O “Direito a Olhar” em Não Há Amor Maior, de Masaki Kobayashi

Resumo: Este ensaio procura analisar o filme Não há amor maior (1959) de Masaki Kobayashi tendo em conta os conceitos de “visualidade” propostos por Nicholas Mirzoeff nos seus ensaios On Visuality (2006) e The Right to Look (2011). Foi contextualizado o termo “visualidade” dentro da prática actual da cultura visual e observado de que forma o filme de Kobayashi contempla ideias relativas ao “complexo de visualidade” e às formas de “visualidade 1” e “visualidade 2” conceptualizadas por Mirzoeff. Palavras-chave: Masaki Kobayashi, Nicholas Mirzoeff, Não há amor maior, Visualidade, 2ª Guerra Mundial. Texto de João Pedro Soares. Revisão de Sílvia P. Diogo.

Introdução

Nos tempos que correm, em que caminhamos para um mundo cada vez mais digital, onde o afastamento social se começa a sentir enquanto patologia das sociedades contemporâneas, onde o mundo em rede se traduz – com ironia – num espaço de cada vez maior afastamento do colectivo, concentrando os indivíduos em pequenas bolhas de eco dentro das quais perdem o referente mais geral da realidade que os engloba, quais são as formas de restaurar um equilíbrio social?

O caminho que estamos a seguir enquanto humanidade parece dirigir-se para um futuro em que os centros de poder governativo exercem um tipo de controlo dissimulado nas populações através do uso da tecnologia. Com efeito, as ferramentas de controlo político e social evoluem para estruturas que nos acompanham no dia-a-dia: o telemóvel com sistema integrado de GPS, as portagens que rastreiam os movimentos, os metros e as ruas com câmaras de reconhecimento facial. Através do domínio de aplicações de todo o tipo, somos conduzidos a um estado de coisas acerca do qual pouco controlo temos.

A hegemonia deste tipo de dispositivos condena-nos a uma vivência sob controlo permanente dos poderes decisórios, que muitas vezes possuem agendas privadas, alheias à população. É neste sentido que o indivíduo contemporâneo necessita de apropriar-se de ferramentas intelectuais que lhe permitam ver e compreender o mundo que o rodeia, de modo a pensar (e contestar) acerca do espaço em que se insere, destrinçando a realidade nas suas múltiplas vertentes e compreendendo as novas estratégias que os centros de poder actuais utilizam para homogeneizar a visão global de uma sociedade, e, consequentemente, de cada indivíduo.

É neste sentido que o ensaio aqui proposto procurará analisar o filme Não há amor maior (1959) de Masaki Kobayashi, à luz do conceito de “Visualidade” recentemente redefinido por Mirzoeff. O título do ensaio proposto utiliza a expressão “Direito de Olhar”, proveniente de uma publicação escrita por Mirzoeff em 2011 intitulada: “The Right to Look”. Desta forma o ensaio estará dividido em duas partes: 1 – Visualidade; e 2 – Não há amor maior. Assim, através desta divisão, pretende-se neste ensaio demonstrar que o filme de Kobayashi representa muito bem o conflito inerente à “Visualidade” proposta por Mirzoeff, pois acompanha o personagem Kaji numa constante luta contra a visão ideológica e institucional do imperialismo japonês durante a 2ª Guerra Mundial.

Visualidade

Nicholas Mirzoeff (1962-) é professor na Universidade de Nova Iorque e uma figura importante no campo da cultura visual. Esta análise utilizará como referência dois ensaios por ele escritos: On Visuality (2006) e The Right to Look (2011). Ambos os ensaios procuram problematizar ideias em torno do conceito de visualidade, estabelecendo a sua génese e propondo novos caminhos para a sua aplicação prática. A propósito disto, Mirzoeff no resumo de On Visuality indica o seguinte:

A visualidade tornou-se uma palavra-chave para o campo da cultura visual. No entanto, enquanto muitos assumem que é um termo teórico pós-moderno, a palavra foi cunhada pelo historiador escocês Thomas Carlyle nas suas palestras On Heroes (1841). [1]

Na verdade, Carlyle (1795-1881) nem sempre foi agraciado pelos seus pares, considerado durante um longo período de tempo como tendo opiniões racistas, sexistas e até anti-democráticas. Só recentemente começou a ser compreendido no contexto do seu tempo. O seu ponto de vista era particular, já que idealizava o imperialismo, e de algum modo conseguia justificar um sentido heróico na expropriação territorial e económica de outras nações: “Carlyle imaginou um imperialismo moral liderado por grandes homens numa narrativa visualizada que veio a ter considerável ressonância no período.” (Mirzoeff: 2006:54) No entanto, este ponto de vista foi contestado, na medida em que a figura arquetípica do herói de Carlyle necessitava de ser reconstruída e desmontada.

O herói não deve ser uma marioneta do império, mas sim alguém que se ergue contra esse status quo e arrisca a sua vida por uma causa mais justa. De modo que a “visualidade” proposta por Carlyle, isto é, uma forma de ver o mundo através da lente imperialista, das suas morais e ideologias, deve ser reformada. Mas isto traz um problema: reconstruir um termo cuja génese se liga ao imperialismo, significa permitir um duplo sentido do termo, tornando-o assim perpetuamente envolto numa espécie de paradoxo: por um lado um conceito operativo pró-imperialista, por outro, um conceito que procura demonstrar o seu contrário, anti-imperialista. É neste sentido que Mirzoeff afirma: “Aqui reside a fonte contraditória de ressonância da “visualidade” como palavra-chave para a cultura visual, tanto como modo de representar a cultura imperial quanto como meio de resistir a ela por meio da apropriação inversa.” (Mirzoeff: 2006:54) No entanto, a resistência à visualidade imperialista é algo de difícil realização, pois este conceito consegue desdobrar-se em diferentes modos de observação e manipulação:

[…] as múltiplas afirmações da soberania e autonomia da visão derivadas desse corpo recém-empoderado, no modernismo e em outros lugares. […] a crescente padronização e regulação do observador que partia do conhecimento do corpo visionário, em direção a formas de poder que dependiam da abstração e formalização da visão. [2]

Ora, o imperialismo, enquanto sistema, depressa solidificou a sua posição globalizante através de diferentes formas de validar a sua “visão”, quer criando construções narrativas coloniais, quer por criações visuais que mitificavam os feitos imperiais, e, talvez, mais perigoso ainda, nos discursos propagandísticos, que visavam criar abstracções face ao outro, face à colónia. É neste sentido que a “formalização da visão” acima referida surge enquanto um problema metodológico da ideologia imperialista, pois isto presume uma homogeneidade de discursos e pensamentos em torno de um determinado estado de coisas, aniquilando a individualidade e pensamento crítico de cada indivíduo. Em todo o caso, é neste registo que Mirzoeff fala de uma separação em duas formas de visualidade que operam numa relação de diferença, “visualidade 1” e “visualidade 2”:

A visualidade 1 seria aquela narrativa que se concentra na formação de uma imagem coerente e inteligível da modernidade que permitisse uma ação prática, até heróica. […] A visualidade 2 seria aquela imagem do eu ou do coletivo que excede ou precede essa incorporação na mercantilização da visão pelo capital e pelo império.

Mirzoeff: 2006:66

Sendo assim, a visualidade 1 poderia ser a imagem do mundo de acordo com o “filtro” imperialista, enquanto que a visualidade 2 seria tudo aquilo que não é possível de ser abrangido, restringido e controlado pela primeira.

Com efeito, isto oferece uma oportunidade de saída das amarras hegemónicas do império, na medida em que a visualidade 2 é precisamente o espaço teórico-conceptual onde se podem “minar” as estruturas ideológicas dominantes. É a propósito disto que a seguinte passagem em The Right to Look (2011) se torna tão significativa: “O direito de olhar confronta a polícia que nos diz: “vai embora, não há nada para ver aqui”. Só que há; nós sabemos isso, e eles também.” [3] O fascinante nesta simples frase é que condensa as duas formas de visualidade na perfeição: de um lado, a visualidade 1 incorporada na figura da polícia, que representa uma afirmação de soberania; do outro lado, a visualidade 2 que aponta justamente para aquilo que é incomensurável, não dito, impossível de ser agarrado pelas forças de poder. Significa isto que, nesta confrontação entre polícia e cidadão, o elo determinante que faz a diferença e que permite interrogar toda a dinâmica de poder é, precisamente, o acto de questionar, ajuntado aos de pensar e criticar o acontecimento.

Mas como é característico das estruturas de poder, elas fazem tudo para manter o seu status quo, para perpetuar o seu controlo, sendo que a visualidade 1 é algo adaptável aos tempos, no passado ligado a uma ideologia imperialista, no presente relacionada com a agenda capitalista. De maneira que a visualidade se comporta de um modo particular, e que pode ser facilmente detetado nos dias de hoje no seguinte processo em três partes: a classificação, a separação e a estetização. Mirzoeff utiliza o exemplo das plantações americanas para ilustrar estas ideias:

Uma dada modalidade de visualidade é composta por uma série de operações que podem ser resumidas em três títulos: primeiro, ela classifica nomeando, categorizando e definindo – um processo que Foucault definiu como “a nomeação do visível”. Esta nomeação foi fundamentada na prática da plantação desde o mapeamento do espaço da plantação até à identificação de técnicas de cultivo de culturas comerciais e a divisão precisa do trabalho necessário para sustentá-las. Em seguida, a visualidade separa os grupos assim classificados como meio de organização social. Tal visualidade segregava aqueles que visualizava para impedi-los de serem coerentes como sujeitos políticos, como os trabalhadores, o povo ou a nação (descolonizada). Finalmente, faz com que essa classificação separada pareça correcta e, portanto, estética. […] a estética do que é apropriado, do dever, do que é sentido como certo e, portanto, agradável, em última análise até belo.

Mirzoeff: 2011:476

Na sequência disto Mirzoeff refere a junção destas três partes processuais num só conceito, ao qual apelida de “complexo de visualidade”. A ideia de que classificação, separação e estetização se fundem num “complexo” é pertinente, pois é possível verificá-lo em acção. Desde a plantação acima mencionada ao imperialismo, e até mais recentemente ao capitalismo, é possível observar a dinâmica da visualidade em funcionamento. Mirzoeff esclarece o termo:

Complexo aqui significa a produção de um conjunto de organizações e processos sociais que formam um determinado complexo […] A resultante imbricação de mentalidade e organização produz um desdobramento visualizado de corpos e um treino de mentes, organizado para sustentar a segregação física entre governantes e governados e a obediência mental a esses arranjos.

Mirzoeff: 2011:480

Pode ser observado o funcionamento deste tipo de complexos ao longo da história humana, desde o império romano até ao complexo nazi, representado nos filmes de Leni Riefenstahl [4], ou até mesmo na distopia social e política de Orwell (o famoso 1984) com a celebre máxima: “Guerra é paz. Liberdade é Escravidão. Ignorância é Força.” A visualidade 1 ocupa-se então de agrupar as três partes operativas numa estrutura coesa – neste complexo – que impede um indivíduo de se emancipar perante essa visão dominante. Assim, compreende-se que o modelo das estruturas de poder é sempre o mesmo: “O complexo imperial da visualidade ligava a autoridade centralizada a uma hierarquia de civilização em que o “culto” dominava o “primitivo”” (Mirzoeff: 2011:483), no qual se cria uma oposição entre as forças ditas mais intelectuais e avançadas face ao “outro”, inferior, atrasado e rudimentar.

No entanto, é neste contexto que a visualidade 2 surge como nota importante para contestar estas ideias: é possível contemplar esta forma de visualidade como uma “contra-visualidade”, na medida em que não se tenta destruir directamente a hegemonia instaurada pela visualidade 1, pois tal não é possível devido à sua adaptabilidade. O melhor a fazer é utilizar uma técnica de oposição por contrários e não propriamente por um conflito directo. Assim, de acordo com Mirzoeff, o direito a olhar, isto é, o direito de ver o mundo sem “lentes” ou “filtros” criados pelos complexos de poder, resume-se na reclassificação das três partes que constituem o “complexo de visualidade”:

A classificação foi combatida pela educação entendida como emancipação […] A educação há muito é entendida pelas classes trabalhadoras e subalternas como o seu principal meio de emancipação […] A separação foi combatida pela democracia, significando não apenas eleições representativas, mas o lugar da (na conhecida frase de Rancière) “parte que não tem parte” no poder. […] Aqui, o direito de olhar está fortemente ligado ao direito de ser visto. Ao combinar educação e democracia, aqueles classificados como bons apenas para o trabalho reafirmam o seu lugar e título. A estética do poder correspondia à estética do corpo não apenas como forma, mas também como afeto e necessidade.

Mirzoeff, 2011:484

Desta forma, utilizando os termos base do complexo de visualidade, mas invertendo-os para conceitos que alteram e contestam essa realidade dominante, torna-se possível pensar alternativas futuras, onde os centros de poder se diluem num espaço mais democrático e menos demagógico. Em que a “realidade” criada pelos mecanismos de poder se compreende enquanto uma ficção, à qual cada individuo possui o dever de reconstruir com a sua verdade:

O “realismo” da contravisualidade é o meio pelo qual se tenta dar sentido à irrealidade criada pela autoridade da visualidade e, ao mesmo tempo, propor uma alternativa real. Não é de forma alguma uma representação simples ou mimética da experiência vivida, mas uma que retrata as realidades existentes e as contrapõe com um realismo diferente.

Mirzoeff: 2011:485

Deste modo, se a “irrealidade criada pela autoridade da visualidade” corresponde a uma forma de visualidade 1, podemos considerar a visualidade 2 como essa extensão de contravisualidade, que procura deixar em evidência todas as criações fictícias que uma determinada autoridade cria para consolidar a sua força. É nesta conjetura que a próxima parte deste ensaio se dedicará a analisar Não há amor maior, um filme no qual a contravisualidade está sempre em foco, onde a realidade se encontra em constante contraposição pelo personagem principal e onde as consequências que isso acarreta para com os seus proponentes e opositores serão um caso de estudo.

Não há amor maior

Em 1959 Masaki Kobayashi realiza o filme Não há amor maior, o primeiro título de uma ambiciosa trilogia de guerra, à qual apelidou de “A Condição Humana”. Seguiu-se no mesmo ano o segundo filme Estrada para eternidade (1959) e, dois anos depois, o título que encerra a trilogia Uma prece de soldado (1961). “A Condição Humana” acompanha a história de Kaji ao longo dos três filmes, um jovem idealista, pacifista e socialista, que tenta manter os seus valores intactos e sobreviver num japão imperialista durante a 2ª Guerra Mundial.

A trilogia foi inspirada no livro homónimo de Junpei Gomikawa (que se divide em 6 volumes, publicado em 1958), e que narra de modo autobiográfico a experiência do escritor durante a guerra. Masaki Kobayashi utiliza o livro como ponto de partida para os seus filmes pois também ele viveu uma vida semelhante à de Gomikawa. O realizador foi forçado a alistar-se no exército imperial japonês – mesmo sendo objector de consciência – e a acarretar todos os problemas que surgiram devido a isto. Peter Grilli em entrevista a Kobayshi coloca questões que explicam a situação:

Q: Você tinha consciência antimilitarista naquela época?
R: Sim, mesmo nos meus tempos de estudante. A minha família sempre acreditou na liberdade pessoal. Eles eram muito dedicados a essa crença, então, mesmo depois da guerra começar e eu ser convocado, nunca gostei do exército ou dos militares. A única matéria que eu simplesmente não conseguia passar para me formar era a academia militar (kyôren). Eu simplesmente odiava, nunca frequentava as aulas, e boicotava-as sempre. Eles não me iam deixar passar, mas quem coordenava o curso apelou para o professor em meu nome e, finalmente, fui autorizado a formar-me; isto resume o quanto eu odiava o kyôren. Todos os meus amigos estavam muito preocupados com o que aconteceria com alguém como eu quando entrasse no exército.

Q: E o que aconteceu?
R: Bem, eu estive nas mesmas circunstâncias que Kaji enfrentou em A condição humana. Percebi que para sobreviver teria que disciplinar o meu corpo, senão não sairia vivo. Trabalhei muito, muito intensamente. O meu corpo tornou-se robusto, treinei-me conscientemente para me tornar tão forte para que nada pudesse tirar o melhor de mim. [5]

Com isto é possível entender que Kaji é uma espécie de duplo de Kobayashi no filme, enfrentando o mesmo tipo de adversidades que o realizador sofreu em vida. Tal como Kemp afirma: “Como Kaji, Kobayashi viu-se preso e involuntariamente implicado nas agressões do seu país durante a guerra.” [6] Após “A Condição Humana” ter sido terminada, a sua recepção foi controversa, embora hoje em dia se considere com unanimidade que é uma das grandes obras-primas da sétima arte, e um filme canónico no cinema japonês:

Mesmo mais de uma década após a guerra, ainda havia uma oposição generalizada a qualquer crítica ao regime de guerra do Japão – como, de facto, em alguns lugares, ainda existe hoje – e uma vez que o filme foi feito, Kobayashi foi atacado como anti-japonês por alguns dos seus compatriotas.

Kemp:2009

É com todo este enquadramento em vista que Não há amor maior se inicia, com Kaji acabado de terminar o seu curso. Os espectadores compreendem sobre o que incidiu a sua tese: nas condições dos campos de trabalho forçado, argumentando que melhores condições proporcionariam melhores resultados e que não é necessário maltratar os prisioneiros para se conseguir mais eficiência laboral. Ironicamente, ao se saber o conteúdo da tese de Kaji, compreende-se que este arranjou emprego, coincidentemente, como supervisor num campo de trabalhos forçados. Para o personagem principal do filme isto considera-se uma grande oportunidade de mostrar que os seus estudos, ideias e valores podem ser aplicados com sucesso prático no seu objecto de estudo. Kaji quer alterar o paradigma dos campos de trabalho, tornando-os locais melhores. No entanto, a realidade não é tão simples como Kaji pensara, nas palavras da escritora de cinema Andrea Grunert:

Ele chega ao campo de trabalho determinado a mostrar que melhores condições de vida levam a melhores trabalhos, mas descobre o quanto ele próprio faz parte de um sistema injusto. A sua rebelião é acompanhada por uma luta sem fim por uma integridade que mostra que não há heróis. [7]

De facto, Kaji tem a ingenuidade de assumir que é uma espécie de herói no campo; ele acredita convictamente que pode melhorar as condições de vida dos trabalhadores chineses: “Quando ele chega à mina, fica evidente que ele é culpavelmente ingénuo e arrogante, denunciando os seus colegas e acreditando que pode, sozinho, introduzir um tratamento mais humano aos trabalhadores chineses.” (Kemp:2009) Como se pode deduzir, tal não corre como o esperado; Kaji recebe todo o tipo de resistência dos seus pares e como é Japonês nem sequer consegue a simpatia dos prisioneiros chineses, que o vêm como inimigo.

Não há amor maior em vários aspectos parece recordar a personagem Cândido no livro homónimo de Voltaire, onde o seu optimismo e vontade de acreditar no “melhor mundo possível” o levam constantemente a desfechos trágicos que provam justamente o contrário. Tal como Kemp refere:

Para seu desespero, Kaji vê-se inextricavelmente envolvido no sistema que detesta; a sua nacionalidade é suficiente para condená-lo. […] As melhores intenções de Kaji viram-se contra ele. Os personagens vulneráveis ​​de quem ele tem pena e tenta proteger […] ficam em pior situação por causa das suas atenções.

Kemp:2009

Tal se verifica no clímax do filme, quando uma série de prisioneiros de guerra são eletrocutados e outros acabam por ser executados, tudo devido à ideia de Kaji de proporcionar mais autonomia a quem está preso no campo de trabalhos. [8] Kaji procurava um acordo entre presos e guardas de modo a existir uma confiança e respeito mútuo, mas acaba por perceber que ambas as partes são corruptas e não possuem morais. Os presos procuram imediatamente explorar o sistema assim que surge a mais pequena brecha (como talvez seja de esperar) e os guardas utilizam qualquer oportunidade que surja para admoestar com violência extrema. Neste estado de coisas, não existe forma de se conseguir um equilíbrio e Kaji acaba por ser punido pelos seus ideias, acabando por no final do filme ser enviado para o alistamento militar – onde servirá como soldado nos dois filmes seguintes – de modo a aliviar a pressão e incómodo que provocava nos seus chefes (igualmente corruptos). [9]A propósito disto Kemp indica o seguinte: “Os filmes de Kobayashi denunciam um sistema pútrido de cima a baixo, onde até os mais bem-intencionados se vêem implicados e arrastados para baixo e, finalmente, impotentes para efetuar reformas.” (Kemp:2009) Com efeito, Não há amor maior torna-se trágico nesta medida, ao vermos os esforços em vão de Kaji ao tentar mudar um sistema imutável em toda a sua estrutura.

Neste sentido, podemos verificar a presença da visualidade no filme de Kobayashi: por um lado temos o “complexo de visualidade” no campo de trabalhos forçados onde os trabalhadores são submetidos a esforços brutais e a violência gratuita, tudo por uma justificativa imperial que coaduna e protege quem pertence ao sistema, inserindo tudo isto dentro de uma forma de “visualidade 1”; por outro lado temos Kaji, que tenta resistir ao sistema vendo-se cada vez mais afundado nele e, reparando que o próprio sistema reage, adapta-se e corrompe quem nele se insere. Poderíamos considerar Kaji como uma forma de “visualidade 2”, na medida em que tenta de algum modo oferecer uma “contravisualidade” ao complexo imperialista. No entanto, algumas ressalvas têm que ser feitas a este respeito, de que nos passaremos a ocupar.

De acordo com Mirzoeff, a “visualidade 2” enquanto forma de contracultura insere-se na resistência subversiva às formas e estruturas impostas pela “visualidade 1”, de modo que Kaji não se pode totalmente inserir ali, pois as suas iniciativas entram em confronto directo com as estruturas de “visualidade 1”. Quer isto dizer que a melhor forma de considerar Kaji enquanto exemplo de “visualidade 2” seria se este nunca se tivesse juntado ao complexo imperialista japonês, mas claro, tal não aconteceu. Pelo facto de o protagonista aceitar o trabalho no “complexo de visualidade”, deixa imediatamente de possuir uma chance de criar uma contra narrativa, pois, como verificámos na parte anterior deste ensaio, a “visualidade 1” tudo consome, como afirma Kemp: “Esse compromisso moral crucial – aceitar um papel no sistema opressor para evitar um destino pior para si mesmo – é o primeiro passo no caminho descendente de Kaji.” (Kemp:2009) É por isso que, a partir do momento em que Kaji estabelece uma relação com o império, já não consegue sair dali porque deu início a um compromisso, com o agravante de que a hegemonia do poder imperial domina tudo e coage o protagonista a tomar acções contra a sua vontade e a viver de acordo com o ideário do império.

Não há amor maior insere-se dentro da prática cinematográfica de Kobayashi na medida em que reflecte acerca do conflito individual contra a corrupção hierarquizada e institucional — temas que o autor trabalhou ao longo do seu corpus, ao ponto de Grunert referir: ”A Condição Humana” […] [insiste] que a responsabilidade está dentro do sistema hierárquico, que tanto no passado como no presente, é parte integrante do modo de vida japonês. […] Kobayashi aborda a própria questão da história e o papel do indivíduo.” (Grunert:2016)

Apesar de o filme apresentar uma relação muito evidente entre a história e o indivíduo, não considero que seja correcto vê-lo enquanto apenas uma crítica ao sistema hierárquico. A responsabilidade não recai apenas na hierarquia, isto porque ela própria é feita de indivíduos e, neste sentido, em última análise aliás, a responsabilidade para que o filme aponta é individual. Se cada pessoa no filme partilhasse a mesma visão de Kaji, ou se cada pessoa tivesse um sentido de individualidade incorruptível, todo o sistema cairia. O “complexo de visualidade” existe no filme através de uma série de pessoas que abnegam o seu sentido próprio em prol de uma série de valores patrióticos; acima de tudo aceitam esta estrutura de poder e conformam-se dentro dela resignadas aos papéis que se lhe impuseram. Kaji acaba por sucumbir aos poucos a esta fel imperialista pois está sozinho, ou assim é mostrado, pois ninguém ousa levantar a voz, ninguém procura um caminho diferente ou formar uma nova narrativa. Aqui reside a grande moral de Não há amor maior, que não é propriamente um filme de ataque às hierarquias, mas sim uma obra que aponta para a exumação interior e força de espírito, onde o “amor maior” que o título refere se dirige ao amor próprio, à dignidade e aos valores certos, que não devem ser escondidos, que não devem ser conformados às estruturas de poder e que nunca devem vergar, mas sim permanecer verticais, sempre, custe o que custar.

Considerações Finais

Verificou-se através deste ensaio de que modo os pontos de vista em torno da “visualidade” proposta por Mirzoeff se configuram no filme de Kobayashi. Para isso iniciou-se uma análise em torno do conceito de visualidade dentro da actual acepção nos estudos da cultura visual, bem como dos diferentes desdobramentos que o conceito induz: a “visualidade 1” e a “visualidade 2”. De um lado a visualidade relacionada com os centros de poder, que tudo engloba e consome, do outro, a possibilidade de criação de uma “contravisualidade”, numa série de processos que procuram desconstruir os centros de poder, não através de um conflito, de uma luta com o centro, mas de um trabalho na sombra, na periferia, que permita aos poucos criar sistemas alternativos a este tipo de estruturas dominantes.

Foi também definido aquilo em que consistia um “complexo de visualidade” e observou-se no filme Não há amor maior a sua presença no espaço do campo de trabalhos forçados. O objecto fílmico de Masaki Kobayashi permitiu compreender que a “visualidade 1” é extremamente difícil de destruir e combater com acções directas e que a melhor forma de enfrentar a hegemonia totalitarista, e actualmente capitalista, poderá ser através de acções subversivas, periféricas, que se insiram num plano de “visualidade 2”, permitindo através da divulgação de novas práticas sociais, da tomada de consciência cívica e individual, caminhar para um mundo mais equilibrado, e onde o indivíduo possa ter um espaço para viver e sonhar longe das pressões do grande capital, dos productos produzidos em massa sem qualquer valor material, da gentrificação citadina e dos trabalhos precários.

Que este ensaio sirva como reflexão acerca dos modos com os quais os centros de poder perpetuam o seu controlo social através de um exemplo concreto numa obra de arte que se debruça sobre estas mesmas preocupações e nos oferece uma chave para resolver o problema: através do esforço de cada um, da consciência individual, o mundo pode ser mudado, mas a mudança deve partir de cada um de nós, antes de fazermos parte do coletivo. São os cidadãos quem pode escolher um caminho diferente e alternativo ao modelo dominante, tal como ilustrado nas palavras finais de José Régio em Cântico Negro (1926): “Não sei por onde vou, /Não sei para onde vou, /Sei que não vou por aí!”

Bibliografia

Publicações

Mirzoeff, Nicholas.

On Visuality, Journal of Visual Culture, 2006

The Right to Look, Critical Inquiry, The University of Chicago Press, 2011

Referências Online

Grilli, Peter.

Interview with Masaki Kobayashi, 1993

http://eigageijutsu.blogspot.com/2011/12/interview-with-masaki-kobayashi.html, acedido em 29-01-2023

Grunert, Andrea.

Kobayashi, Masaki, 2016

https://www.sensesofcinema.com/2016/great-directors/masaki-kobayashi/, acedido em 29-01-2023

Kemp, Philip.

The Human Condition: The Prisoner, 2009.

https://www.criterion.com/current/posts/7415-the-human-condition-the-prisoneracedido em 29-01-2023, acedido em 29-01-2023

Filmografia

Kobayashi, Masaki.

Não há amor maior, 1959

208 minutos, preto e branco, 2.35:1, mono

Riefenstahl, Leni.

O Triunfo da Vontade, 1935

114 minutos, preto e branco, 1.37:1, mono

Anexo

Figura I

Plano d’O Triunfo da Vontade (1935) de Leni Riefenstahl, que demonstra o complexo nazi e a sua encenação de poder.

Figura II

Plano de Não há amor maior (1959) de Masaki Kobayashi. Kaji figura em primeiro plano, no contra campo vemos a punição dos prisioneiros de guerra após terem tentado fugir, devido à redução de segurança proposta por Kaji.

Figura III

Plano de Não há amor maior (1959) de Masaki Kobayashi. Numa das últimas cenas do filme, vemos Kaji perplexo, com a carta de alistamento militar na mão. Os seus ideais puros não prevalecem num mundo corrupto.

  1. Mirzoeff, Nicholas. On Visuality, Journal of Visual Culture, 2006 – excerto retirado do resumo da publicação.

  2. Crary, Jonathan. Techniques of the Observer, 1991 – citado por Mirzoeff, 2006, p.64.

  3. Mirzoeff, Nicholas. The Right to Look, Critical Inquiry, The University of Chicago Press, 201, p.474

  4. Ver no anexo a figura I

  5. Grilli, Peter. Interview with Masaki Kobayashi, 1993

  6. Kemp, Philip. The Human Condition: The Prisoner, 2009

  7. Grunert, Andrea. Kobayashi, Masaki, 2016

  8. Ver no anexo a figura II, que mostra o desfecho das boas intenções de Kaji num mundo corrupto e imoral.

  9. Ver no anexo a figurra III, que mostra Kaji com a carta de alistamento militar.