Sobre o uso do plano do close-up do rosto da mulher ao longo da história do cinema; profusamente ilustrado com alguns excelentes exemplos. Revisão de Sílvia Pereira Diogo e João N. S. Almeida
INTRODUÇÃO
“A beautiful face, as La Bruyere wrote, is the most beautiful of sights. There is a famous legend which has it that Griffith, moved by the beauty of his leading lady, invented the close-up in order to capture it in greater detail. Paradoxically, therefore, the simplest close-up is also the most moving. Here our art reveals its transcendence most strongly, making the beauty of the object signified burst forth in the signi.” (Godard, 1968)
Pensando no conceito de close-up e representação, irei atentar no retrato da figura feminina através deste dispositivo narrativo: focar-me-ei no rosto da mulher e no que este traz através do plano de pormenor não só à própria narrativa do filme como principalmente ao espectador. No auto-retrato fotográfico feminino existe, frequentemente, um exagero da performatividadeii (Jones, 2002) e isso reflete-se na forma como a subjetividade é estabelecida e em como pode ser dado um significado e um significante a estas representações humanas.
A face é a única coisa não acessível pela nossa visão acerca de nós mesmos, assim, surge este interesse e desejo acerca da face humana. O rosto é significante de beleza, de expressão, de interioridade. Pensando nesta ideia de não acessibilidade, é daqui que penso que advém o fetichismo da observação do outro. Existe até uma certa dualidade entre o próprio cinema e a observação do outro – o cinema é o local escuro onde observamos o outro, onde assistimos a histórias que não são as nossas. O ecrã tem um papel importante aqui: segundo Lacan (irei abordar esta ideia mais à frente), o local onde o sujeito e o objecto se unem é o ecrã, seja o ecrã cinematográfico ou fotográfico. Neste local, o outro torna-se acessível ao eu, uma vez que houve um desmascarar do representado ao se demonstrar como ele próprio, através do ecrã. Aqui, o observador integra parte essencial desta narrativa de desmascaramento.
Através da ideia de desmascaramento, vou tentar enunciar teses que atentem em como a representação feminina no cinema através do close-up serve como uma máscara para a verdadeira subjetividade feminina.
O close-up como dispositivo de expressão
O legado do close-up está presente no próprio cinema em momentos como no filme Sunset Blvd. de Billy Wilder em que uma das personagens diz “Alright Mr. De Mille, I’m ready for my close-up”. Este dispositivo cinematográfico parte da necessidade de acentuar as expressões faciais no cinema mudo. Pensado e criado primordialmente por George Albert Smith, Jean Epstein e D.W. Griffith, o close-up surge em resposta a um problema que se estava a tornar cada vez mais evidente – a distância entre o espectador e o actor, sendo que as salas de cinema eram grandes e os espectadores estavam espalhados pelas mesmas, não era possível uma observação igual de todos, devido às diferentes distâncias, nem sempre sendo mostrado os pontos fulcrais do filme aos espectadores.
O close-up, para além de ser uma evolução tecnológica da época, trouxe também uma evolução artística pois criou uma mudança na própria narrativa e na montagem. Quanto à narrativa, o close-up também muda o curso da mesma: dá acesso a algo que anteriormente não era visto, isto é, dá importância a um objeto ou pormenor anteriormente não visto, como Walter Benjamin refere como ponto de entrada muito importante. Tem também em si uma capacidade de alterar o discurso do cinema ao lhe tirar o afastamento típico do teatro, tendo, assim, a capacidade de separar esse momento do close-up da diegese do próprio filme. Embora isto possa ser disruptivo em certas ocasiões, noutras traz uma noção de perspectiva ao espectador: evidencia um pormenor que o realizador quer chamar à atenção ou revela algo sobre a própria personagem (no caso do close-up ser da face de uma personagem).
Para além da questão performativa e expressiva inerente à representação do actor, este dispositivo é também criado para dar ênfase a certos momentos narrativos – é comum o uso do close-up para evidenciar certos objetos, partes do corpo ou mesmo acções específicas. Foco-me, agora, na importância do close-up do rosto.
Tendo sido a expressão uma das razões principais para o início do close-up, a importância do rosto e a proximidade ao mesmo também é indicadora de uma necessidade de ver o rosto, sendo este o significante da proximidade. O cinema encontra no close-up a possibilidade da mestria que conseguirá demonstrar e representar o plano interior da personagem de modo a permitir um acesso à interioridade e subjetividade da mesma.
Jean Epstein, na sua obra “Magnification” refere o poder do close-up devido à sua capacidade de captar a mais ínfima expressão do actor, intensificando ou diminuindo emoções e sentimentos. Através deste poder que Epstein refere, o close-up consegue criar uma dualidade de superfície e interioridade, tão associada à face humana.
Figura1: Epstein J., (1923), Coeur fidèle
“Quanto ao próprio rosto, não deverá dizer-se que o grande plano trata dele ou o submete a um qualquer tratamento: não há grande plano de rosto, o rosto é em si mesmo grande plano, o grande plano é por si mesmo rosto, e ambos são o afecto, a imagem-afecção” (Deleuze, 1986).
O interesse no rosto não está apenas associado à expressão mas, também, a uma ideia de reconhecimento. Seja para nos identificarmos com o outro, para nele encontrarmos beleza ou desejo, seja para a partir dele encontrarmos um outro que remete para nós próprios; é através do plano de close-up que conseguimos entrar na interioridade do outro. Este dispositivo funciona quase como o ecrãiii, como referido por Jacques Lacan, o local onde o observador entra em contacto com a sua própria subjetividade. Para Lacan, este ecrã é o local onde o observador encontra o sujeito representado, e, através deste “espaço de mediação”, surgem os processos de identificação e projeção.
Remeto para um exemplo exímio do uso do close-up: A Paixão de Joana D’Arc de Carl Dreyer, 1928. Muitas vezes falado como sendo um dos melhores exemplos do close-up, este filme repesca a história de Joana D’Arc e o seu julgamento nos momentos anteriores à sua execução. O uso do close-up funciona como uma entrada no plano subjetivo de Joana D’Arc. O olhar assustado, as expressões atormentadas neste recurso a close-ups apertados e íntimos afeta também o espectador que entende e acede ao interior da personagem através da sua face.
Figura 2: Dreyer C., (1928), La Passion de Jeanne d’Arc
Aqui está, de maneira óbvia, presente a dicotomia da superfície / interioridade. Através desta superfície que é o close-up, conseguimos aceder ao espaço mental da personagem. Neste filme, este motivo é marcado pela personagem da Joana D’Arc – existindo o contraponto entre a personagem principal e as outras; a forma como o close-up é utilizado leva-nos a romper a máscara e a aceder à subjetividade da personagem. A forma como esta é representada é clara – a dor, o medo e tormento nos seus olhos e expressões faciais levam-nos automaticamente para o plano interior e para as emoções. Aqui, a expressão “os olhos são a janela da alma” parece fazer total sentido.
O close-up tornou-se em linguagem cinematográfica universal, servindo variados propósitos sejam estes formais ou narrativos, permitindo que, por vezes, este até possa funcionar sozinho, expressando a realidade humana e os sentimentos para o cinema.
Feminilidade e o close-up cinematográfico
Desde que surgiu, nos anos 1890, o cinema foi ganhando uma enorme importância estética, artística e cultural na nossa sociedade. Crescemos a ver cinema, associamos partes da nossa vida a filmes que vimos e, adicionalmente, aprendemos com o cinema. Esta ideia de mimesis através do cinema está desde então presente nas nossas vidas, consciente ou inconscientemente.
A forma como o close-up veio servir a representação das mulheres no cinema criou um desenvolvimento da ideia de Hollywood star e, da própria indústria cinematográfica. Como referido na introdução, Jean-Luc Godard associa o início do close-up a D.W. Griffith nos seus planos aproximados de Lilian Gish. Para além de estar a focar-se na beleza da actriz e da sua expressividade facial como dispositivo narrativo, é a partir desta altura que começa a surgir uma ideia de publicidade através do rosto feminino.
Figura 3: Griffith. D.W. (1920), Way Down East
Entre 1880 e 1920, aproximadamente, o paradigma da mulher muda e esta começa, lentamente, a ganhar mais direitos, a trabalhar fora do seio familiar, a poder deslocar-se no exterior sozinha. O cinema, para além de começar a replicar esta nova realidade da mulher, adapta-se à novidade da narrativa e filmes variados florescem, representando-a com uma nova maneira de ser e estar.
No período do cinema mudo, a forma como a imagem da mulher é representada tem uma certa dualidade: dá poder à mulher ao criar personagens fortes, determinadas e com objetivos definidos, mas ao mesmo tempo, a forma como esta mulher é representada parte de uma objectificação.
Aquando do aparecimento do cinema sonoro, e embora houvessem mudanças sociais e económicas inerentes ao período histórico, as personagens femininas no cinema continuaram a ser representadas segundo um ideal de beleza, e até de comportamento, para que o homem que as visse as pudesse observar e admirar devido à beleza que têm; mas, ao mesmo tempo, e sendo que se parte normalmente deste tipo de objectificação, as imagens destas personagens pareciam servir o propósito de ser masculinamente olhadas e, por extensão, “domadas”. Este ponto entrosa-se com o que vamos de seguida explicar.
Figura 4: Lubitsch. E. (1937), Angel.
Usualmente as personagens femininas dividiam-se de duas formas: uma mulher sensual que procura um parceiro ou uma mulher dura que rejeita homens. Um exemplo clássico desta dicotomia é o filme Gentleman Prefer Blondes de Howard Hawks, em que a personagem de Marilyn Monroe exemplifica essa ideia de sensualidade, de objeto para ser observado por um homem, e a de Jane Russel representa o próprio homem que não tem que ser domesticado, devido à sua natureza forte.
Figura 5: Hawks, H.. (1953), Gentlemen prefer blondes.
A mulher é objetificada no cinema sendo que quem a cria nesse espaço é um homem que controla a personagem e como esta é dada a ver a um público. Esta construção da personagem através de um olhar masculino é o que Laura Mulvey refere como male gazeiv. O homem observa a mulher e decide como esta deve agir, comportar-se e ser, tendo em consideração o seu próprio desejo e vontade. A essência de cada uma das mulheres representada é perdida a partir do momento em que um homem a representa a partir do seu próprio olhar; quase como se a própria mulher nem tivesse controlo sobre a forma como se vê a si própria, uma vez que replica o olhar do homem e não se vê realmente.
Voltando à ideia de superfície/profundidade que referi anteriormente, é quase como se o homem que observa estivesse na superfície e apenas fosse essa perspectiva que quisesse demonstrar ao mundo, de modo a que ninguém conseguisse aceder à profundidade do objeto (a mulher). Diria que este objeto é certamente um de desejo e que o olhar do homem é um de voyeurismo devido ao seu único carácter de observação.
As representações destas mulheres no cinema, por vezes, acabavam configurar uma transfiguração da vida para fora do mesmo, superando o espaço da tela. Actrizes como Marylin Monroe ou Marlene Dietrich, que representavam personagens-tipo muito específicas — mulher inocente e sensual ou femme fatale — acabavam por parecer retratar essas mesmas personagens fora do ecrã do cinema, transportando esse legado directamente para a vida pessoal. A tal ponto a criação destes ideais por parte do sujeito masculino podia levar a uma linha ténue entre personagem e realidade, confundindo uma na outra.
O close-up foi usado como um dispositivo desta observação da mulher como superfície, de modo a sexualizá-la e fetischizá-la como se de uma fantasia se tratasse. Isso é claramente observável a partir do momento em que a personagem feminina nos filmes podia servir para atrair ao mesmo tempo homens (mais uma vez, a questão do voyeurismo) e mulheres à sala de cinema. Dessa forma se exibiam personagens definidas por homens que explicavam às mulheres por via do fotograma o modo como elas se deviam comportar e o empenho que podiam desenvolver nessa transformação.
Figura 6: Hathaway. H. (1953), Niagara.
Outro costume que surgiu neste período foi o da utilização da figura feminina como bem de consumo – para além desta atração do corpo feminino, a cara da mulher funcionava como meio de publicidade para o público do cinema. Um exemplo prático disto é o de Marilyn Monroe e da maquilhagem que esta usava no plano de close-up – a sua face era quase como uma montra para quem observava.
Regressando à ideia que referi na introdução de a face não estar acessível ao próprio, aqui parece fazer especial sentido com o close-up feminino, na medida em que a actriz parece não ter acesso ao seu rosto, sendo, no entanto, a partir dele que uma fetischização da sua representação passa a existir.
O desmascarar do close-up feminino
Jean-Luc Godard associa a beleza feminina ao cinema, sendo que, como refere na citação que acima já havia mencionado, considera que, tal como La Bruyère, uma face bonita é a visão mais bela.
“A beautiful face, as La Bruyere wrote, is the most beautiful of sights. There is a famous legend which has it that Griffith, moved by the beauty of his leading lady, invented the close-up in order to capture it in greater detail. Paradoxically, therefore, the simplest close-up is also the most moving. Here our art reveals its transcendence most strongly, making the beauty of the object signified burst forth in the signv” (Godard, 1968).
Sendo que a face feminina representa a superfície, esta está disponível para ser vista mas, e é aqui que reitero a ideia de máscara, é a partir do close-up que é possível retirar esta máscara e aceder à interioridade, à verdadeira essência da mulher representada. É importante romper o ideal de representação que é figurado e aceder ao que está para além da superfície.
Figura 7: Godard, J.L. (1962), Vivre sa vie
Vivre As Vie parece ser um exemplo de uma mulher representada que tenta ultrapassar a própria barreira de representação. Encontramos uma mulher que se esconde atrás de dispositivos que poderão ser considerados como máscaras – uma profissão em que tenta ser outra mulher, uso de artíficios que a representam como outra, o uso de maquilhagem que pode afigurar-se como certa máscara. Esta mulher navega na vida de forma errática e parece querer ser uma pessoa que não ela mesma. Um dia, essa mulher vai ao cinema e é lá, através do ecrã e de um close-up de uma outra mulher, que encontra o seu outro, acedendo assim à sua interioridade.
“Only the subject – the human subject, the subject of the desire that is the essence of man – is not, unlike the animal, entirely caught up in this imaginary capture. He maps himself in it. How? In so far as he isolates the function of the screen and plays with it. Man, in effect, knows how to play with the mask as that beyond which there is the gaze. The screen is here the locus of mediation” (Lacan, 1986).
Neste momento, esta mulher representada por Anna Karina depara-se com uma outra mulher, num cinema escuro, em planos apertados. Esta outra mulher é Joana D’Arc de Carl Dreyer; na mestria do close-up, Anna Karina encontra a interioridade dessa mulher através do seu olhar.
O ecrã, aqui, é indiscutivelmente o local onde ambos os olhares se tocam; ambos permitem entrar na interioridade. A superfície é quebrada e acedida por esta mulher: reitero a importância do rosto neste mecanismo do close-up e de como a feminilidade consegue ultrapassar a barreira do ecrã, alcançando-se a si mesma, através desse outro ali representado.
BIBLIOGRAFIA
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PAPERS
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Doane, M.A. (1982). Film and the Masquerade: Theorising the Female Spectator. Screen, Volume 23, Issue 3-4, Sep, Pages 74–88, https://doi.org/10.1093/screen/23.3-4.74
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WEBGRAFIA
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(2016). The Close-Up Shot. Retirado de: https://www.movimenta.fr/en/the-close-up-shot/ The Male Gaze. Retirado de: https://media-studies.com/male-gaze/
FILMOGRAFIA
Le Passion de Jeanne D’Arc (1928). Dir. Carl Freyer. France: Société Générale des Films, 1928. DVD.
Gentlemen prefer blondes (1953). Dir. Howard Hawks. EUA. DVD.
ÍNDICE DE FIGURAS
Figura1: Epstein J., (1923), Coeur fidèle
Figura 2: Dreyer C., (1928), La Passion de Jeanne d’Arc
Figura 3: Griffith. D.W. (1920), Way Down East
Figura 4: Lubitsch. E. (1937), Angel.
Figura 5: Hawks, H.. (1953), Gentlemen prefer blondes.
Figura 6: Hathaway. H. (1953), Niagara.
Figura 7: Godard, J.L. (1962), Vivre sa vie
REFERÊNCIAS
i Godard, J.L. (1968) ‘Defence and Illustration of Classical Cinema*, in Tom Milne (ed.),
Godard on Godard (New York: The Viking Press), p. 28.
ii Jones, A. (2002). The “Eternal Return”: Self-Portrait Photography as a Technology of Embodiment. Signs, 27(4), 947–978. https://doi.org/10.1086/339641
iii Lacan, J. (1978). The Four Concepts of Psycho-Analysis. New York: W.W. Norton.
iv Mulvey, L. (1975) Visual Pleasure and Narrative Cinema, Screen, Volume 16, Issue 3, Pages 6–18, https://doi.org/10.1093/screen/16.3.6
v Godard, J.L. (1968) ‘Defence and Illustration of Classical Cinema*, in Tom Milne (ed.),
Godard on Godard (New York: The Viking Press), p. 28.