O Fundamento Axiológico da União Europeia: Valores e Princípios na Carta dos Direitos Fundamentais

The axiological foundation of the European Union: the values and principles set forth in the Charter of Fundamental Rights of the European Union. Texto de Fátima Pacheco, Doutora em Direito da União Europeia (Universidade Católica), docente no ISCAP (Politécnico do Porto), investigadora do JUSGOV (Universidade do Minho) e do CEI (ISCAP), Portugal. Resumo: Pretende-se demonstrar que os valores europeus presidem a toda a atuação da União Europeia, relativamente a todos os seus domínios materiais. Tais valores são “comuns” à União e aos Estados-membros, e derivam de um património identitário europeu que, integrando a base da União Europeia, constitui a sua marca mais virtuosa. Tratando-se de um conjunto de valores transversais e vinculativos para o Direito da União Europeia, também a Carta dos Direitos Fundamentais é baseada no seu respeito. Iniciando-se com um preâmbulo e desenvolvendo-se em 7 títulos, este trabalho pretende demonstrar que cada um dos Títulos do catálogo de direitos fundamentais da União Europeia corresponde e desenvolve os vários valores europeus, tal como enunciados no art. 2.º do TUE, assim materializando a base axiológica que caracteriza a integração europeia. Palavras-Chave: Valores europeus – Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia – base axiológica da União.

Introdução

Partindo do princípio que toda a sociedade democrática se alicerça em valores provenientes de uma herança cultural, política e jurídica comum, temos de reconhecer que também a União Europeia não poderia deixar de se fundar numa determinada base axiológica.

Com efeito, no segundo parágrafo do preâmbulo do TUE (Tratado da União Europeia, anteriormente conhecido por Tratado de Maastricht) os plenipotenciários afirmaram que a nova fase do processo de integração europeia se inspira “(…) no património cultural, religioso e humanista da Europa (o sublinhado é nosso), de que emanaram os valore universais que são os direitos invioláveis e inalienáveis da pessoa humana, bem como a liberdade, a democracia, a igualdade e o Estado de direito”.

Pois bem, outra coisa não poderia ser pois a prossecução dos objetivos da União (art. 3.º TUE), a interpretação e aplicação do seu direito, bem como a própria prática interna dos Estados-membros e dos Estados candidatos a membros deve, toda ela, ser exercida de acordo com tal base axiológica e identitária. É, portanto, um dado indiscutível que os valores europeus presidem a toda a atuação da União Europeia, relativamente a cada um dos domínios materiais sobre os quais incidem as suas vastas atribuições.

Não se trata de uma realidade nova, mas antes de uma paulatina transformação que o Tratado de Lisboa veio reiterar, elevando à qualidade de valores os princípios fundamentais que desde o Tratado de Amesterdão se encontravam previstos no direito originário, em concreto no art. 6.º, relativo aos seus princípios fundamentais (liberdade, democracia, respeito pelos direitos do Homem e do Estado de direito). Englobando no teor do art. 2.º do TUE o respeito pela dignidade humana e pela igualdade, o Tratado de Lisboa veio densificar o valor do respeito pelos Direitos do Homem, optando por incluir, claramente, na lista dos valores os direitos das pessoas pertencentes a minorias.

Não obstante a diversidade cultural que nos caracteriza, tais valores, proclamados pelo tratado como “comuns” à União e aos Estados-membros, derivam do já referido património comum europeu (cultural, jurídico e político), que, integrando a base da União Europeia, constitui a sua marca mais virtuosa.

Trata-se, pois, de um conjunto de valores transversais que vinculam a União,[1] repercutindo-se sobre toda a sua ordem jurídica, nomeadamente sobre o direito originário (v.g. arts. 8.º, n.º 1, 9.º, 10.º e 18.º, n.º 1 TFUE, o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia), onde se deve incluir a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE), também ela baseada no valor do respeito pelos direitos, liberdades e princípios nela consignados.

Ora, sendo certo que a CDFUE constitui o catálogo de direitos fundamentais da União Europeia[2], e que o mesmo – por força do disposto no n.º 1 do art. 6.º do TUE – goza do mesmo valor jurídico dos tratados, sendo vinculativo e invocável em juízo de modo idêntico a qualquer norma de direito originário. E, sendo igualmente certo que os indivíduos gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres nela previstos, e, ainda, dado que tal catálogo se desenvolve em 7 títulos, que correspondem aos valores europeus[3], quais sejam: Dignidade, Liberdade, Igualdade, Solidariedade, Cidadania, Justiça e Disposições Finais, é nossa intenção neste ensaio empreender um breve percurso pela sua sistematização, com vista a identificar o conteúdo de cada um dos valores referidos no art.2.º do TUE.

2. Os valores comuns da União Europeia: uma breve abordagem

Tratado de Maastricht, 1992.

Nos termos do art. 2.º do TUE:

“A União funda-se nos valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de direito e do respeito pelos direitos do Homem, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias. Estes valores são comuns aos Estados-Membros, numa sociedade caracterizada pelo pluralismo, a não discriminação, a tolerância, a justiça, a solidariedade e a igualdade entre homens e mulheres.”

De referir que estes valores apresentam uma diferente intensidade normativa. Na verdade, alguns deles revelam uma maior centralidade por comparação com outros, quais sejam: a dignidade humana; a liberdade; a democracia; a igualdade; o estado de Direito; e, finalmente, o respeito pelos direitos do Homem (incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias), não obstante a CDFUE designar o valor da democracia e do Estado de Direito como “princípios”, e não valores.

Sendo tais valores fundamentais “comuns” aos Estados-membros, o seu incumprimento por parte destes está sujeito ao procedimento sancionatório (art. 7.º TUE ou processo de incumprimento qualificado)[4], ainda que possam também ser sindicáveis se desrespeitados pela própria União, nos termos gerais do contencioso da legalidade ou, por via da ação de responsabilidade civil extracontratual da UE. Por força da sua essencialidade servem, igualmente, enquanto critério de adesão e pertença à União, encontrando-se os mesmos elencados no 1.º parágrafo do art. 2.º do TUE, supratranscrito.

Prosseguindo a leitura deste dispositivo, verifica-se que o seu 2.º parágrafo se refere a outros valores que gozam de menor centralidade, alguns deles exprimindo derivações da própria igualdade e da democracia, que se passam a enunciar: o pluralismo; a não discriminação; a tolerância; a justiça; a solidariedade; e, a igualdade entre homens e mulheres, ilustrando, assim, um certo dever-ser que tem de presidir à ação da UE e dos Estados-membros, ainda que o seu desrespeito já não constitua objeto do processo de incumprimento qualificado, nos termos referidos (art. 7.º TUE).

De salientar que os valores do pluralismo e da tolerância, enunciados neste 2.º parágrafo estão, de certo modo, implícitos no valor da democracia, e o valor da não discriminação e da igualdade entre homens e mulheres pode ser inferido do valor primordial da igualdade, tal como se encontra referido no 1.º parágrafo do mesmo dispositivo. Não fique por dizer que este grupo de valores encontra reflexos em várias outras disposições dos tratados.

Da mesma maneira, deve ainda assinalar-se a obrigatoriedade do respeito e promoção por outro tipo de valores, mais vastos e generalistas, que derivam do reconhecimento de princípios da ordem jurídica da União que igualmente expressam os valores em causa, que se designam como princípios fundamentais ou materialmente constitucionais. Consagrados no direito originário e no derivado ou, ainda, revelados pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), tais princípios subjazem à concretização de cada um dos objetivos (relativos à atuação interna e externa e respetivos domínios materiais) da União, elencados no art. 3.º TUE.

Trata-se aqui dos seguintes princípios, que não cabe aqui desenvolver, mas, tão-só, enunciar: o princípio da União de Direito; o princípio da atribuição; o princípio da não discriminação (art. 4.º, n.º 3 TUE); da cooperação leal (art. 4 º, n.º 3 TUE); da subsidiariedade (art. 5.º, n.º 3 TUE); da proporcionalidade (art. 5.º, n.º1 e 4); do respeito pela identidade nacional dos Estados-membros (art. 10.º, n.º 1 TUE); da solidariedade (art.º 222.º TFUE); do equilíbrio instrucional; da transparência; da economia social de mercado; do reconhecimento mútuo em matéria penal e da confiança mútua; do respeito pelos princípios da Carta das Nações Unidas e do Direito Internacional, no que concerne à promoção e manutenção da paz, da prevenção de conflitos e no reforço da segurança internacional. O não acatamento de tais princípios ou sua violação fica sob alçada do regime comum do contencioso.

Neste contexto, é importante sublinhar que a enunciação dos objetivos a realizar pela UE, previstos no art. 3.º do TUE, apenas faz sentido partindo do pressuposto de que a sua observação, realização e promoção – tanto por parte da União como por parte dos Estados – deve ser feita com base no respeito incondicional pelos valores que constituem o seu acervo identitário, e pelos valores e princípios materialmente constitucionais que subjazem a todo o funcionamento da União, como aliás o seu n.º 1 deixa claramente antever quando afirma que “A União tem por objetivo promover a paz, os seus valores e o bem-estar dos seus povos”.

3. O conteúdo da Carta: um amplo catálogo de direitos fundamentais

Lisbon Treaty, 2007.

O preâmbulo[5] da CDFUE começa por afirmar que “Os povos da Europa, estabelecendo entre si uma união cada vez mais estreita, decidiram partilhar um futuro de paz, assente em valores comuns” (o sublinhado é nosso), e prossegue, no mesmo sentido, no seu 2.º parágrafo, proclamando que “Consciente do seu património espiritual e moral, a União baseia-se nos valores indivisíveis e universais (o sublinhado é nosso) da dignidade do ser humano, da liberdade, da igualdade e da solidariedade; assenta nos princípios da democracia e do Estado de direito (…)”, reiterando no seu parágrafo 3.º que “A União contribui para a preservação e o desenvolvimento destes valores comuns (o sublinhado é nosso), no respeito pela diversidade das culturas e tradições dos povos da Europa (…)”.

Ora, a letra do preâmbulo revela uma conceção dinâmica, omnicompreensiva, e aberta de todos os direitos consignados na CDFUE, reafirmando as tradições constitucionais e as obrigações internacionais comuns aos Estados-Membros, reconhecendo a contribuição da CEDH (Carta Europeia dos Direitos do Homem), das Cartas Sociais aprovadas pelo Conselho da Europa, e da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) e do TJUE.

3.1. Tipologia dos direitos fundamentais reconhecidos na CDFUE

Na esteira de uma conceção universalista dos direitos fundamentais[6], preconizada pela DUDH e pelos Pactos das Nações Unidas, a CDFUE reúne no mesmo documento direitos muito heterogéneos e diferenciados. Demovendo a visão binária entre direitos, liberdades e garantias e direitos económicos e sociais, o seu conteúdo abarca direitos civis e políticos; económicos, sociais e culturais; e direitos de “terceira geração,” sistematizados sob o prisma da indivisibilidade[7] e unicidade dos direitos. Deste modo, destacou a igual importância da dimensão civil, política e social dos direitos fundamentais que devem assistir aos indivíduos.

Sendo certo que grande parte dos seus direitos se encontram previstos em instrumentos internacionais, textos constitucionais, ou no teor dos próprios tratados institutivos, alguns dos direitos que consigna são tratados de forma inovadora – como é o caso do direito à dignidade inerente à condição de ser humano, o direito à vida, a proibição da tortura e dos tratos ou penas desumanos ou degradantes, a proibição do trabalho forçado e o direito à liberdade – permitindo à CDFUE uma imensa amplitude. Inspirados por valores igualmente novos, estes direitos deram corpo à tendência de constitucionalização da ordem jurídica da União, a par do figurino estadual.

Não obstante a sua terminologia se referir a “direitos, princípios, e objetivos” a Carta não indica a diferenciação entre estes conceitos, tornando equacionável se todas as suas normas gozam da mesma força jurídica. Ora, uma vez estabelecidos os seus preceitos de modo a corresponder aos valores essenciais da dignidade humana, das liberdades fundamentais, da igualdade entre as pessoas, da solidariedade, da cidadania e da justiça, a categorização de cada um deles na referida trilogia não se aferiu por referência a critérios de índole hierárquica.

Assim sendo, a integração de cada um dos seus preceitos nas categorias indicadas terá de se apurar por via da interpretação da sua natureza jurídica, tornando-se incontornável cotejar se o conteúdo de cada preceito consagra um direito subjetivo[8], se tal conteúdo se revela indisponível para o legislador, se cada um deles gozará de aplicabilidade direta e de imediatividade ou, ao contrário, se necessitará de posterior implementação por parte das legislações e práticas nacionais.

Neste contexto, o art. 51.º, n.º 1 da CDFUE, vem esclarecer que, por contraposição aos direitos – que devem ser respeitados – os princípios devem ser observados e a sua aplicação promovida, sem quaisquer outras precisões. Assim, a invocação dos princípios está condicionada à adoção de medidas de execução legislativa, orientando as políticas que os aplicam. Contrariamente aos direitos, as normas que contenham princípios não podem ser invocadas pelos particulares enquanto não tenham sido objeto de implementação pelas autoridades competentes. A partir daí podem ser invocáveis para efeitos de fiscalização da legalidade dos atos (legislativos ou executivos) que os apliquem.

Pode, ainda, inferir-se que os direitos indicam expressamente o seu titular (v.g. arts. 30.º e 31.º), importam obrigações de não interferência dos poderes públicos, e são invocáveis, em regra, sem necessidade de ulterior intermediação legislativa[9]. Já os princípios enunciam uma obrigação da União reconhecer um valor e objetivo específico, são oponíveis às autoridades que os devem observar e promover mediante o seu desenvolvimento normativo, mas não são invocáveis individualmente nos mesmos termos que os direitos o podem ser (v.g. arts. 26.º, 22.º, 23.º, n.º 1, 27.º, 34.º a 38.º), como já referimos.

Não obstante, não fique por dizer que a formulação de normas sob forma principal não priva os direitos fundamentais de eficácia jurídica, orientando o aplicador do direito e expressando valores e interesses que servem de limite à ação normativa das instituições e dos Estados-membros. Em caso de colisão de princípios, o juiz terá de ponderar, balancear, ou harmonizar o caso à luz dos valores e dos interesses de cada um dos princípios conflituantes, pois eles correspondem a “mandados de otimização”, na terminologia de ALEXY[10]. Ademais, uma interpretação conforme ao princípio da unidade obriga que a sua implementação viabilize a salvaguarda do seu conteúdo mínimo[11], que deverá aplicar-se no controlo das restrições ao exercício dos direitos reconhecidos pela Carta.

Estão, portanto, os destinatários da Carta impedidos de obstar à realização dos objetivos valorativos contidos nos princípios através da adoção de medidas que reduzam o nível de proteção já garantido pelo sistema de proteção dos direitos fundamentais da União. Nesse caminho, os juízes devem assegurar uma interpretação das disposições da Carta, do tratado, do direito derivado, e da própria implementação estadual do direito da União, conforme aos objetivos axiológicos programáticos contidos nos princípios, nomeadamente através da exigência da não discriminação, ainda que não possam ser diretamente invocados.

Desta forma, na falta de legislação concretizadora, a CDFUE deixa aos tribunais a tarefa de densificar os direitos e princípios nela consagrados. Só esta postura se revela coerente com a ideia de indivisibilidade e interdependência dos direitos fundamentais, não obstante a complexidade que aquela trilogia propicia.

A Carta fecha-se com um conjunto de “Disposições Horizontais” (arts. 51.º a 54.º) que visam estabelecer e limitar o âmbito de aplicação e interpretação dos direitos que consigna, determinar as restrições que tais direitos poderão vir a sofrer e a forma de relacionamento entre este instrumento e outros catálogos de direitos fundamentais.

A positivação dos direitos consignados na CDFUE, doravante, serviria de padrão de validade e de interpretação do direito derivado e do direito estadual resultante da aplicação do direito da União; de base para uma eventual expansão das competências estabelecidas pelos tratados; de paradigma de controlo político no que concerne à observação do padrão de atuação dos Estados-Membros no quadro do procedimento sancionatório previsto no art. 7.º TUE; e, finalmente, de referência ao exercício da ação externa da União, ao incumbi-la do objetivo de promover o respeito pelos direitos fundamentais junto a Estados terceiros e organizações internacionais, com quem desenvolva as suas relações e parcerias, de modo consonante com o conteúdo específico e valorativo dos direitos da Carta.

3.2. A sistematização da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e a titularidade passiva deste catálogo de direitos fundamentais

R
Peça sobre a família Romana no Vatikanischen Museen.

O Título I intitula-se “Dignidade” (art. 1.º a 5.º), enquanto valor indivisível e universal, sob o qual se arquitetam os demais direitos da Carta. Nela reside a matriz civilizacional europeia, por ela se enformando todos os instrumentos nacionais e internacionais de proteção dos direitos humanos. A Carta não lhe define o conteúdo, natureza e função, apenas afirma a sua inviolabilidade. Esta circunstância refletiu a inexistência de um consenso doutrinal suficiente à sua determinação, encontrando-se referências à dignidade enquanto direito fundamental, valor, ou ainda como princípio geral. As Anotações ao art. 2.º afirmam que a dignidade é um verdadeiro direito fundamental, cuja fundamentalidade é irrefutável, constituindo a “essência” de todos os restantes direitos. A dignidade humana serve de parâmetro interpretativo dos demais direitos e princípios, podendo ser usada como alicerce de ampliação ou limite de restrição dos restantes direitos, e constitui um dos valores em que se fundamenta a União.

O Título I proclama o direito à vida (art. 2.º) e à proibição da pena de morte; à integridade do ser humano (art. 3.º); à proibição da tortura e dos tratos ou penas desumanas e degradantes (art. 4.º); e a proibição da escravidão e do trabalho forçado (art. 5.º). Trata-se de um conjunto de direitos inalienáveis já consagrados na CEDH e em outros instrumentos internacionais, pelo que tem pelo menos o mesmo sentido e alcance da Convenção de Roma, ainda que o texto da Carta resulte mais simplificado e limpo de resquícios arcaicos, tais como a excecionalidade das circunstâncias em que se admitia a pena de morte, as definições de trabalho forçado, e a possibilidade de introduzir restrições às liberdades das pessoas suscetíveis de propagar doenças contagiosas, de alcoólicos e vagabundos. O direito à integridade do ser humano revela uma evolução face àquela Convenção e baseia-se também na Convenção sobre Direitos do Homem e a Biomedicina, adotada no âmbito do Conselho da Europa[12].

O Título II trata das “Liberdades” (art. 6.º a 19.º) e reconhece direitos individuais, liberdades públicas e direitos de conteúdo social. O valor da liberdade, não sendo absoluto em si mesmo, encontra-se também previsto no art. 2.º TUE, e constitui uma fonte de inspiração do direito da União, sendo um dos seus fundamentos. O dispositivo integra-se num sistema coerente de direitos fundamentais, alicerçado na dignidade humana – como já se referiu. Nos primórdios dos tratados a sua conceção estava subjacente às liberdades dos fatores de produção que constituíam o mercado comum. O Tratado de Amesterdão, por sua vez, previa este valor enquanto base do espaço de liberdade, segurança e justiça envolvendo sobretudo as liberdades clássicas, muitas delas consagradas na CEDH, na Convenção de Genebra sobre os refugiados, em ordenamentos constitucionais, e no sistema comunitário de proteção de direitos fundamentais.

Tratado de Amesterdão, 1997.

É certo que a Carta afirma muitos dos direitos previstos na CEDH, não obstante, como já referimos, tais direitos são formulados de forma mais atualista e, por vezes, mais simplificada ou mais ampla do que nela, tal como: o direito à liberdade e à segurança (art.º 6.º); o direito ao respeito pela vida privada e familiar (art. 7.º); o direito de proteção de dados pessoais (art.º 8.º); o direitos de contrair casamento e de constituir família (art. 9.º), este francamente mais modernizado, embora sem impor outras formas de reconhecimento da família; a liberdade de pensamento, consciência e religião (art.º 10.º); a liberdade de expressão e de informação (art. 11.º), incluindo o respeito pela liberdade e do pluralismo dos meios de comunicação social; a liberdade de reunião e de associação (art. 12.º); a liberdade das artes e das ciências (art. 13.º), este acrescentado da CEDH, o direito à educação consagrando o direito de acesso à formação profissional e contínua; o direito à educação (art. 14.º); à liberdade profissional e ao direito de trabalhar (art. 15.º), este não previsto na CEDH embora de origem clássica; à liberdade de empresa (art. 16.º), cujos fundamentos se encontram no direito comunitário; e o direito de proteção da propriedade, incluindo a intelectual (art. 17.º); o direito ao asilo (art. 1.º), baseado no tratado CE e no respeito pela Convenção de Genebra sobre os Refugiados; e ainda o direito à proteção em caso de afastamento, expulsão ou extradição (art. 19.º) integrando a jurisprudência do TEDH.

A Convenção de Refugiados de 1951 foi assinada em Genebra, Suíça, em 1 de agosto de 1951.

Alguns destes direitos apresentam uma componente pessoal, outros relevam da esfera pública ou económica. Nesta medida, a sua determinação é inseparável das normas constantes dos tratados sobre a livre circulação, relativamente à qual se estruturava um dos princípios económicos mais importantes da União desde a CE. Tal como a evolução da jurisprudência foi revelando, foi-se conferindo maior relevância aos valores sociais quando o seu reconhecimento entrava em conflito com as liberdades económicas, pelo que a Carta reforça esta tendência, encarando a liberdade entre os objetivos a realizar pela União, tal como o art. 3.º, n.º 2, e n.º 3, 26.º, n.º 1, e 101.º espelham, e a sistematização do Título II reflete.

O Título III refere-se à “Igualdade” (art. 20.º a 26.º) e suas distintas manifestações. A igualdade foi integrada na lista dos valores devido à indissociabilidade que apresenta com a liberdade. A sua concretização deve efetuar-se através da igualdade entre homens e mulheres (art. 23.º) e a proibição da discriminação (art. 21.º), que retoma as listas do art. 12.º e 13.º do TCE (Tribunal de Contas Europeu) e 14.º da CEDH, embora lhe acrescente novos critérios suspeitos (15 no seu total), a título exemplificativo e não taxativo. De referir que a disposição não define discriminação e não cria competências para adotar legislação naquele âmbito. Apenas o art. 19.º TFUE poderá continuar a constituir a base legal necessária para o Conselho poder aprovar legislação naquele sentido. Nessa medida, por força do art. 52.º, n.º 2, deverá interpretar-se o art. 21.º da Carta, em conformidade com o art. 19.º TFUE, ficando os diferentes fatores da discriminação destinados a servir de orientação programática[13] à ação da União. Uma leitura sistemática da Carta, com outros artigos do Título III (arts. 23.º a 26.º) pode, contudo, obrigar os Estados-Membros a adotar medidas legislativas que excluam todas as formas de discriminação previstas, e que concretizem a igualdade na sua vertente substancial e, essencialmente, positiva. A proibição em razão da nacionalidade é feita em parágrafo autónomo, devendo ser aplicada nas condições e limites definidos pelos tratados, ou seja, nos termos do art. 18.º TFUE, e no respeito pelo sentido estabelecido no art. 14.º da CEDH.

A CDFUE separa o princípio da igualdade perante a lei e da proibição da discriminação. Fundamentando-se na universalidade dos direitos fundamentais, proclama que “Todas as pessoas são iguais perante a lei”, contudo, categoriza alguns direitos (v.g. as “pessoas idosas”) e correspondentes regimes jurídicos diferenciados, não arbitrários (situações diferentes tratadas de modo idêntico e situações idênticas tratadas de modo igual, sem justificação) racionais e proporcionais, em função das singularidades dessas pessoas, nomeadamente, em razão do sexo, raça, orientação sexual, religião, entre os outros amplos critérios suspeitos que enuncia, o que evidencia a igualdade enquanto valor transversal, aplicável a todas as atribuições da União.

O princípio consagra especialmente o direito à igualdade perante a lei (art. 20.º); o princípio da não discriminação; o respeito pela diversidade cultural, religiosa e linguística (art. 22.º), inspirado no art. 151.º do TCE; a igualdade entre homens e mulheres em todos os domínios, permitindo ações positivas, pró-ativas, para corrigir eventuais situações de desigualdade, no emprego, trabalho e salário (art. 23.º), indo mais além do que o previsto no art. 141.º do TCE. Reconhece ainda os direitos das crianças, inspirados na Convenção de Nova Iorque sobre os direitos das crianças (art. 24.º), sendo o trabalho infantil proibido nos termos do art. 32.º da Carta; os direitos das pessoas idosas (art. 25.º); e o da integração das pessoas com deficiência (art. 26.º). Salienta-se que são titulares destes direitos todas as pessoas, sejam ou não cidadãos europeus. O valor da igualdade estabelece um dos princípios mais importantes da União firmado ao longo das sucessivas revisões aos tratados.

Convenção de Nova Iorque dos Direitos da Criança, na ONU, em 1959

O Título IV diz respeito à “Solidariedade” (art. 27.º a 38.º), sendo nele que se encontram a maioria das disposições sobre direitos económicos e sociais (de natureza coletiva e individual). A sua referência reflete o valor dos direitos sociais. Parte deles constituem a base para os objetivos de ação da União, tais como a proteção do ambiente e defesa dos consumidores, constituindo um valor acrescentado da Carta comparativamente aos tratados e ao conteúdo da CEDH.

Importa referir que o catálogo dos direitos sociais, integrado na Carta, apresenta uma menor densidade e uma natureza menos assertiva por comparação com os restantes direitos, sendo que a maioria deles consagram direitos dos trabalhadores ou direitos relacionados com o trabalho. Assim ainda, a epígrafe deste Título reflete a consagração da componente social da dignidade da pessoa humana, embora muitos dos direitos sociais se encontrem ainda “fora do catálogo da Carta”, assim se denotando alguma imprecisão sistemática e interpretativa no tratamento destas normas[14].

À semelhança do que se passa no direito constitucional e no internacional, e tal como já foi referido, estes direitos caracterizam-se por uma acentuada componente positiva e prestacional. Os direitos sociais não são, em regra, direitos subjetivos, constituindo na esfera do seu titular verdadeiras pretensões a ações (não a omissões), sob reserva do possível, sendo – nas mais das vezes – a sua prestação de conteúdo indeterminado, a nível constitucional. Assim, se a liberdade sindical[15], o direito à informação e à consulta dos trabalhadores na empresa, o direito de negociação coletiva, o direito de proteção de despedimentos sem justa causa, e o direito a condições de trabalho justas e equitativas, ilustram exemplos de verdadeiro direitos subjetivos, os restantes preceitos, ou dependem de posteriores intervenções legislativas que os concretizem e conformem – só aí adquirindo plena eficácia e exequibilidade – ou não especificam os seus beneficiários. As normas que dizem respeito aos objetivos de política social estão consignadas nos arts. 151.º a 164.º do TFUE.

De acordo com o mandato de Colónia a Carta deveria incluir uma lista de direitos económicos e sociais que não constituíssem meros objetivos políticos. A questão passava pela necessidade de acordar entre os convencionais sobre se os direitos sociais deveriam figurar numa Carta que se pretendia apenas de standard minimum, atenta a discrepância verificada entre os Estados-membros. Para uns, os direitos sociais deveriam ser tão-só princípios diretivos de interpretação ou garantias sob condição de praticabilidade. Para outros, tratava-se de tarefas normativas impostas aos poderes públicos a implicar verdadeiros deveres por parte do legislador.

Como resultado das várias sensibilidades políticas elaborou-se uma lista de direitos, princípios e objetivos que os abordavam, tendo ficado consignados direitos que têm por fundamento a dignidade e o princípio da solidariedade: o direito à informação e consulta dos trabalhadores (art. 27.º); o direito de negociação e de ação coletiva (art. 28.º), onde se menciona o direito à greve a exercer de acordo com as legislações e práticas nacionais, sendo que ambos os direitos foram inspirados no direito derivado, ambos sendo direitos sociais coletivos baseados na dignidade dos trabalhadores.

Refira-se ainda a existência de direitos sociais de natureza individual, tais como: o direito de acesso aos serviços de emprego (art. 29.º), que, sem figurar um direito ao trabalho propriamente dito, garante o acesso aos serviços de colocação; a proteção em caso de despedimento sem justa causa[16] (art. 30.º), ainda que o seu conteúdo concreto seja obtido por remissão para as legislações e práticas nacionais; o direito às condições de trabalho justas e equitativas (art. 31.º); a proteção do trabalho infantil e à proteção de jovens no trabalho (art. 32.º), que explicita a proteção das crianças no domínio do trabalho prevista nos termos do art. 23.º; a proteção da família e da vida profissional (art. 33.º); da segurança e assistência social (art. 34.º); a proteção da saúde (art. 35.º); ao acesso a serviços de interesse económico geral (art. 36.º); a proteção do ambiente (art. 37.º); e dos consumidores (art. 38.º). Os últimos direitos, cobrindo matérias regidas pelas várias legislações nacionais, estão formulados sob forma de princípios que deverão orientar a atuação do legislador no exercício das suas competências, sendo que o direito previsto no n.º 2 do art. 34.º reflete a sua ligação à cidadania e os arts. 36.º e 38.º se baseiam em disposições dos tratados.

Como foi referido, nem todos os direitos sociais estão consagrados no título da “Solidariedade,” antes se encontram dispersos pela Carta, como é o caso da liberdade sindical (art. 12.º), que reconhece a dimensão europeia do exercício dos direitos coletivos; do direito de acesso à formação profissional e contínua (art. 14.º); da liberdade profissional e ao direito de trabalhar (art. 15.º); da liberdade de empresa (art.16.º); incluídos no título “Liberdades,” e ainda o direito à igualdade entre homens e mulheres (art. 23.º), designadamente nos domínios do emprego, do trabalho e da remuneração.

Na sua maioria estes direitos encontravam-se já consagrados na ordem jurídica comunitária – fazendo parte do acervo, como é o caso dos arts. 138.º e 139.º do TCE, nomeadamente os preceitos relativos à não discriminação em razão da nacionalidade e a cláusula da igualdade de remuneração entre trabalhadores masculinos e femininos, servindo de base à política de igualdade de género e ao combate a todas as situações de discriminação, relativamente a todos os domínios de atuação da União – e também na ordem interna dos Estados-membros como é o caso da proteção contra despedimentos sem justa causa (art. 30.º); do direito à segurança social e à assistência social (art. 34.º); da proteção da saúde (art. 35.º); do acesso aos serviços de interesse económico geral (art. 36.º); ambiente e defesa dos consumidores (art.38.º); ou ainda na Carta Comunitária dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores e na Carta Social Europeia.

Por outro lado, este Título envolve também direitos não sociais, qualificados de terceira geração, quais sejam: proteção do ambiente (art.37.º); e os direitos de defesa do consumidor (art. 38.º); e direitos que, muito embora sendo sociais, são vanguardistas relativamente às declarações tradicionais, tais como: o direito à proteção da saúde (art.35.º) e o acesso aos serviços de interesse económico geral (art.36.º), ou então – e ao contrário destes – que são previstos de forma mais restritiva, como: o direito ao trabalho e o direito à habitação.

Por sua vez, o Título V trata da “Cidadania” (art. 39.º a 46.º), e a sua inclusão na Carta traduz a especificidade da União enquanto nova entidade política, na via do estreitamento das relações diretas com os titulares ativos da Carta. De ressaltar que a qualidade jurídica de cidadão da União envolve a titularidade dos direitos cuja fruição não depende apenas das disposições previstas, mas de uma leitura transcendente dos tratados, tal como se depreende do princípio da não discriminação e das disposições aplicáveis às regras de acesso e exercício da atividade económica.

Os preceitos previstos neste Título retomam o essencial dos tratados, duplicando a sua formulação. Tais direitos refletem a carga simbólica e política que transportam: são atribuídos aos indivíduos enquanto membros de uma comunidade política, sendo outorgados às pessoas com a nacionalidade de um Estado-membro. Contudo, os direitos reservados exclusivamente a cidadãos, são apenas os de participação eleitoral, de proteção diplomática e consular. Pelo que a maioria destes direitos pode beneficiar cidadãos de países terceiros, ou a eles serem concedidos, como é o caso dos direitos de residência e dos direitos de petição e queixa.

Introduzidos pelo Tratado de Maastricht[17], possuem uma natureza essencialmente civil e política. Constituindo prerrogativas face a uma comunidade política, estes direitos ilustram a existência de um vínculo direto entre os cidadãos dos Estados-membros e a UE. A eles acresce um direito com origem nas liberdades económicas (art.45.º) previstas no TCE: o já referido direito de circulação e permanência. Este direito é conferido aos cidadãos e aos nacionais de países terceiros a residir legalmente no território de um Estado-membro, sendo que goza da amplitude que decorre das disposições do tratado (art. 18.º, n.º 1 do TCE) e de um profundo tratamento jurisprudencial sob o instituto. Em virtude da sua dupla formulação, por força do art. 52.º, n.º 2, aquele direito encontra-se vinculado às condições de exercício, proteção e limites decorrentes dos tratados e dos atos que o aplicam, o que revela alguma dissonância com a forma absoluta com é proclamado na Carta. A reiterar esta circunstância refira-se que o art. 51.º, n.º 2 afirma não ser possível, por via da Carta, alterar as atribuições e competências definidas pelos tratados[18].

É ainda de referir que os cidadãos da União não são considerados estrangeiros, para efeitos da CEDH, pelo que as restrições especiais previstas no art. 16.º da CEDH, para a atividade política dos estrangeiros não se lhes aplicam.

Foram assim consagrados direitos de participação política, tais como o direito de eleger e ser eleito nas eleições para o Parlamento Europeu e para as eleições municipais (art. 39.º e 40.º). O direito a uma boa administração (art. 41.º), não explicitamente consagrado nos tratados, revela-se agora de aplicação universal e de natureza próxima aos direitos processuais inseridos no Título da “Justiça”, apesar de inserido nas disposições dedicadas à cidadania; o direito ao acesso de documentos (art. 42.º), também não exclusivo dos cidadãos e com regras de procedimento de proveniência jurisprudencial; o direito de se dirigirem ao Provedor de Justiça (art. 43.º); e o direito de peticionarem ao Parlamento Europeu (art. 44.º) também invocáveis por qualquer pessoa com residência ou sede na União, possibilitando assim o alargamento do universo dos seus beneficiários e o reforço da democraticidade da União, relativamente ao previsto nos tratados; o direito de circular e permanecer no território dos Estados-membros (art. 45.º); e, finalmente, o direito de beneficiar de proteção consular e diplomática (art. 46.º), também com natureza política.

Do exposto, podemos concluir que a Carta arrola direitos reservados aos cidadãos da União (art. 22.º TFUE, e 39.º e 40.º Carta); direitos que se encontram ligados à residência, onde se incluem nacionais de países terceiros (arts. 24.º e 15.º, n.º 3 TFUE e arts. 42.º, 43.º a 44.º, Carta); e, ainda, direitos que são atribuídos a qualquer pessoa (art. 41.º, n.º 4 Carta). Por sua vez, o art. 15.º, n.º 2, sendo um direito económico e social, muito ligado às liberdades fundamentais de mercado, aplica-se-lhes especialmente.

Somos de opinião que a duplicidade de incidência destes direitos não fica desacompanhada de consequências jurídicas e políticas. Com efeito, os direitos de cidadania ao incorporarem-se na Carta adquiriram uma dignidade constitucional que implica uma hermenêutica diferenciada sobre eles. Assim, deverão ser reinterpretados e aplicados à luz da Carta, e não apenas dos tratados. Nas palavras de Marta Rebelo, a cidadania tem um sentido congregador e:

“serve de base a um duplo movimento de inclusividade: em primeiro lugar, pela criação de mecanismos de interesses de outros Estados no âmbito dos processos de decisão nacionais, quando tais decisões produzem efeitos fronteiriços; depois, permitindo aos cidadãos da Europa um exercício de direitos, mediado pela supranacionalização do seu estatuto, escolhendo o seu local de residência como ponto referencial para a sua participação cívica e política.”

(Rebelo, 2005, p. 66)
Ratificação da Convenção europeia dos Direitos do Homem, Roma, 1950

Por último, o Título VI designa-se “Justiça” (art. 47.º a 50.º), e trata de direitos que já integravam quase totalmente a CEDH, constituindo direitos clássicos de grande expressividade. O Título prevê direitos tais como o due process e fair trial, integrante do princípio da tutela jurisdicional efetiva e das garantias substantivas e processuais e contempla de forma separada os direitos relacionados com a administração da Justiça. Abrange: o direito à ação e a um tribunal imparcial (art. 47.º)[19] , onde obtém uma proteção mais alargada pelo direito da União do que pela sua previsão na CEDH; o direito a um recurso efetivo para defesa de qualquer direito garantido pela ordem jurídica da União, aplicável a obrigações de caráter civil, penal ou político; o direito à presunção de inocência e os direitos da defesa (art. 48.º), este mais estrito e simplificado comparativamente com a CEDH; os princípios da legalidade e da proporcionalidade dos delitos e das penas (art. 49.º), onde foi introduzido o princípio da retroatividade da lei penal mais leve, inspirados no Pacto sobre Direitos Civis e Políticos; e o direito a não ser julgado ou punido penalmente mais do que uma vez pelo mesmo delito por outro qualquer tribunal no interior da União (art. 50.º), também de conteúdo de proteção mais alargado do que na CEDH, uma vez que se aplica a órgãos jurisdicionais de vários Estados-membros.

Tratam-se de direitos de natureza processual, instrumentais à aplicação efetiva dos restantes direitos garantidos pela União, apresentando um âmbito material comparativamente mais alargado a incluir áreas sensíveis abrangidas pelo desenvolvimento do Espaço de liberdade, segurança e justiça. Além da CEDH e da jurisprudência do TJUE foram ainda utilizadas para a redação deste Título as tradições constitucionais comuns e o Pacto sobre Direitos Civis e Políticos, que deram origem à introdução do princípio da retroatividade da lei penal mais leve e o princípio da proporcionalidade dos delitos e das penas.

O último Título inclui as já referidas “Disposições Gerais” relativas ao âmbito de aplicação (arts. 51.º e 53.º n.º 1 e 2) e interpretação (arts. 52.º, n.º 3 a 7, 53.º) dos direitos e princípios consignados, e aos seus limites (endógenos), ao nível de proteção outorgado, e, finalmente, à proibição do abuso de direito. De salientar que nos termos do art. 51.º, n.º 1, as instituições e órgãos da União estão vinculados ao seu respeito, observação e promoção, na observância do princípio da subsidiariedade, assim como os Estados-membros quando aplicam o direito da União.

3.3. O conteúdo da Carta: um amplo catálogo de direitos fundamentais

A Carta circunscreve e determina as autoridades que estão obrigadas a respeitá-la (instituições e órgãos da União, bem como Estados-membros, quando apliquem o DUE) e, por outro lado, refere em cada um dos seus preceitos quais os titulares dos direitos que consigna. A determinação dos titulares passivos sofre de alguma complexidade, distinguindo entre direitos de titularidade (passiva) universal e direitos específicos (v.g. reservados a cidadãos europeus), pelo que as restrições ao universalismo se devem considerar exceções à regra geral de universalidade.

Assim, há direitos dirigidos a todas as pessoas, aos cidadãos, aos trabalhadores, ou a outras situações diferenciadas, bem como existem situações a remeter para a legislação nacional. Os primeiros são atribuídos a toda a pessoa que faça parte de uma comunidade jurídica, os segundos são atribuídos a categorias de pessoas demarcadas em função de vários fatores, ou relativos a diversas situações, quais sejam: posição familiar ou económico-social, condições subjetivas, idade, e grupo político.

A distinção reflete-se na própria enunciação dos direitos: por vezes o sujeito é designado pelos termos “toda a pessoa”, “todas as pessoas”, “todos”; ou então pelo próprio bem protegido, por exemplo, “ninguém pode ser sujeito a escravidão, nem a servidão”; ou ainda pelos termos “cidadãos”, “trabalhadores”, ou “pessoas idosas”. Estes últimos não são direitos universais, mas sim direitos atribuídos às pessoas em função de determinada posição ou categoria social, procurando identificar as vulnerabilidades específicas de certos grupos.

Há ainda casos em que a Carta especifica que o direito deve ser exercido dentro das condições que se podem impor ao legislador da União ou ao estadual – limitando as condições da sua titularidade e do seu exercício (liberdade de empresa e direito de informação e consulta dos trabalhadores).

Apesar de não decorrer literalmente dos dispositivos da Carta, temos de integrar no leque dos seus titulares também os particulares. Trata-se de uma manifestação da sua força horizontal a recordar-nos o reconhecimento da invocabilidade de Diretivas que concretizam direitos fundamentais[20], ainda que o n.º 2 do art. 51.º estabeleça, enfaticamente, que a Carta não cria novos tipos de atribuições, nem modifica as anteriores, visando ser um limite à capacidade expansiva duma Declaração de direitos tão abrangente.

Relativamente ao âmbito dos direitos protegidos, o art. 52.º, n.º 1 dispõe sobre o regime das restrições aos direitos fundamentais e os restantes parágrafos estabelecem as regras interpretativas, como já foi referido. As restrições terão de ser previstas por lei, respeitar o conteúdo essencial dos direitos em causa, e apenas poderão ser introduzidas se efetivamente necessárias e, nessa medida, se corresponderem aos objetivos de interesse geral reconhecidos pela União, ou ainda se estabelecidos pela necessidade de proteger direitos e liberdades de terceiros – no respeito do princípio da proporcionalidade. Estas formulações, inspiradas na jurisprudência do Tribunal, revelam-se consonantes com o regime previsto na CEDH. Assim, de modo algum pode permitir-se que se limitem direitos que, segundo a CEDH, não admitem ser objeto de qualquer restrição.

Por sua vez, o n.º 2, do art. 51.º refere-se ao sentido e alcance dos direitos previstos na Carta, indicando que se os mesmos tiverem sido baseados nos tratados deverão ser exercidos nos termos, condições e limites neles estabelecidos, sofrendo idêntico regime se previstos na CEDH, conforme dispõe o seu n.º 3, ressalvando as hipóteses em que a Carta lhes confira uma mais ampla proteção.

No que concerne ao nível de proteção conferido pela Carta aos direitos e princípios nela abrigados, o art. 53.º esclarece que nenhuma das suas disposições pode ser interpretada no sentido de os restringir ou lesar, nos respetivos campos de aplicação do direito da União, da CEDH, ou das Constituições dos Estados-membros. Literalmente o preceito impediria o Tribunal de apoiar-se na Carta para declarar inaplicáveis medidas nacionais mais protetoras que as asseguradas pelo direito da União, o que poderia conduzir ao estalar do direito da União ao impor que o TJUE preferisse a proteção que cada Estado-membro concede. A ser assim, estaria ele a atuar como um órgão jurisdicional superior aos Estados e não como um autónomo órgão jurisdicional de uma autónoma e específica União de direito.

Finalmente no art. 54.º proíbe-se o abuso de direito ao prescrever que a interpretação das normas da Carta não deve permitir que ações da União permitam a destruição dos direitos nela reconhecidos, ou restrições maiores do que as que ela consente.

Breve conclusão

É um dado certo e incontroverso que a DUE se fundamenta em valores que integram a sua base axiológica, os quais são comuns aos Estados-membros. Por isso, é também igualmente certo que esta nova ordem jurídica assenta nos valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de direito e do respeito pelos Direitos do Homem, valores essenciais sem os quais não seria possível edificar qualquer sociedade humana. Acresce, ainda, que é um dado inegável que a integração europeia foi evoluindo no sentido da construção de uma nova entidade política de natureza constitucional, multinível, que forçosamente teria de incluir o reforço da proteção e garantia dos direitos fundamentais. A não ser assim, toda a construção política e jurídica da União ruiria.

Percorrendo todos os domínios das atribuições da União, e vinculando ao seu respeito o comportamento dos seus Estados-membros, no que concerne à execução das obrigações para com ela, aquela vinculação revela a pertença a um património comum a todos nós europeus, património esse que não poderia deixar de constituir um parâmetro de validade de todo o DUE.

A positivação da CDFUE, com valor jurídico vinculativo, e, por isso, juridicamente sindicável, é o sinal mais visível dessa evolução política. Reafirmando a indivisibilidade de tais valores, a CDFUE materializa-os e identifica-os em cada um dos Títulos que apresenta, assim cuidando de obrigar os seus destinatários no sentido da sua observação, realização e promoção.

Desenvolvendo-se em 7 Títulos, que fez corresponder a cada um dos referidos valores europeus, a nossa exposição visava identificar e ilustrar o conteúdo de cada desses valores (referidos no art. 2.º do TUE), relativamente a cada um dos Títulos que sistematiza este catálogo de direitos fundamentais.

Após a nossa exposição julgamos ter ficado demonstrado que, efetivamente, a União “contribui para a preservação e o desenvolvimento destes valores comuns, no respeito pela diversidade das culturas e tradições dos povos da Europa”. Uma vez mais, o caminho fez-se caminhando.

Reunião do Conselho Europeu a Março de 2022.

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  1. Inclusive a nível externo, v. arts. 3.º, n.º 5, 21.º, 23.º e 42.º, n.º 1 TUE.

  2. Catálogo esse de natureza vinculativa em todos os casos em que os Estados-membros aplicam o direito da União ou quando o derrogam, quando adotam normas nacionais que o executam, ou quando aplicam direito nacional que se situe dentro do campo de aplicação do direito da União.

  3. Sobre esta questão vide (A. M. G. Martins, 2010c, p. 584). Coincidindo, (Duarte, 2005, p. 417 e seg.), afirma que os valores inscritos no art. 2.º TUE, “nascidos no alfobre estadual, representam, na verdade, um exercício de autovinculação primária, no sentido em que retiram a sua supravinculatividade das próprias Constituições dos Estados-Membros”; com especial interesse vide (Mesquita, 2011, pp. 141–164).

  4. Sobre este processo vide (Mesquita, 2010, pp. 179–188; Pacheco & Alves, 2022, pp. 19–36).

  5. O Preâmbulo, sendo um texto prévio ao articulado da Carta, tem um insubstituível valor hermenêutico incorporando os princípios ontológicos das normas que a constituem. A sua existência revela a autonomia jurídica do texto que faz abrir, sendo como que um portal de entrada rumo ao universo das disposições que apresenta. Assim, assume uma função constitucional sendo uma peça da Carta apta a produzir efeitos jurídicos. As alterações e o cuidado que os trabalhos preparatórios lhe foram dedicando provam a sua juridicidade e outorgam autonomia ao sistema da CDFUE no quadro do sistema geral de proteção de direitos fundamentais da União.

  6. O princípio do universalismo atribuiu a todos os indivíduos, direitos e deveres. Este princípio está consagrado no art. 12.º CRP, que afirma que os direitos fundamentais são “direitos de todos”. Para uma abordagem a esta perspetiva universalista, defendendo a existência de uma tendência para a universalização do respeito da dignidade humana enquanto base de todos os direitos humanos, vide (A. M. G. Martins, 2010b, pp. 526–537).

  7. Sobre a importância do princípio da indivisibilidade dos direitos, contrastando com as categorias tradicionais, propondo-o como linha de união entre diferentes ordens jurídicas, vide (Ponthoreau, 2003, pp. 928–936). Realçando que a dignidade humana justifica a indivisibilidade dos direitos fundamentais, salientando a sua prioridade em face aos Direitos Humanos, vide (Habermas, 2012b, p. 12). Salientando que a dignidade humana expressa um conceito fundamental normativo e substantivo, a partir do qual se devem deduzir todos os restantes direitos, vide (Habermas, 2012a, p. 16).

  8. As normas que gozam de aplicabilidade direta, nas palavras de GOMES CANOTILHO, “transportam em regra direitos subjetivos”. Esta qualidade não implica que não se tenha de aferir o grau de determinabilidade do conteúdo da norma, ou seja, a norma constitucional terá de ter o seu âmbito de proteção e respetivos efeitos jurídicos, percetíveis ou determinados no texto constitucional. Se eventualmente o seu conteúdo jurídico-constitucional não for determinado torna-se necessária uma lei densificadora. A normatividade reforçada dos direitos, liberdades e garantias deve ser traduzida pela sua aplicabilidade direta, pressupondo-se com isso que o seu conteúdo jurídico seja “suficientemente preciso ou determinável”. Tal significa que devem ser determináveis pelo texto da norma, os pressupostos de facto, os efeitos jurídicos e as cláusulas restritivas do seu âmbito de proteção. As normas de origem internacional, juridicamente relevantes para o indivíduo, que lhe outorguem verdadeiras pretensões subjetivas no plano interno, são designadas por normas operativas ou self executing. Estas reconhecem o direito de exigir ao Estado um determinado comportamento, não necessitando para o efeito de qualquer ato de concretização por ato interno, são suficientemente determinadas e igualmente aptas a conferirem um direito de ação para a sua defesa, na via da afirmação do controlo judicial da atuação do legislador. Sobre o tema vide (Canotilho, 2003, pp. 793–814).

  9. Como por exemplo os direitos negativos ou de proibição (arts. 2.º, n.º 2; 3.º, n.º 2; 4.º; 5.º, 19.º; 21.º, n.º 1; 32.º; 40.º e 50.º) que consagram normas imediatamente acionáveis; direitos que não preveem necessidade de regulação por parte do legislador da União ou dos Estados, sem a proibirem (arts. 2.º, 3.º, 6.º; 7.º; 10.º, n.º 1; 11.º; 12.º; 13.º; 14.º; 15.º; 20.º; 23.º; 24.º; 25.º, 31.º); e direitos que preveem remissões ao legislador para puderem ser tutelados (arts. 18.º; 21.º, n.º 2; 9.º; 10.º, n.º 2; 14.º, n.º 3; 16.º; 28.º; 30.º; 3.º, n.º 2; 8.º, n.º 2; 17.º), sendo – por isso – qualificados como autênticos direitos subjetivos.

  10. “Los principios son mandatos de optimización con respecto a las posibilidades jurídicas y fácticas. La máxima de la proporcionalidad em sentido estricto, es decir, el mandato de ponderación, se sigue de la relativización con respecto a las posibilidades jurídicas”. Cf. (Alexy, 1993, p. 112).

  11. Para quem os princípios não impõem à União ou aos Estados-membros a obrigação de respeitar um conteúdo essencial, de que por definição careceriam, vide (del Llano, 2005, p. 233). No mesmo sentido, (Sospedra, 2004, pp. 41–71).

  12. Convenção STE 165 e Protocolo Adicional STE 168.

  13. Neste sentido, (Duarte, 2000, p. 151; Smijter & Lenaerts, 2001, p. 273).

  14. Propondo uma “reabilitação dogmática dos direitos sociais como direitos fundamentais”, vide (Novais, 2010, p. 2010).

  15. A liberdade sindical conhece um núcleo comum entre os Estados-membros que se consubstancia em: direito de associação; direito de filiação em sindicatos; direito de não se filiar nos mesmos; direito a organização autónoma, e direito a atividade sindical. Por sua vez, a CEDH consagra uma visão minimalista dos mesmos. A finalidade do art. 12.º é garantir a presença e a eficácia dos parceiros sociais.

  16. Este direito é raramente reconhecido a nível constitucional, sendo-o apenas a nível legal. A nível da legislação comunitária já era regulamentado o despedimento coletivo (Directiva 98/59/CE do Conselho de 20 de Julho de 1998, 1998), decorrente de transferência de empresas (Directiva 2001/23/CE do Conselho, de 12 de Março de 2001, 2001) e da insolvência (Directiva 80/987/CEE do Conselho, de 20 de Outubro de 1980, 1980), e em função de características especiais de trabalhadores (Directiva 2001/23/CE do Conselho, de 12 de Março de 2001, 2001). O reconhecimento deste direito como fundamental, decorre do reconhecimento da dignidade humana do trabalhador.

  17. Sobre a cidadania na União Europeia, vide (A. M. G. Martins, 2010a, pp. 9–20; Pacheco, 2015, 2016a, 2017b, 2017c, 2017a; Ramos, 1994, 2018).

  18. Sobre esta questão vide (Oliveira, 2018; Pacheco, 2021).

  19. A proteção dos direitos fundamentais não se basta com a proclamação substantiva dos direitos, tornando-se necessário estabelecer garantias processuais. A garantia do processo equitativo transformou-se no princípio fundamental de preeminência do direito de tal modo imprescindível às sociedades democráticas que não admite medidas restritivas. Para um estudo profundo sobre o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva na União, vide (P. F. Martins, 2007).

  20. Vide. com interesse, (Castilhos et al., 2021; Pacheco, 2016b).