O Discurso sobre a Roma Antiga em Olavo de Carvalho

Análise da retórica utilizada por Olavo de Carvalho em relação à história da Roma Antiga. Texto de Daniel Pradera Corrêa Guimarães, graduado em História – UNIRIO. Revisão de João N.S. Almeida. Imagem: Mauro Ventura, em www.olavodecarvalho.org.

Resumo: O presente artigo propõe uma análise da retórica utilizada por Olavo de Carvalho em dois de seus textos: Guerras Santas e Cem Anos de Pedofilia. Esses dois artigos são utilizados como exemplos do tratamento que Carvalho possui em relação à história romana e, por conta disso, serão utilizados trechos desses textos como exemplos de sua retórica sobre Roma. O objetivo deste artigo é comparar a perspectiva do autor sobre a Roma antiga com a literatura produzida sobre as particularidades que ele aborda, e entender qual é a tópica, e que elementos e técnicas argumentativas ele utiliza na redação desses textos, compreendendo esses fatores principalmente através da teoria postulada por Cícero e Chaim Perelman, além de utilizar Aristóteles para a análise das paixões no discurso.

Palavras-chave: Retórica; Roma; Discurso.

Abstract: This paper deals with an analysis of the rhetoric used by Olavo de Carvalho in two of his texts: Holy Wars and One Hundred Years of Pedophilia. These two articles are used as examples of Carvalho’s treatment of Roman history and, as such, excerpts from these texts will be used as examples of his rhetoric about Rome. The aim of this article is to compare the author’s perspective on ancient Rome with the literature produced on the particularities he addresses, and to understand what is the topic, and what elements and argumentative techniques he uses in the writing of these texts, understanding these factors mainly through the theory postulated by Cicero and Chaim Perelman, besides using Aristotle for the analysis of passions in discourse.

Palavras-chave: Rhetoric; Rome; discourse.


Introdução

O artigo em questão busca compreender e analisar a construção retórica da perspectiva de Olavo de Carvalho em relação à história da Roma antiga. Por mais que esse não seja um tema em que ele aborde constantemente, é possível notar o nível da sua compreensão sobre o assunto a partir de poucas referências que ele faz à história romana em seus artigos jornalísticos, sempre em comparação com a contemporaneidade.

Olavo Luiz Pimentel de Carvalho é um autoproclamado filósofo conservador do estado de São Paulo, baseado atualmente em Virgínia, nos EUA. Por mais que seja um escritor ativo desde a década de 1980, foi em 1996, com a publicação de O Imbecil Coletivo, que ele foi introduzido no rol do conservadorismo brasileiro. Ele é considerado como o ‘guru’ do governo do presidente Jair Messias Bolsonaro, tendo sido responsável pela indicação de dois ministros em sua candidatura (PORTINARI, 2018).

Dessa forma, a sua influência no alto escalão da política brasileira já indica que ele é um personagem importante da política brasileira contemporânea, e é precisamente nessa razão que está a importância de se entender seu pensamento. Se Olavo de Carvalho é uma profunda influência na presidência de Jair Bolsonaro, e também na chamada ‘nova direita’ brasileira, mesmo sendo um título o qual ele rejeita (RITTNER, 2019). Tendo isso em vista, é de extrema importância que seu pensamento seja compreendido de uma forma a se entender a ascensão da ‘nova direita’ no Brasil, e sua referência aos clássicos nos seus escritos rendem um importante exemplo de como ele conduz a sua retórica e a forma a qual ele entende a história.

Serão dois os artigos trabalhados em que ele cita diretamente o Império Romano para fins de comparação com o mundo contemporâneo. O primeiro deles é Guerras Santas (CARVALHO, 2000), em que Olavo de Carvalho disserta sobre a salvação do mundo antigo e seus costumes bárbaros através do cristianismo e do islamismo, e como as guerras de conquista, e o derramamento de sangue que se prosseguiu, em que essas duas religiões se envolveram podem ser justificadas através dessa narrativa de salvação.

Outro artigo que será utilizado como exemplo para este trabalho é Cem Anos de Pedofilia (CARVALHO, 2002), em que ele estabelece uma comparação entre a pederastia grega e o estatuto e relacionamento dos pueri delicati romanos como uma relação de pedofilia, algo que teria sido exterminado pelo cristianismo, mas que retornaria para a cultura europeia com o pontapé inicial vindo de Sigmund Freud, terminando na controvérsia de Rind et al., tratando a cronologia dos estudos sobre a sexualidade humana como uma busca pela justificação da pedofilia, que é como ele chama a relação sexual entre adultos e menores de idade, e a associa à infiltração de homossexuais no clero católico.

A partir desses dois exemplos, o objetivo principal é analisar a retórica e a tópica de Olavo de Carvalho em relação aos costumes romanos, e verificar se essa tópica está diretamente relacionada com um discurso moralista e apologético cristão ou se é uma perspectiva associada ao perenialismo (GUIMARÃES, 2019). No mais, as concepções de Olavo de Carvalho serão comparadas com a historiografia, a fim de identificar os possíveis erros de intepretação e corrigi-los quando assim for necessário, além de buscar possíveis falácias em seu discurso sobre a Roma antiga. A tópica e a retórica serão analisadas a partir de Cícero (REINHARDT, 2006) e na Retórica das Paixões de Aristóteles (2000).

Guerras santas

O artigo Guerras Santas (CARVALHO, 2000) foi escrito por Olavo de Carvalho para a revista Bravo!, em novembro de 2000. O foco do artigo, por mais que seja a justificação da expansão do cristianismo e do islamismo no período medieval, trata o mundo antigo como um todo, ainda que citando o Império Romano como um exemplo, como um mundo de comportamentos tirânicos em relação aos ‘mais fracos’. Ou seja, aqueles que são socialmente vulneráveis, e que esse tipo de comportamento foi erradicado na história somente com a ascensão do cristianismo e do islamismo, e que todas as chamadas ‘guerras santas’ ocorreram como uma tentativa de salvação das almas das pessoas de forma a redimi-las desse cruel comportamento das sociedades antigas, recorrendo a uma generalização abusiva. Em relação a isso, ele postula:

Grande parte das culturas antigas concedia aos chefes, aos guerreiros e poderosos o direito de livrar-se, quando bem entendessem, dos fracos indesejáveis. Crianças, velhos e doentes podiam ser mortos por simples capricho de homens jovens e saudáveis que não queriam trabalhar para sustentá-los. Isso foi assim durante milênios. Foi assim no Egito, na Babilônia, no Império Romano, na China, na Arábia pré-islâmica. […] O número de inocentes enterrados vivos, queimados, entregues às feras ou despedaçados em rituais sangrentos em nome dessa lei bárbara é incalculável. […] O morticínio permanente só foi interrompido graças à ação de duas forças que emergiram bem tarde no cenário da História: o cristianismo, no Ocidente, o islamismo no Oriente (CARVALHO, 2000).

É importante ressaltar que, especificamente no exemplo citado, o Império Romano é mencionado em relação à outras culturas antigas, como a mesopotâmica. É notável, também, a ausência de um exemplo mais contundente para fazer com que seu argumento possuísse algum tipo de fundamento adicional. Portanto, culturas que são radicalmente diferentes, como aquelas mencionadas no texto, são unidas somente pelas suas “leis bárbaras”.

Dessa forma, para o orador, no caso Olavo de Carvalho, as diferenças culturais nos exemplos que ele citou são apagadas em favor da prática de “leis bárbaras”. Isso faz com que o mundo antigo, para Carvalho, seja unificado pela exploração e matança daqueles que são socialmente vulneráveis, algo que, em sua perspectiva, encontraria seu fim com a ascensão do cristianismo e do islamismo.

A afirmação que Olavo de Carvalho faz de que as culturas antigas matavam pessoas ‘inválidas’ de forma aleatória e ao bel prazer das classes dominantes, historicamente, não faz sentido. De todo modo, no exercício da retórica, o orador não necessariamente tem a obrigação de falar a verdade, sendo isso algo que está mais ligado com o auditório, ou seja, o alvo da argumentação (PERELMAN, 1987). Isso ocorre porque, no ato da argumentação, a verdade não é uma preocupação objetiva, mas a maior importância é dada para o fundamento daquilo que está sendo argumentado. No exemplo citado, no entanto, mesmo não havendo fundamentação verossímil e nem sólida, fazendo com que a justificativa da argumentação seja ineficiente ao olhar técnico, ele alcança de forma plena o auditório universal, o que faz com que o argumento em si seja perigoso pela sua capacidade de persuasão, que está baseado na erística.

Essa verossimilhança, no entanto, é algo com o qual ele deliberadamente falta com um objetivo claro: passar a ideia de que a antiguidade, e ‘grande parte’ de suas culturas, com a notória exceção dos judeus que ele menciona nesse texto (CARVALHO, 2000), era bárbara por não ser cristã, judaica ou muçulmana. Tendo isso em vista, esse argumento possui um objetivo claro: a de uma espécie de civilização do mundo através da religião cristã e islâmica. Dessa forma, a partir desse discurso, Olavo de Carvalho lança o peso do processo de civilização do mundo nas costas do cristianismo e do islamismo, excluindo os judeus por sua falta de preocupação no ato do proselitismo.

Para chegar a essa conclusão, Carvalho usa do artifício retórico da ex differentia, como mencionada por (Cic. Top. 3.11).  Essa tópica tem como base o estabelecimento de uma diferença moral entre dois exemplos: a primeira de um mundo antigo, não só romano, como guiado pela barbárie, e a segunda de um mundo civilizado através da religião, especificamente da religião cristã e muçulmana. A partir disso, Olavo de Carvalho cria um sentimento de desprezo por aquilo que veio antes, enquanto existe a tentativa de evocar uma admiração à ordem vigente, principalmente em relação ao cristianismo e ao islamismo.

O tipo de argumentação utilizada é aquele da argumentação pelo exemplo. De acordo com Chaim Perelman (1987, p. 258-259), a argumentação pelo exemplo tem como finalidade o estabelecimento de um modelo a ser comparado com uma determinada situação. Nesse caso, de Carvalho estabelece o mundo antigo como um local de barbárie, em que havia uma recorrente tirania, e execuções sumárias, de todos aqueles que rejeitassem os desígnios de uma classe dominante corrompida pelo poder; esse seria, segundo Perelman, o antimodelo. O modelo estabelecido por de Carvalho em contrapartida a esse mundo antigo bárbaro é o modelo cristão e o muçulmano, que erradicaram absolutamente as atitudes tirânicas que ocorriam antes de seus respectivos adventos.

A antítese evocada por Olavo de Carvalho é, precisamente, a mesma antítese evocada na Idade Média para contrapor as religiões politeístas, que como já foi mencionado anteriormente, é algo que todas as culturas antigas citadas por de Carvalho tem em comum. No entanto, ele relaciona diretamente a ideia de civilização com as religiões abraâmicas, dando um novo contorno à ideia de civilização que a Idade Média construiu, como assim foi postulado por Norbert Elias (1994, p. 69). Para Elias, o conceito de civilização é um eco da cristandade latina, que surgiu no século XVI, mas que foi apropriado pelos intelectuais da burguesia francesa e alemã a partir do século XVIII como uma tentativa de autoafirmação dessa classe em relação aos conflitos sociais emergentes. Mas, mais importante, o conceito de civilização foi construído em oposição à barbárie, que é como de Carvalho define a antiguidade.

Talvez, o mais curioso nesse fragmento do discurso é que ele rompe com o conceito tradicional de civilização para definir as religiões politeístas da antiguidade como a barbárie, enquanto afirma todas as religiões abraâmicas, e não só o cristianismo, como religiões civilizadoras, o que vai de oposição à construção histórica do conceito de civilização como assim foi delineada por Elias (1994, p. 69). Ainda assim, ao relegar a antiguidade à barbárie, existe um reconhecimento de que a sua época posterior, a Idade Média, foi um grande arauto civilizatório, o que coincide, parcialmente, com os ecos da cristandade latina.

Sendo a perspectiva em questão uma interpretação própria, ainda que não leve em consideração a sociogênese do conceito, de Carvalho se alinha com um posicionamento de que o cristianismo esteve presente em uma missão civilizatória na transição da antiguidade para a Idade Média, e isso é utilizado como justificativa para as chamadas ‘guerras santas’, que acabam dando nome ao título de seu artigo.

Cem anos de pedofilia

O artigo Cem Anos de Pedofilia (CARVALHO, 2002) tenta estabelecer uma cronologia dos estudos sobre a sexualidade humana, escolhendo como critério de continuidade a tentativa de justificação da relação sexual entre menores de idade com adultos, que, segundo Olavo de Carvalho, foi erradicada no mundo ocidental somente com a ascensão do cristianismo. A tentativa de correlação entre a pedofilia e as práticas sexuais romanas vem logo no início do texto em questão, que diz: “Na Grécia e no Império Romano, o uso de menores para a satisfação sexual de adultos foi um costume tolerado e até prezado. […] Por toda parte onde a prática da pedofilia recuou, foi a influência do cristianismo — e praticamente ela só — que libertou as crianças desse jugo temível.” (CARVALHO, 2002).

A primeira coisa que chama a atenção no argumento é a utilização de um termo da psiquiatria, que é pedofilia, para caracterizar a relação sexual entre menores e adultos. De acordo com Michael Seto (2008), a pedofilia não é caracterizada exclusivamente por uma relação sexual entre adultos e crianças, mas sim um transtorno que faz com que uma pessoa se sinta sexualmente atraída somente por crianças em estágio prepubescente. Portanto, esse termo não pode caracterizar as dinâmicas da sexualidade romana. A partir de uma perspectiva erística, no entanto, o auditório universal se vê convencido já que o termo foi calcado a partir de uma perspectiva equivocada das relações de pederastia, e isso é o suficiente para que o texto seja convincente a um público geral.

Quando Olavo de Carvalho busca associar o que ele denomina por pedofilia, o que vai contra o que o conceito de fato aborda, às práticas sexuais romanas, ele está se referindo às relações que envolvem um puer delicatus. Por mais que o emprego dos pueri delicati em relações homossexuais tenha sido uma característica cultural romana, em que a noção de masculinidade era mais pautada pelo ato da penetração do que pelo relacionamento homossexual (WILLIAMS, 2010, p. 18), é importante ressaltar que o que de Carvalho trata por ‘pedofilia’, cuja correlação com as dinâmicas sexuais da antiguidade e medievo é anacrônica, e também ocorria livremente no mundo cristão.

É importante ressaltar, também, que os pueri delicati tinham um estatuto diferenciado na sociedade romana. Apesar de serem escravos sexuais, nada indica que os homens romanos mantinham relações sexuais somente com eles. Pelo contrário, o ideal de virilidade romano estava na ideia de penetração, ou seja, o verdadeiro homem deveria penetrar todos aqueles que estivessem dispostos ao intercurso sexual, sejam mulheres, escravos adultos e, até mesmo, os pueri delicati, já que a virilidade romana estava diretamente associada ao pênis (WILLIAMS, 2010, p. 183-184). No entanto, para o ideal de virilidade romana, é de que o homem não se mantivesse exclusivamente com um tipo de pessoa. A ideia de repulsa a esse tipo de atitude só ocorreu muito mais tarde, com o desenvolvimento e a internalização do conceito de infância.

De acordo com Olavo de Carvalho, a pedofilia seria somente a ‘utilização de menores para satisfação de adultos’, que ocorria até certo grau no que de Carvalho chama de “mundo cristão”, ainda que na época medieval ou moderna. De acordo com Philippe Ariés (1965), no que diz respeito ao século XVII: “O casamento de um garoto de catorze anos talvez estivesse se tornando uma ocorrência rara. O casamento de uma garota de treze anos ainda era muito comum” (1965, p. 102-103).  Isso implica que o casamento infantil, principalmente de mulheres, era uma ocorrência bastante comum no século XVII. Isso não era um evento isolado.

Outro exemplo de que o cristianismo não erradicou com o intercurso sexual entre crianças e adultos é um proposto por Elizabeth Archibald (2007, p.93), que afirma que a maioridade na Idade Média poderia variar entre os 12 aos 17 anos, idade essas as quais era possível ter intercurso sexual. Como de Carvalho trata a pedofilia como a relação entre menores de idade e adultos, então esse tipo de relação medieval se encaixa no seu conceito de pedofilia, o que contradiz a sua afirmação de que o cristianismo erradicou essa prática.

Além disso, Archibald afirma que, na literatura medieval, o incesto entre adultos e crianças era algo comum, principalmente a partir do século XII (2007, p. 86). Um dos motes da relação incestuosa medieval era entre pai e filha, em que o pai via a filha atingir uma idade típica para o casamento e passava a desejar possuí-la, sem entregá-la para casar-se com outro homem. O cristianismo, portanto, não funcionou como uma barreira moral que magicamente impediu a relação sexual entre adultos e crianças, como busca afirmar Olavo de Carvalho.

Entre razões e emoções

Tendo em vista a análise desses dois exemplos, podemos perceber que os dois seguem, basicamente, a mesma lógica e função retórica. Os dois textos utilizam a mesma criação de um modelo, sendo esse modelo o cristão, e um antimodelo, sendo esse a Roma antiga. Seguindo a teoria de argumentação de Perelman (1987), a técnica argumentativa do exemplo é aquela que é utilizada como um argumento que tem como propósito o fundamento da estrutura do real. No entanto, um argumento precisa ser verossímil, não necessariamente verdadeiro, e essa argumentação pelo exemplo e modelo acaba se demonstrando como falsa a partir da análise literária sobre os temas em questão.

No entanto, esse não é o único artifício retórico utilizado por Olavo de Carvalho em seu discurso sobre a Roma antiga. Seguindo a teoria retórica de Cícero, a tópica do discurso presente nessas duas obras é a de ex differentia. A ideia por trás desse recurso retórico é a da criação de uma diferença entre dois argumentos em questão. Isso se faz presente nos textos mencionados a partir da criação da dicotomia entre cristianismo e a cultura romana. A interpretação de diferença para Cícero, no entanto, é complexa. Cícero pode estar tratando da differentia como uma differentia specifica (REINHARDT, 2006, p.225-226), mas a differentia postulada por Olavo de Carvalho em sua retórica sobre Roma é uma differentia que se calca em postulados genéricos, se aproximando mais do tipo de argumentação pelo exemplo de Perelman.

Além disso, a argumentação de Olavo de Carvalho, por não conseguir alcançar o auditório universal com base em uma argumentação sólida, devido aos diversos equívocos na interpretação da história e da psicologia, demonstra uma falta de conhecimento que faz com que seu discurso seja incapaz de convencer aqueles que possuem um repertório mais completo sobre os assuntos que ele trata. Portanto, boa parte da argumentação de Olavo de Carvalho é baseada em uma retórica patética, ou seja, com base nas paixões. Na perspectiva de Aristóteles (Arist. Rh. 2.1), as paixões são sentimentos que alteram a percepção que um receptor tem do discurso.

Existe um tipo específico de paixão que de Carvalho procura evocar em sua retórica, e esta é o ódio. Ao estabelecer Roma como o antimodelo, e o cristianismo como um tipo de salvador universal dos costumes bárbaros, de Carvalho busca evocar o sentimento de ódio em seus ouvintes. Diferente da cólera, o ódio tem como pressuposto a negação e rejeição completa de uma classe inteira. Também diferente da cólera, que é uma paixão que é direcionada, segundo Aristóteles, o ódio é direcionado às classes inteiras de pessoas, sendo assim mais generalizadora (Arist. Rhet. 2.4)

No caso dos textos tratados, o ódio é direcionado ao período da história anterior à supremacia cristã, principalmente no que diz respeito à Roma antiga, atingindo assim toda a sociedade e condenando-a por não cumprir os costumes que ele mesmo impôs ao passado. Para fundamentar esse sentimento, Olavo de Carvalho se apropria de argumentos da apologética cristã, principalmente ao afirmar que a responsabilidade de salvação do mundo está nas costas do cristianismo. Além disso, sua retórica é extremamente similar àquela presente na Epístola de Paulo aos Romanos, principalmente no que diz respeito à sexualidade, em que o apóstolo Paulo afirma:

Por isso Deus os abandonou a paixões infames. Porque até as suas mulheres mudaram o modo natural de suas relações íntimas por outro, contrário à natureza. Semelhantemente, os homens também, deixando o contato natural da mulher, se inflamaram mutuamente em sua sensualidade, cometendo torpeza, homens com homens, e recebendo, em si mesmos, a merecida punição do seu erro (BÍBLIA, Romanos, 1, 26-27).

Dessa forma, o discurso de Olavo de Carvalho sobre a Roma antiga não está necessariamente calcado em uma perspectiva da escola tradicionalista do perenialismo, cujo qual João Pedro Guimarães (2019, n. p.) afirma que está presente de forma pervasiva no seu trabalho. O que marca a perspectiva de Olavo de Carvalho nos dois exemplos mencionados não é o perenialismo tradicionalista, mas sim uma forma de apologética cristã, que não se relaciona com a ideia que foi postulada por Guimarães.

O pathos voltado para o ódio acaba se tornado a característica principal dos dois textos de Olavo de Carvalho, já que ele não é estruturado a partir de argumentos particularmente convincentes, mas sim, apela diretamente à paixão dos receptores de seu discurso. De acordo com Franz van Eemeren e Rob Grootendorst (2016, p 134), o apelo às emoções acaba sendo considerado como uma falácia patética, da qual eles tratam, genericamente, como argumentum ad populum. Ao apelar para o cristianismo como civilizador do mundo, de certa forma, Olavo de Carvalho também está apelando para uma determinada maioria, a que ele busca convencer não através do conhecimento, mas sim manipulando suas emoções.

Esse apelo direto às emoções pode criar empecilhos para a discussão de determinados assuntos na tentativa de criar um tabu em cima deles, acusando-o de palavras carregadas pejorativamente, como pedofilia. Isso contribui, de certo modo, à ascensão do anti-intelectualismo. Como as informações históricas demonstradas por Olavo de Carvalho são falsas, ou no mínimo interpretadas de forma equivocada, elas podem ser interpretadas, de certa forma, como fake News, que de acordo com Ivan Hegenberg (2019, p. 103), são notícias falsas que servem para manipular politicamente um público. No entanto, esses assuntos não são contemporâneos, eles estão bem estabelecidos na historiografia e foram distorcidos.

Considerações parciais

Ao apelar para as emoções de seus receptores, Olavo de Carvalho constrói uma retórica que se baseia em uma interpretação mais fundamentalista do cristianismo, construindo uma diferença entre a cultura romana e a cultura cristã, e trazendo uma perspectiva de que o cristianismo erradicou todos os comportamentos que ele considera imoral na sociedade romana, o que vimos ao longo desse artigo que não é verossímil, e é incompatível com a literatura produzida sobre os temas abordados.

Boa parte dos argumentos propostos por de Carvalho está construída em uma noção de história que não é verdadeira, ou seja, quando não é baseada em fatos, omite-os deliberadamente para dar uma noção de um mundo antigo bárbaro com um mundo civilizado através do cristianismo e, em um caso específico, do islamismo. Dessa forma, a localização do argumento e sua razão de ser é a ideia do choque civilizatório, entre o mundo da religião organizada e o mundo bárbaro, de uma forma em que um “triunfa” sobre o outro, e erradica completamente os seus costumes retrógrados. Esses argumentos estão pautados, principalmente, nas falácias patéticas e no argumentum ad populum como uma forma de evocar os sentimentos do público.

Portanto, Olavo de Carvalho, na sua perspectiva em relação à Roma antiga, se afasta dos preceitos perenialistas e se aproxima calorosamente da apologética cristã, utilizando argumentos patéticos para criar uma diferença entre os romanos e cristãos, ao mesmo exemplo uma visão descontextualizada da epístola do apóstolo Paulo aos romanos. Enquanto isso, toda a perspectiva que ele tem em relação à história de Roma é pautada pelo ódio aquilo que ainda não é cristão, ainda que ele falte com a verdade.

REFERÊNCIAS

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