais indivíduos ou organizações representam, e vendem, porque o prestígio público das “boas ações” é, como é óbvio, igualmente um capital.

Também sabemos que a existência de paraísos fiscais, onde vai parar o produto dos roubos perpetrados pelas mafias que invadiram o planeta, tornam impossível qualquer solução justa à escala global. Essas mafias estão no poder, ou controlam o poder, de muitos Estados. O lado obsceno da sociedade dita de consumo de massas está à vista. E nesse lado obsceno de uma ideologia liberal, de fachada tolerante, inclui-se a tendência de uma atitude que desfaz os valores antigos no seu conjunto, em vez de descartar o que neles havia de errado, de injusto, e de promover o que neles havia de correto. O Estado social corrompe-se quando os poderes, que caracteristicamente nele se deviam distinguir, se misturam numa luta mais ou menos velada ou encarniçada (muitas vezes portas adentro, claro) entre o legislativo, o executivo e o judicial. Só um inocente acredita nessa separação de poderes, todavia crucial numa “democracia”. E passamos todos a desconfiar de tudo. O Estado, o seu aparelho, e as elites que nessa esfera circulam deixaram de ter a confiança dos cidadãos, e daí as permanentes disfunções das sociedades, por exemplo tipificadas no ataque ao Capitólio nos EU em 2021 pelos seguidores de um ex-presidente, ele próprio acusado dos mais graves crimes, e que, no entanto, pode voltar a recandidatar-se. Tal facto é incompreensível para qualquer pessoa decente e traz consigo a mensagem da mais completa e generalizada decadência democrática que é possível imaginar.

Nesse sentido, tudo se encaminha para a dissolução do “espaço público”, e a unidade social passa a ser o indivíduo, a quem é dito que é livre de tomar as suas opções de vida, uma liberdade afinal falsa para todos: os que são excluídos e que não possuem o mínimo de possibilidades de construir uma vida, e os pouquíssimos que são beneficiários e que tantas vezes não sabem, porque ninguém os ensinou, porque ninguém alguma vez lhes disse a palavra essencial da educação (“não”), que é a palavra que orienta e ajuda a distinguir o que seria bom para a pessoa e para a comunidade, e não apenas supostamente bom para a pessoa em detrimento da comunidade.

Hoje em dia todas as atividades das instituições sociais são medidas em função de hierarquizações, escalonamentos baseados no êxito, no lucro, na aparência, na pretensa inovação (palavra que serve para muita coisa…), resultantes idealmente de uma atividade de equipas que podem ser extensas, espalhadas pelo planeta, exercida em função de programas por vezes envolvendo financiamentos muito elevados, e de cujo investimento se quer ver depois (o mais breve possível) o retorno, seja em lucro financeiro, seja em prestígio, quanto maior e mais divulgado melhor. À partida há evidentes aspetos positivos em muitos desses programas, mas o espírito em que se inserem é o da concorrência mundial cujos critérios de validação são por vezes muito discutíveis. Impera a tecnocracia. E ficam para trás, por falta de meios e de aderentes, muitas iniciativas menos ambiciosas e quiçá muito mais prenhes de um futuro para a felicidade, para a lucidez, para a calma ponderação e divulgação dos temas e das propostas.

É preciso encontrar slogans, marcas, algo que chame a atenção e lubrifique o desejo social e individual, indo ao encontro das frustrações (do vazio constitutivo, cada vez mais desorientado) das pessoas. Assim surgem atores sociais que de um momento para o outro ganham uma notoriedade quase alvo de um culto, como tipicamente acontece no desporto, por exemplo (nomeadamente no futebol comercial), ou que, por via das suas emissões regulares na televisão se tornam conhecidos nacionalmente ou mundialmente, tornando-se gurus da opinião, vendendo livros “atraentes” ou outros produtos de grande difusão, etc.

A excessiva exposição aos Media é, em geral, portadora de problemas, porque tais Media achatam tudo por baixo, medido em função das audiências e não segundo critérios em que a cultura, a Ideia (e não mais “inovações” que em catadupa nos são despejadas continuamente) seria efetivamente a bitola principal. Para qualquer canal de televisão, o tratamento de um assunto efetivamente importante, quando não interrompido pela publicidade, ou é apresentado à hora em que a maior parte das pessoas está já a dormir, ou é sujeito a uma temporalidade angustiante, sentida pelo espectador quando vê alguém que quer expor uma ideia importante ser interrompido ou ter de expor atabalhoadamente aquilo que exigiria outra temporalidade. O que é bom e nos felizes tem de ser desgostado com calma e com serenidade, com total atenção ao Outro e sem preocupação de reduzir tudo a slogans, a frases feitas, ao déjà vu, antes em total abertura ao inesperado, que ressoa em nós e fica a ressoar por tempo indeterminado. Mas o próprio telemóvel, com todas as funções que lhe estão cada vez mais associadas, não deixa ninguém em sossego. Os nómadas em que muitas pessoas se tornaram precisam de estar conectados e de cumprir obrigações que a tecnologia lhes exige, com constantes atualizações desnecessárias, mas obrigatórias, etc. Espaço e tempo humanos, na sua totalidade, estão capturados por este espírito de alerta permanente, noite e dia se preciso. O capital não conhece já as temporalidades antigas, que permitiam cada pessoa dispor melhor do seu tempo: é ditatorial, omnipresente, imperativo.

E de todo este mundo não estão ausentes as universidades, que são consideradas (e funcionam no mesmo “espírito” concorrencial) como empresas ou fábricas de indivíduos e de produtos “novos”, capazes de atrair mais investimento. A palavra de ordem é a quantidade, por exemplo de artigos publicados por ano por cada indivíduo ou equipa, associada a uma suposta qualidade de certas agências internacionais de indexação (burocráticas e por vezes mesmo caras) que apenas estão atentas ao cumprimento de regras formais, deixando de lado o que cada equipa ou pessoa pode trazer de verdadeiramente importante para a comunidade.

Mas, qual comunidade? Na realidade, o que há é um esvaziamento do espaço público real, coletivo, apenas cheio ocasional e fugazmente por multidões em protesto, arruadas eleitoralistas, grupos de fans de determinadas estrelas do espetáculo, ou eventos temporários do mais variado tipo, que tentam (?) preencher o que foi transformado, esvaziado, descomposto, fabricado como cenário. Tudo o resto é “cada um por si” e “cada um em sua toca”. Os centros das cidades, povoados de gruas, são ilustrações particularmente evidentes desta situação. Obras por toda a parte para preparar construções antigas para novas unidades turísticas ou de consumo, preços que tornam inimaginável a vivência da cidade a qualquer pessoa normal (tornada habitante dos bairros dormitórios e quando muito, de vez em quando, turista na própria cidade de onde foi arredada), etc.

A cidade transformou-se numa máquina de entretenimentos para crianças (grandes ou pequenas), do tipo museu modernaço, ou de circo de figuras espampanantes, coloridas, boas para uma fotografia, e as estátuas que povoavam as antigas praças lá vão ficando como relíquias, às vezes muito apequenadas pelos edifícios em volta, de bancos, seguradoras, centros comerciais de lojas caras, etc. É por aí que circula uma contínua onda de turistas, de olhos bem abertos para o ar para comprovarem que o são, entre os habitantes locais que restam e que se esgueiram, mal podem, para as suas casas, ou partes de casas, que o restante está alugado a estudantes (esses nómadas de hoje, entre muitos outros nómadas) ou a turistas. Tirada uma foto, é preciso comprovar que se está onde está, com um sorriso posto, através de alguma rede social. E assim as pessoas parecem seres apensos a telemóveis, que capturam completamente a sua atenção e que as tornam escravas modernas do sistema de comunicação de situações e identidades mais ou menos encenadas.

Felicidade, liberdade, igualdade, fraternidade – o dicionário de palavras humanizadas é imenso – mas a realidade, por detrás das encenações, tem uma gramática e um léxico bem diferente. Imaginamos. Porque, se pudéssemos ir aos bastidores desse teatro em que cada um de nós vive, não sei se encontrávamos outra encenação, e outra, e outra, até à fadiga total…ou ao vazio fatal que nos extenua.