Sobre o encerramento da unidade de investigação em filosofia da ciência da FCUL, onde se justifica porque foi tomada a decisão fácil e não a mais acertada. Co-autoria de Carla Feliciano e Gonçalo B. Martins.
Terminamos o ano a escrever este artigo de opinião, após o encerramento da unidade de investigação em filosofia da ciência, sediada na faculdade de ciências da Universidade de Lisboa. Tratou-se de uma decisão puramente administrativa (devido ao número insuficiente de investigadores e professores com vínculo à faculdade) mas perante este argumento oficial, havia pelo menos duas alternativas: (1) promover a possibilidade de vinculação de um número adequado de investigadores (provenientes do vasto e prolífico universo existente) mantendo a unidade de investigação ou (2) fechar efetivamente a unidade de investigação, porque, de acordo com os estatutos, o podiam fazer. Vamos então justificar porque achamos que foi tomada a decisão fácil e não a mais acertada.
É um facto que proeminentes figuras contemporâneas da ciência, como Steven Weinberg, Stephen Hawking e Neil de Grasse Tyson, expressaram de maneira eloquente as suas convicções de que a filosofia se revela mais prejudicial do que benéfica para a ciência; como também foi expresso que a filosofia estaria, de certo modo, morta (uma vez que muitas das suas questões fundamentais têm sido apropriadas pela física); ou ainda que a própria comunidade filosófica teria deixado de existir. Não pretendemos ressuscitar o debate entre a escola de Isócrates, que defendia uma educação prática, e a Academia de Platão, que se preocupava com questões gerais ou fundamentais. Também não alimentamos a veleidade narcísica de reconstruir a obra Protréptico, de Aristóteles – porquanto outros autores já o fizeram com enorme virtuosismo –, para assim tentar recuperar a defesa da filosofia perante acusações sobre a sua futilidade. Gostaríamos, apenas, que tivesse havido alguma clarividência perante uma argumentação que tem dois milénios e que ainda hoje toca nos pontos relevantes.
Todas as questões fundamentais que impulsionaram o desenvolvimento da ciência basearam-se, em preocupações teóricas e abstratas e não em problemas práticos. Seria inconcebível imaginar os trabalhos de Galileu sem o conhecimento que este adquiriu da noção platónica de uma ordem matemática ideal que subjaz às aparências. Newton, de forma inequívoca, reconheceu a sua dívida para com Demócrito, firmando-se em ideias que emergiram originalmente de motivações filosóficas, tais como as conceções de espaço vazio, atomismo e movimento retilíneo natural; ademais, a sua compreensão do espaço e do tempo deve-se muito ao seu diálogo com as ideias de Descartes. Vários avanços na Mecânica Quântica são atribuíveis às intuições de Heisenberg, que estava imerso na atmosfera filosófica neopositivista[1] da sua época. Esta mesma postura filosófica de restrição epistemológica levou Einstein, na sua Teoria da Relatividade Especial, a manifestar que a noção de simultaneidade poderia ser ilusória. Ademais, Einstein também reconheceu a considerável influência de outros filósofos como Leibniz, Berkeley e Schopenhauer para o seu pensamento e elaboração teórica.
Poderíamos citar muitos outros exemplos, inclusivamente na primeira pessoa, desse diálogo recíproco e frutífero entre a ciência e a filosofia. A filosofia oferece métodos essenciais para a geração de novas ideias, para a formulação de perspetivas inovadoras e para o desenvolvimento do pensamento crítico. A postura e também a formação filosófica fornecem algumas habilidades e ferramentas que os cientistas necessitam, mas que não fazendo parte de um percurso formativo em ciência, ficaram negligenciadas em prol de outras mais valorizáveis pela ciência contemporânea como a aplicabilidade e a geração de mais valias económicas; destacamos: a análise conceptual, a atenção à ambiguidade, a precisão na expressão, a capacidade de identificar lacunas em argumentos considerados sólidos, a criação de perspetivas ousadas, a identificação de fragilidades na construção de conceitos e a busca por explicações conceituais alternativas.
De maneira irónica e inesperada, quando alguém ou uma instituição nega a utilidade da filosofia, na verdade está, de forma tácita e desconsiderada, a fazer filosofia. Quando um cientista ou uma instituição, avalia os seus dados ou resultados científicos está, na realidade, a discutir os métodos da ciência, uma posição fundamentalmente filosófica. É isso que a filosofia da ciência faz, busca compreender como a ciência é realizada, se pode ser aprimorada na sua eficácia para conhecer a realidade. Acreditamos de forma justificada que todo o cientista, merecedor desse nome, reflete sobre sua própria metodologia. Pois, apenas esse tempo dedicado à reflexão sobre os métodos e as possibilidades da ciência contemporânea, o consegue levar a um melhor entendimento da forma como a ciência acede à realidade e quais as suas limitações. A nossa crença genuína no valor da ciência, leva-nos, inevitavelmente, de volta à filosofia, ao positivismo lógico e à sua total decadência por volta dos anos 1960 após as contribuições filosóficas de pensadores como Quine, Popper, Kuhn e Putnam.
As noções de falseabilidade e refutabilidade, assim como as revoluções científicas e mudanças de paradigma, estão presentes em toda a ciência, servindo como diretrizes para orientar investigações e avaliar resultados. O ceticismo sarcástico que emerge de alguns cientistas contemporâneos, dirigido à filosofia praticada em espaços académicos, nada mais é do que uma reiteração de um antigo slogan do Círculo de Viena, associado à sua postura anti metafísica. Assim, quando certos cientistas afirmam que a filosofia é infrutífera, estão, na sua essência, a aderir uma filosofia da ciência específica (o que não é errado, mas pode ser inadequado). O equívoco central desses cientistas reside na confusão entre uma compreensão da ciência (que é particular, contingente, limitada e historicamente contextualizada), e uma suposta lógica perpétua da ciência em si. A fraqueza dessa posição revela falta de consciência sobre a natureza histórica e mutável do conhecimento científico, que vê a ciência como um campo do conhecimento assente numa metodologia estanque e incontroversa, que perdura desde Francis Bacon até aos dias de hoje. Essa visão implica a crença perigosa de que o que um cientista deve fazer e como deve fazê-lo é indiscutível.
Um cientista pouco conhecedor de filosofia da ciência irá, de uma maneira simplista, definir a ciência como: uma dedução de leis gerais a partir da observação de fenómenos, ou a descoberta dos constituintes últimos da Natureza, ou a descrição de regularidades nas observações empíricas, ou o desenho de esquemas conceptuais provisórios para entender o mundo. Mas a ciência é tudo isto e, esperamos, muito mais. Não é um projeto com uma metodologia eterna, com objetivos delimitados ou uma estrutura conceptual fixa. Deverá ser um esforço que evolui para melhor compreender e explicar o mundo, e que, durante o seu desenvolvimento histórico, violou as suas próprias regras e assunções metodológicas.
A ciência não é apenas, como ensinam os currículos descuidados e incautos, a recolha de dados e a sua posterior compreensão na forma de teorias. Nesta imagem, os cientistas são seres puramente lógicos que usam uma linguagem específica, numa estrutura conceptual e cultural rígida e estabelecida. Mas as estruturas conceptuais também têm de evoluir. A ciência não é simplesmente um corpo crescente de informação empírica e uma correspondente sequência de teorias – é também a evolução da nossa própria estrutura conceptual; é a demanda contínua de uma estrutura conceptual melhorada para apreender a realidade, e atingir níveis progressivos de conhecimento. É essencial que, durante a sua formação, um cientista compreenda que a ciência tem vindo a redefinir continuamente seu entendimento sobre si mesma, sobre os seus métodos, ferramentas e objetivos e essa capacidade é o que faz dela um dos mais valiosos empreendimentos humanos. Somos melhores cientistas quando usamos ferramentas filosóficas assim como somos melhores filósofos da ciência se conhecermos a ciência a que nos dedicamos por dentro. Este entrelaçar entre aprendizagem e estruturas conceptuais, esta flexibilidade, e estas mudanças metodológicas e reajustes de objetivos desenvolveram-se num diálogo constante e fecundo entre ciência prática e reflexão filosófica. Daí que também a ciência tenha influenciado bastante, e de forma engrandecedora, o pensamento filosófico. Vão além do nosso entendimento os motivos pelos quais os filósofos da ciência não têm lugar na faculdade de ciências, estaremos a assistir a uma nova época de fechamento da ciência à filosofia ou será apenas uma manifestação miópica de poder selada com uma promessa vã de criação de equipas multidisciplinares selada num aperto de mão? Outrora, um aperto de mão teria simbolizado um compromisso firme, hoje talvez tenha sido seja só a nossa aceitação do poder. Esse é o motivo pelo qual estamos aqui a defender a causa de nós mesmos, cientistas e doutorandos em filosofia das ciências. Muitas são as coisas que ao longo dos tempos se nos têm imposto na tentativa de se tornarem “causas” válidas pelas quais lutar. Umas apresentaram-se-nos como verdades incontestáveis (em virtude de preceitos normativos estabelecidos), outras como bens morais (pois apoiam o que dizem ser uma causa legítima) outras intitulam-se genuínas (por estarem em conformidade com a essência da natureza); algumas surgiram até na forma de coação. Esta é a nossa causa, a causa que decidimos defender: o lugar da filosofia da ciência.
O neopositivismo (também positivismo lógico) é uma corrente filosófica que surgiu no início do século XX e que se formalizou com a constituição do Círculo de Viena. Este movimento teve reconhecimento internacional e defendia a ideia de que o conhecimento se limita ao que é observável e verificável (pela observação direta ou pela prova lógica). ↑