A inteligência artificial, esse prodígio da modernidade que hoje é universalmente acessível, veio finalmente pôr termo a uma das mais insuportáveis tragédias da nossa era: a existência da classe profissional das tradutoras. Sim, dessas figuras intelectualmente entediadas, de postura algo displicente, sempre de chávena na mão e olhar distante, que vivem na ilusão de que a sua profissão é uma arte sublime. O fim desta classe – ou melhor, desta sororidade – há de ser saudado por todos os que se preocupam com a eficácia, a precisão e, acima de tudo, o avanço da humanidade para lá dos caprichos da mediocridade em que se sustenta o conforto destas intelectuais burguesas e ociosas. Este texto é uma mera aproximação ao problema e não pretende ser uma abordagem extensa a algumas teorias erradas — e interesseiras — que essa classe profissional tem sobre o ofício. Deixaremos isso para outra altura.
Primeiro Acto: O Culto da Tradução

Se há algo que define a tradutora média é a sua absoluta convicção de que traduzir é um ato de génio. Entre suspiros lânguidos e monólogos sobre a “riqueza semântica” de um termo alemão intraduzível (mas que um estudante de primeiro ano de linguística resolve em dez segundos), esta classe profissional vive num delírio de importância. Convencidas de que são as guardiãs da literatura mundial, tendem a esquecer que o seu ofício tem tanto de artístico como o trabalho de um encadernador ou de um digitador de textos. Nem um nem outro são desprezíveis, mas claramente as primeiras tendem a considerar-se acima dos segundos. Vejamos este ponto com mais atenção.
O que uma tradutora faz é pegar numa frase num idioma e passá-la para outro, algo que, convenhamos, qualquer máquina pode agora fazer, baseada em leituras cumulativamente complexas que não ultrapassam o mero saber técnico, com todo o mérito que um saber técnico merece, resultando num produto com qualidade superior e, felizmente, sem as idiossincrasias temperamentais de uma intelectual entediada. Ao contrário do que essa classe profissional pretensiosamente argumentará, traduzir não é uma decifração de uma arte complexa digna de bruxas e de práticas oculistas: é um saber técnico de plena precisão, que aliás tudo tem a ganhar quanto mais literal possível for, literalidade essa que, está claro, as tradutoras evitam ao máximo, sendo afinal guardiãs não da literatura mas do seu próprio ofício e da sua classe profissional.
Assim, ah!, que dor insuportável para essas almas que passaram décadas a convencer-se de que o seu trabalho era mais do que um exercício técnico! Ainda hoje se queixarão que traduzir é uma espécie de ofício místico, e, conforme o avanço da tecnologia, pretenderão enganar incautos com o argumento do toque humano, que na verdade é o argumento do pilim. E se há coisa que todos os tradutores e todos os místicos fizeram até hoje foi dar erros, dizer asneiras em geral e, principalmente — e este é o grande ponto em comum — acharem-se mais especiais que os outros. O que acontece quando a possiblidade da sua substituição surge?
Segundo Acto: A Inteligência Artificial Entra em Cena

A IA veio acabar com este espetáculo deprimente e ridículo. De uma só assentada, livrou-nos dos erros de interpretação, dos prazos eternos e das explicações pretensiosas sobre as dificuldades intrínsecas de traduzir um romance obscuro de um autor moldavo. Estas obscuridades funcionais tornaram-se claramente fraudulentas. A questão não é de “qualidade” indecifrável, mas de quantidade de conhecimento. Com modelos de linguagem a funcionar a uma velocidade e precisão inatingíveis por um ser humano, o destino da classe tradutória está selado: obsolescência pura e dura.
A ironia, claro, é que as tradutoras sempre consideraram a sua profissão uma atividade de vanguarda, enquanto se agarravam desesperadamente a um modelo de trabalho antiquado. Não estão minimamente preparadas para a extinção. Entretanto, podem, sob várias formas, protestar, escrever manifestos, fazer abaixo-assinados – mas tudo isso é em vão. O progresso não tem paciência para dramatismos de café literário.
Hoje a IA consegue traduções não só aceitáveis como também correctas a nível técnico e até mesmo literário, o que está de acordo com certas teorias da tradução. Tudo o que é necessário é ajustar o nível de literalidade e registo pretendidos, alguns ajustes e correções finais, e está feito um trabalho mais do que bom. A reacção dessa classe profissional, cuja ética conservadora não legitima qualquer tipo de mudança, tem sido a do desprezo e do pânico, enquanto se vão agarrando à tentativa de convencer os fundos públicos a continuarem a dar-lhes importância. Não existe qualquer movimento significativo ou inteligente da parte desta classe que pretenda integrar a IA no seu trabalho ou mesmo admitir a substituição desse trabalho pelo artifício por inteiro. É curioso: traduzem o autor, o artífice por excelência, pretendendo um alcance artístico também, mas tendencialmente recusam qualquer tipo de artifício evidente no seu próprio ofício. São mentirosas três vezes seguidas, não? Consultem Platão.
Terceiro Acto: A Requalificação?

E agora? Que será dessas mulheres que, na sua esmagadora maioria (quase 70% da classe, vejam bem!), dedicaram a vida a um ofício que a tecnologia está prestes a tornar, ou mesmo já tornou, dispensável? O futuro apresenta-lhes desafios imensos. Talvez algumas descubram talentos ocultos na jardinagem, enquanto outras podem sempre abraçar carreiras mais apropriadas ao seu estatuto de burguesas progressistas, como o voluntariado em ONGs ou a animação de workshops sobre literatura de resistência. Não é verdade?
E claro, há sempre a opção de um recuo estratégico para os braços de maridos e companheiros que, como sempre, ganham mais do que elas e que, afinal, ao longo das suas vidas, sempre lhes proporcionaram a prática dessa profissão tendencialmente ociosa. Essa tradição de passarem uma vida a apoiarem-se noutro — seja o autor original ou seja o marido — afinal, não se perde tão facilmente quanto as ilusões de grandeza profissional.
E assim termina este drama burguês, com as tradutoras a desaparecerem do palco do mercado de trabalho, substituídas por algoritmos que não bebem chá nem fingem erudição – mas que, ao contrário delas, fazem o trabalho de forma rápida, eficaz e sem lamúrias. Este ensaio, inclusive, é a prova da sua monumental inutilidade a partir deste momento, por razões facilmente descortináveis para alguns. Boa sorte, tradutoras!