Não há hoje argumentista norte-americano mais conhecido no mundo do que Charlie Kaufman. A influência do seu nome é tão notória que os filmes mais celebrados cujos argumentos escreveu e não realizou — como Being John Malkovich (1999), Adaptation (2002) e Eternal Sunshine of The Spotless Mind (2004) — são referidos como se tivessem sido realizados por ele.
Imagens: Fotogramas de Adaptation (2002), Synecdoche, New York (2008) e I’m thinking of endings things (2020). Ensaio de Cristiano Jesus. Revisão de João N. S. Almeida.
Este artigo contém spoilers.
Não há hoje argumentista norte-americano mais conhecido no mundo do que Charlie Kaufman. A influência do seu nome é tão notória que os filmes mais celebrados cujos argumentos escreveu e não realizou — como Being John Malkovich(1999), Adaptation (2002) e Eternal Sunshine of The Spotless Mind (2004) — são referidos como se tivessem sido realizados por ele. Com efeito, trata-se de uma imprecisão, de um erro; porém, é revelador da força criativa de Kaufman. Estando nós numa época que vive a realidade do cinema de autor (em que o realizador tem o domínio de todo o processo criativo do filme, não ficando só com a tarefa da realização) — fruto da mudança dos próprios modos de produção da indústria cinematográfica e do legado da Nouvelle Vague que instituiu o realizador como o “autor” do filme —, a figura do argumentista “desvaneceu-se”. Ele assemelha-se a um espectro que povoa o início das rodagens sem saber muito o que vai lá fazer, desaparecendo em seguida sem que quase ninguém o tenha notado durante o tempo em que lá esteve (o alter ego de Kaufman, em Adaptation, demonstra-o sarcasticamente na visita ao set de Being John Malkovich). O guião é um objecto efémero, de natureza transitória destinado a metamorfosear-se no objecto fílmico; daí os argumentistas se afastarem assim que concluem o guião, pois quem tem a palavra final é o realizador e, por isso, a sua presença durante a rodagem é inútil.

O facto de a acumulação de funções ser uma prática corrente tem as suas razões. Por um lado, ao escreverem os seus próprios guiões (Wes Anderson, Quentin Tarantino, irmãos Coen, etc.) com os temas e obsessões que lhes interessam, uma vez que já sabem que vão realizar aquele filme, os realizadores garantem que determinados momentos, para si importantes, não são alterados — em suma, preservam a “veia autoral” que a mão do produtor tende a modificar; pelo outro, não têm de justificar as mudanças ou aniquilações à última hora de desfechos, personagens e cenas que, na visão dos argumentistas, costumam ser vistas como um desrespeito pelo seu trabalho. Para evitar os mal–entendidos entre aquele que escreve e aquele que filma, o ideal é encontrar um realizador disposto a colaborar com o argumentista de forma a transpor para imagens uma visão comum que agrade e faça sentido para os dois. Charlie Kaufman encontrou em Spize Jonze (Being John Malkovich, Adaptation) e Michel Gondry (Human Nature, Eternal Sunshine…) essa colaboração frutífera. Estes dois realizadores são responsáveis pela realização de quatro dos cinco argumentos que escreveu, antes de ter passado ele próprio para essa função, em 2008, com Synecdoche, New York. Transição natural, diga-se, se tivermos em conta a frase de Éric Rohmer: «O argumentista é um romancista que não se sente muito à vontade ou alguém que deseja tornar-se realizador»[i]. Se Kaufman é um romancista pouco à vontade, só o tempo o dirá, visto que publicou este ano o seu primeiro romance, Antkind. 2020 é também o ano em que é estreado I’m Thinking of Endings Things, o seu terceiro filme enquanto realizador.
Poucos são os argumentistas que conseguem uma presença tão forte no mundo mediático e que o seu nome seja recordado pelo público nas discussões que se formam depois dos filmes, já que a estatura dada ao realizador ensombra o seu trabalho. E que o diga a história apócrifa de Robert Riskin e Frank Capra, difundida por David Rentils, argumentista de Hollywood, que garante a veracidade do acontecimento, embora este tenha sido negado pelo próprio Capra. Riskin, argumentista de cinco filmes de Capra, ao reparar que o realizador tomava todo o crédito na criação dos filmes, um dia chegou ao pé dele e deu-lhe um guião com 100 páginas em branco e disse-lhe: «Here Frank, put the Capra touch on this»[ii]. Ter, então, Kaufman mais protagonismo do que os realizadores parece um caso estranho, mas não inexplicável. Ainda que o cinema seja um trabalho colaborativo, os seus filmes evocam-nos um Kaufman absorto no seu mundo, sozinho diante da página em branco, enfrentando aquilo que o acossa. Os seus argumentos têm um valor em si mesmo, independentemente do realizador com quem trabalhe, o que contribui para o seu reconhecimento lato numa indústria que evidencia há algum tempo a falta de ideias. Kaufman tornou-se sinónimo da surpresa e da estranheza, adjectivo este que nos leva também até ao mundo e as vivências das suas personagens. Para categorizar os seus filmes, inventou-se o adjetivo kaufmanesque (kaufmaniano), em certa medida parente de kafkaesque (kafkiano), mas não necessariamente devedor. O escritor Franz Kafka é uma das suas referências literárias, juntamente com Samuel Beckett. Na sétima arte, elege David Lynch como o realizador mais importante para si, mas também admira os irmãos Coen e Roy Andersson. Quando confrontado com a invenção do neologismo por parte do público, Kaufman responde desconhecer o significado. Será que se refere ao que é «onírico? surreal? esquisito?», questiona. Estes adjectivos costumam ser mais prejudiciais do que benéficos porque aquilo que fazem é criar categorias nas quais se arrumam as obras sem discuti-las. Gera-se, então, um comentário paralelo que já nada tem que ver com a obra em si, mas somente com aquilo que se diz sobre os filmes ou sobre a natureza — dita excêntrica ou bizarra — atribuída aos seus argumentos. A propensão para criar mitos não é uma surpresa. O alerta deixado num excerto de um diálogo do seu filme mais recente assim o demonstra: «Todos sabem isso [o suicídio de D. F. Wallace]. Mesmo as pessoas que não saibam mais nada sobre David Foster Wallace, nunca leram uma palavra dos seus escritos. O suicídio torna-se a história. A mitologia». Os adjectivos são também usados para tentar criar o próximo “argumento original”, como se a originalidade fosse somente a junção de determinados ingredientes que se acham à superfície. É preciso muito mais que o domínio técnico da “forma”. Captar a originalidade de Kaufman é semelhante ao magistério do alquimista na criação da pedra filosofal, mais propenso para o falhanço que o sucesso. A dificuldade reside no manejamento da vulgaridade que não é rejeitada por si e é parte integrante da sua originalidade. Disse Hitchcock: «Mais vale partir do estereótipo, do que chegar até ele»[iii]. A obra de Kaufman empenha-se em encontrar uma definição do que é ser humano, uma experiência universal. São mais as dúvidas do que as certezas como pode ser percebido através de Michael (Anomalisa) na sua confusa palestra sobre o apoio ao cliente em Connecticut: «O que é ser humano? O que é sofrer? O que é… estar vivo? Não sei. O que é sofrer? Não sei. O que é estar vivo? Não sei». No entanto, confessar o desconhecimento de um assunto não é sinal de ignorância, mas de sabedoria (ou de cautela, pelo menos), como nos lembra o ensinamento popular de Sócrates. Este artigo tem como objectivo demonstrar, através duma visão transversal da sua filmografia, que Kaufman sabe bem mais do que aquilo que o diálogo anterior deixa transparecer.
As personagens de Kaufman habitam um quotidiano mundano que, juntamente com uma autoconsciência crítica, lhes agudiza a sensação de viverem uma vida sem sentido. Para escaparem a esse absurdo, refugiam-se em “abstrações”, por mais temporárias que sejam (a cabeça de Malkovich, as memórias de Joel, a peça maior que a vida de Caden, o quarto de hotel em Connecticut, a imaginação de Jake), para não viverem o horror que as cerca. Estão no mundo real apenas durante uma fracção de segundos e a percepção de que o tempo se esgota lança as personagens num estado neurótico (obsessões, falta de empatia, ansiedade, angústia). Em Eternal Sunshine…, Clementine diz sentir-se sempre ansiosa por pensar que não vive a vida ao máximo, que tem medo de não aproveitar todas as oportunidades que lhe apareçam e que faz de tudo para não perder um segundo que seja do seu tempo. É a através da consciência do tempo, do facto de as personagens kaufmanianas saberem que «todos corremos para a morte» (Caden Cotard em Synecdoche, New York) que respondem à pergunta do que é ser humano. Referi as palavras de Caden, como também podia ter referido as de Michael: «O nosso tempo é limitado». Diante aquela inevitabilidade, elas procuram incansavelmente uma ligação íntima com alguém, tal qual a empresa de Susan Orlean e John Laroche em busca da Orquídea Fantasma (Adaptation) — símbolo do amor desinteressado, genuíno, único, pleno, mas fugaz e inatingível.
As relações humanas parecem ser mais fonte de sofrimento do que de alegria. Basta reparar naquilo que acontece no subconsciente de John Malkovich e Joel, onde assistimos às várias humilhações de que foram alvo na infância, desde insultos até à atitude auto-destrutiva de tecer comentários negativos sobre si mesmos. «Todos os malditos dias, alguém, algures, toma a decisão consciente de destruir outro alguém» diz intempestivamente Robert McKee, quando confrontado pelo alter ego de Charlie Kaufman sobre a ausência de conflitos na vida real por oposição ao cinema. É o que faz, por exemplo, Clementine quando decide impulsivamente apagar Joel da sua memória sem qualquer aviso, ignorando as consequências (Eternal Sunshine…) ou, quando Adele abandona Caden, levando a filha de quatro anos juntamente consigo para a Alemanha (Synecdoche, New York). Esses actos são de uma violência tal que deixam marcas e não desaparecem, criando traumas. As personagens afetadas nunca recuperam totalmente. Caden atinge o fundo depois de ser deixado para trás pela sua mulher, ao mesmo tempo que tem de lidar com a sua doença incurável com manifestações cada vez mais agressivas. É verdade que a consciência de que a sua vida será breve (a consciência do tempo) — assim julga — encoraja-o a criar o seu magnum opus, mas há algo mais complexo no acto criador. Aquela peça de teatro aos poucos vai afastando-se de uma ideia original (se quisermos convocar outro empreendimento romântico como acontece com o argumento que o alter ego de Kaufman tem de escrever em Adaptation) para “replicar” a própria vida de Caden. A peça é uma espécie de passado materializado em permanente transformação devido à voragem do tempo e aos eventos que decorrem no presente. Nela, o dramaturgo enfermo vê em movimento as decisões que tomou e a repercussão que estas têm tanto na sua vida como nas dos outros, buscando uma explicação para a sua crise pessoal. Para acentuar a presença do tempo, Kaufman urde um tempo próprio que foge à cronologia lógica dos eventos, em que as personagens vivem entre a realidade e um limbo; daí a recorrência aos flashbacks e flashforwards e à interpenetração do tempo real com o fantasioso que acontece na grande maioria dos seus argumentos. Enquanto se confunde cada vez mais com o processo criativo da peça que se arrasta por décadas e décadas sem um fim à vista, Caden espera em vão por algo que restabeleça a ligação emocional com a ex-mulher e a filha. Ligação emocional essa que nunca chegou a encontrar nem no casamento posterior com uma das suas actrizes nem com a rapariga da bilheteira. É por isso que a “voz demiúrgica” (Ellen, que substitui Caden no seu papel de encenador) nos últimos dez minutos do filme é tão importante para a personagem, pois oferece-lhe um sentido de que há muito precisava para terminar a peça — a compreensão do outro, a empatia pelo sofrimento — e para «abandonar silenciosamente a vida» (Ellen) — o Tempo actua sobre tudo e todos.

O insucesso das relações deve-se ao facto de os protagonistas kaufmanianos não serem os melhores comunicadores e da dificuldade em demonstrar empatia. Joel tem um diário onde desenha e escreve os pensamentos que não partilha com Clementine. A uma dada altura ela confessa: «Não me contas nada, Joel. Sou um livro aberto. Conto-te tudo. Até as cenas mais embaraçosas. Não confias em mim». Joel vive dentro da sua cabeça, como vive Caden («Nunca olhaste para mais ninguém a não ser para ti mesmo» lamenta Sammy antes de suicidar-se) e o alter ego de Kaufman, fazendo de si o centro do mundo, seguros da sua extraordinariedade, indiferentes ao sofrimento que causam nos outros através das suas palavras e acções. No entanto, como lembra Ellen, «o específico pouco importa. Toda a gente é toda a gente». Da mesma forma que Caden se debateu para existir e desaparecer, assim também acontece com o próximo, pois é uma experiência comum ao ser humano. A partir do momento em que se compreender que todos partilham da dificuldade da existência, que a tristeza daqueles com quem nos cruzamos na vida é também parte de nós, estaremos mais perto de ligarmo-nos intimamente com alguém. Mas, como desabafa Jake, em I’m thinking of Endings Things, «aceitar as dificuldades dos outros» é mais complicado do que aquilo que parece. Michael naquela palestra sobre o apoio ao cliente diz: «Lembrem-se sempre, o cliente é uma pessoa tal como vocês» com os seus bons e maus dias, com as suas dores. A insensibilidade não é só consequência do egoísmo das personagens, mas também da sociedade que parece ter-se esquecido do significado da palavra bondade. Ela incutiu em cada indivíduo a convicção de que o sofrimento acabará por se dissipar sozinho — cujos axiomas como «tudo vai melhorar. Nunca é tarde demais», «há sempre uma luz ao fundo do túnel» (Jake) são a prova — e, portanto, não há qualquer necessidade em nos preocuparmos com aquele que sofre.
Crítica a Hollywood
Em Adaptation, num seminário de escrita, o alter ego de Kaufman, que se esforça por escrever uma adaptação que fuja aos clichês da indústria, alerta para o desfasamento entre a esfera ficcional e a real: «E se um escritor tenta criar uma história em que nada acontece? Em que as pessoas não mudam, não têm epifanias? Elas debatem-se e sentem-se frustradas, mas nada resolvem, como uma reflexão do mundo real». Obviamente, está condenado ao fracasso, a «aborrecer a audiência até às lágrimas» (Robert McKee). Mas são precisamente aqueles princípios que Kaufman pretende explorar com os seus protagonistas e as suas relações, porque Hollywood ajudou a propagar uma falsa representação do indivíduo no mundo, destinando-o sempre a enfrentar um qualquer conflito do qual sairá vencedor e transformado enquanto pessoa. O final de Eternal Sunshine… é a prova de que nem sempre tudo se resolve e nem sempre as personagens mudam. Depois de ouvirem o quão tóxicos são capazes de ser através de uma cassete que conta o porquê de terem decidido apagar a memória de cada um, Joel e Clementine decidem manter o relacionamento, apesar de terem consciência de que ele nunca funcionará por muito tempo devido às suas personalidades tão opostas. Joel continuará a ter uma postura passiva agressiva, não medindo aquilo que diz e que, mais tarde ou mais cedo, pela sua natureza tímida acabará por aborrecer Clementine, e ela continuará a ser impulsiva sem pensar nas consequências. Ambos aceitam («okay… okay…») que estão condenados a refazer os mesmos erros do passado, como é transmitido pelo plano final do filme que repete a acção três vezes dos amantes a caminharem pela praia.
O cinema de Hollywood tende a ignorar a complexidade do homem, nomeadamente na sua dimensão sexual, e, quando a aborda, ou está domesticada ou fetichizada. Kaufman, por não ser escrupuloso, não o concebe apenas como ser racional, metafísico sem uma ligação com o lado primitivo ou animalesco. Human Nature foca-se precisamente nesse ponto: a castração de Puff nos seus aspectos mais íntimos para poder comportar-se como um “ser civilizado”. O homem, no cinema de Hollywood (não esquecer o antigo Código Hays), como na sociedade, é ainda alvo de um certo puritanismo que o obriga a mitigar as pulsões sexuais, embora não tão veementemente como no passado. A extinção do Código Hays constituiu uma vitória na liberdade artística e na forma como se apresenta a realidade. Nos dias de hoje aquelas limitações não existem, mas isto não significa uma melhor abordagem, porque a liberdade facilmente pode cair na gratuidade. As pulsões sexuais apenas são manifestadas num contexto em que não podem ser levadas a sério, como é costume acontecer na comédia romântica em geral. A estranheza da sua manifestação, pois fala a uma parte do homem que não está habituado a ver partilhada, é aliviada através da piada. A sequência do coito entre Michael e Lisa (Anomalisa) é desconcertante por nos ser apresentado de uma maneira tão crua e sem hipótese de fuga. Como a obra de Kaufman procurar responder à pergunta do que é que nos torna humanos, ele não pode ignorar os desejos e as satisfações. É, por isso, que os seus argumentos abordam tão abertamente as tensões sexuais, a única excepção é o último filme I’m Thinking of Endings Things.
Charlie Kaufman tem uma posição crítica no que diz respeito ao entretenimento produzido em série e em massa que é oferecido aos espectadores, sob a forma cinematográfica e audiovisual. Como as pessoas estão sedentas de consumir, elas nem reparam naquilo que consomem, buscando os conteúdos que mais chamam a atenção, pois quem está por trás da sua produção tem bom domínio da publicidade. A indústria cinematográfica comercial é uma das entidades responsáveis pelo modo como os espectadores encaram o mundo, sendo que muitos deles acreditam que as suas relações se possam desenrolar como nos filmes. Jake é um desses indivíduos que fez da fantasia dos filmes a sua triste realidade. Sonhou para si o encontro perfeito. Não precisou sequer de pôr conversa com a rapariga na qual estava interessado. É ela que decide dar o primeiro passo e, apesar de Jake não ter qualquer habilidade a flertar, acaba por achar essa incapacidade querida. No entanto, aquilo que se passou de facto não foi mais que uma situação estranha em que ele a mirou ao longe sem nunca se aproximar. Aquele foi o encontro romântico que inventou para si, uma vez que nunca existiu um na realidade. Essa espécie de mundo encantado continua ainda a ser alimentado numa idade avançada, como pode ser demonstrado pela sequência em que vemos Jake a assistir a uma cena climática de uma comédia romântica numa das suas pausas para comer. Nesse filme dentro do filme, um rapaz confessa que está perdidamente apaixonado por uma rapariga que se encontra a servir um cliente numa hamburgueria. Enquanto ela o expulsa do restaurante, o rapaz vai proferindo as razões por que a ama. A música orquestral acentua a força sentimental do momento e, em seguida, os clientes batem palmas efusivamente por terem assistido a algo tão deslumbrante. Ela acaba por ser despedida. Apesar desta ocorrência desastrosa, os dois principiam uma relação. Certamente este é um filme familiar para Jake e com o qual fantasia, porque, além de ter o DVD, mais tarde na viagem de regresso, a rapariga do filme aparece a seu lado, substituindo a “actualnamorada”, a citar um parágrafo d’A Sociedade do Espectáculo, de Guy Debord, quando a conversa abordava o facto dos mass media oferecerem uma realidade pré-interpretada em vez desta acção ser desempenhada pelo sujeito. Essa visão do mundo «infecta os nossos cérebros. Tornamo-nos esse mundo» (Jake).

Os lugares comuns na vida são perigosos porque dão a entender que nunca ninguém acaba mal, que por algum motivo tudo se resolve. Estes conceitos transmitem uma falsa esperança no processo de envelhecimento, pois, quando as personagens terminarem sozinhas, não saberão de quem foi a culpa, se é que há uma. Jake chama a esses lugares comuns «a grande mentira» e neles encontra-se precisamente o de «haver um tacho para cada panela» [«that there is someone for everyone»]. Antes de a sua palestra ser abruptamente interrompida, Michael também diz algo semelhante: «Lembrem-se que há alguém, algures, para cada um. Alguém para amar.» Quando os protagonistas se deparam com a verdade, sentem-se angustiados e desiludidos. Essa visão de Kaufman sobre a vida tem vindo a tornar-se cada vez mais sombria com o desenvolvimento da sua filmografia sem a possibilidade da catarse através do cómico, como encontramos nos seus primeiros argumentos Being John Malkovich e Adaptation. Caden teve direito a uma pequena redenção no final de Synecdoche, New York. Em Anomalisa, Michael é ainda capaz, por uma noite, encontrar alguém singular e sentir-se vivo, apesar de tudo acabar no dia seguinte e voltar ao que era no passado: as mesmas caras, as mesmas vozes. Em I’m thinking of ending things, Jake não tem qualquer salvação. Resta-lhe um desolador arrependimento cuja ficção de várias realidades alternativas é a única forma de lidar com a passagem do tempo que não trouxe aquilo que desejava. A haver qualquer coisa de cómico talvez se encontre no modo como, depois do suicídio, o mau tempo logo se dissipa, dando lugar a uma manhã de inverno radiante e de céu limpo que a noite anterior não fazia adivinhar — em que Jake, laureado com o Nobel da física e sob os aplausos da plateia, se dissolve no céu azulado como uma figura redentora — e que remete para o ditado: «Depois da tempestade vem a bonança». Bonança essa que não é uma disciplina do pensamento a la estoicismo, pois Jake nunca conseguiu controlá-lo, mas a calma que fica depois de ter levado os seus delírios até à última consequência. Kaufman deixa-nos com o sabor amargo das «oportunidades perdidas» e das «decisões erradas» que o gelado derretido (sintoma da espera) da Tulsey Town não consegue aliviar.
De acordo com Kaufman, o ser humano está intimamente ligado à experiência do envelhecimento, porque, ao contrário dos animais, tem a consciência de que vai morrer. A ligação com outra pessoa é a forma de redenção contra o tempo, porque, através dela, se partilha a experiência comum da existência. Entre o momento em que nasce e aquele em que morre dá-se o compasso de espera em que nada parece acontecer, mas, na realidade, tudo se transforma. Esse compasso de espera é o palco das decisões que, mais ou mais cedo, acabarão por desempenhar um papel determinante no futuro das personagens. Como não há um destino pré-concebido, elas são sempre responsáveis pela sua tragédia. É preciso saber aceitar o passado sob pena de nunca viver o presente tal a obsessão com as decisões que não podem mais ser controladas.
[i] Fiona Handsyde (ed.), «Eric Rohmer on Film Scripts and Film Plans», em Eric Rohmer: Interviews (Mississipi: University Press of Mississippi, 2013), p. 65. A tradução é minha.
[ii] Victoria Riskin, «Fay Wray and Robert Riskin: a Hollywood memoir» (ebook, Pantheon Books, 2019), pp. 869-870.
[iii] Apud Jean-Claude Carrière & Pascal Bonitzer, O Exercício do Argumento (Lisboa: Texto & Grafia, 2016), p. 40.