O manifesto de um sonho azul

Pedro Costa / Clean Feed

Fotografia NUNO FERREIRA SANTOS

O espelho e os sonhos são coisas semelhantes,
é como a imagem do homem diante de si próprio.
José Saramago 

Quando a realidade apresenta uma falha, o sonho entra em ação e corrige o trânsito do infinito no finito, como diria Deleuze. Porém, não importa o dia em que a falha foi identificada, mas o da sua correção. Mais do que isso: importa conhecer o homem que sonhou a realidade que faltava, como lembra o paratexto de Saramago, escritor a quem é consagrada, aliás, a segunda música do primeiro álbum da editora Clean Feed. Pedro Costa é esse homem: fundador da Clean Feed, curador de festivais de jazz, organizador de conferências, professor de música improvisada[1] e até, em tempos idos, chauffeur do Jazz Agosto[2].

O erigir deste sonho começou de forma subtil e fraternal. Pedro Costa e os seus dois irmãos, Nuno e Carlos, alugaram uma loja de um centro comercial falido, em Oeiras, com o apoio do pai. Em seguida, Rodrigo Amado, saxofonista de alta qualidade, que Pedro Costa conheceu na Loja da Música, compra a quota de Nuno. A editora passou a ter as suas instalações numa casa no Jardim de Oeiras, que tivera como vizinho no piso superior Hélder Moutinho, irmão de Camané. As movimentações oníricas começaram, assim, a materializar-se: Carlos saiu da editora e abriu-se a mítica loja, empresa e editora Trem Azul[3], no Cais do Sodré, com as presenças de Ilídio Nunes, Hernâni Faustino e Pedro Costa, cujo encerramento, em 2014, comportou tristeza e desamparo para o mundo do jazz e para Portugal. 

No dia 7 de março de 2001 fez-se a escritura, com o apoio do pai de Pedro Costa, e a editora foi criada. No entanto, Pedro Costa não deixa de frisar que a data de nascimento da Clean Feed aconteceu, justamente, no dia 16 de Março, com o concerto e a gravação inaugurais promovidos pela editora, com as presenças de Lou Grassi e Steve Swell, dois músicos com quem Pedro Costa houvera assumido o seu primeiro compromisso editorial em Nova Iorque. Neste arco temporal de nove dias, o sonho conhece as primeiras tribulações que o fortalecem, a saber: Pedro Costa desafia Hernâni Faustino para criar uma editora e apostar na distribuição de discos. Decidem enviar uma proposta para a Dargil, mas o silêncio imperou. Seguem-se novos desvios: Pedro Costa que, à altura, trabalhava na Valentim de Carvalho, propõe abrir uma label de jazz dentro da Valentim, garantindo a distribuição a partir de Paço de Arcos. Não houve interesse. Paulo Gil entra a bordo da aventura do sonho, mas esta possibilidade também não vinga. O resistente do sonho tem um nome: Pedro Costa, admitindo desconhecer os processos orgânicos inerentes a gravações, microfones, misturas e masterizações e sem saber ler nem escrever música, torna-se o responsável pela editora portuguesa de maior saliência para o jazz contemporâneo mundial. No entanto, o sonho de Pedro Costa contou com dois companheiros: Hernâni, que ficou encarregue da Trem Azul, e Ilídio, responsável pela divulgação editorial.

Foi, então, lançado o primeiro gesto sonoro deste sonho azul: “The Implicate Order – At Seixal”, com Steve Swell, Ken Filiano, Lou Grassi, Rodrigo Amado e Paulo Curado. A Clean Feed, «um termo usado em vídeo que significa alimentar um sinal puro», cumpre o intento explícito do seu nome: não se trata de trabalhar em produção ou pós-produção, sequer de ter ideias para criar um diálogo entre instrumentos, mas oferecer «um sinal puro», isto é, «música a vir dos músicos para os ouvintes», esclarece Pedro Costa em entrevista a Hugo Pinto, datada de dezembro de 2023.

Este movimento de resistência encontra-se fixado no mote editorial que Pedro Costa não deixa de reiterar: «wrong but strong». Quem disse que o erro não é o maior aliado da força e parente íntimo do Sonho? O erro, a força e o sonho enrobustecem-se, sob um contexto de crise: a Clean Feed começa a instalar-se num mercado sui generis, ou seja, quando a venda de discos cai a pique e a Valentim e a Virgin já tinham fechado portas.

A verdade é que, mesmo desconhecendo os meandros técnicos e logísticos do mundo editorial, Pedro Costa, desde muito cedo, e por influência do irmão mais velho, começou a revelar interesse por editoras, estúdios de gravação, datas, produtores e instrumentos[4] aos oito anos. Por volta dos doze ou treze anos, é invadido pelo desejo de ter uma editora, isso mesmo afirmou a Hugo Pinto em entrevista. Aos quinze anos começa a ouvir jazz[5] e o sonho enraíza-se, mas oiçam-se as palavras do editor, numa entrevista imperdível de Gonçalo Falcão, em março de 2021, a propósito da efeméride dos vinte anos da editora, com a chancela da jazz.pt:

«Tenho essa coisa de querer conhecer toda a informação do disco, de contextualizar e conectar aquilo com outras coisas, de perceber de onde é que vem, porque é que foi gravado naquele estúdio, naquela altura, os gajos que estavam lá, o que eles tinham feito antes e o que é que fizeram a seguir. Tenho essa curiosidade que me faz falta para conseguir arrumar cá dentro, no meu disco rígido, a informação. Sempre gostei desse lado prático da música. Sem ser só a música, mas também como é que se organiza tudo à volta da música para que ela aconteça.»

O fermento onírico já há muito que habitava o espírito de Pedro Costa e, em 2000, numa viagem a Nova Iorque[6] com Carlos e mais dois amigos, decide começar a espalhar a boa nova de fundar uma editora internacional e estabelecer os primeiros contactos com músicos. O itinerário da viagem contemplava três a quatro concertos diários. Nesta atmosfera fervilhante, Pedro Costa conhece Lou Grassi e Roswell Rudd, que viriam à Europa tocar no ano seguinte, Wilber Morris, Steve Swell, Mark Whitecage, entre outros. As estrelas azuis alinharam-se: houve concertos no Hot Clube e no Seixal, com gravação e, passados dez anos de vida, a Clean Feed atinge o ano doirado das edições: 2011, com 60 discos editados.

O primeiro músico português a ser editado foi Mário Delgado (guitarra), com o “Filactera” [CF004CD], que conta com as colaborações de Carlos Barretto (contrabaixo), Alexandre Frazão (bateria), Andrzej Olejniczak (saxofone) e Claus Nymark (trombone), «uma lança em África», como admitiu o editor em entrevista supramencionada de Falcão. Seguiu-se Bernardo Sassetti – com quem Pedro Costa manteve uma bonita relação de amizade desde os seus dezoito anos – na companhia de Carlos Barretto e Alexandre Frazão, com o álbum “Nocturno” [CF008CD], com data de gravação de 3 a 8 de julho de 2002. O álbum de Sassetti teve muita projeção e uma excelente receção, graças ao trabalho diligente de Ilídio na divulgação, tendo vendido umas 10 mil cópias, admite Pedro Costa em entrevista de Rui Miguel Abreu, datada de março de 2021, sob a égide celebrativa das duas décadas de existência da editora.

No entanto, o álbum da editora que quebrou as fronteiras foi “Devil’s Paradise” [CF010CD], datado de 2003, de Gerry Hemingway (bateria), com Ellery Eskelin (saxofone), Mark Dresser (contrabaixo) e Ray Anderson (trombone), com liner notes de Bill Shoemaker, pintura de capa da autoria de Manuel Amado, design de Rui Garrido e fotografia de grupo de Alan R. Chandler. O sonho atingiu a imprensa internacional, as encomendas começaram a pulular e a editora deixa uma marca indelével no mappa mundi do jazz contemporâneo.

O catálogo da Clean Feed, que conta com as edições da Shhpuma, uma editora satélite de feição mais experimental, a “Guitar Series” e os álbuns Trem Azul, ultrapassa as 700 edições. É este “efeito cauda longa”, grafado pelo colaborador conceptual, Ilídio, que permite a realização anual de campanhas de fundo de catálogo. Todavia, Pedro Costa admite que, em Portugal, não se vende nada, sendo muito irregular a aposta de grandes distribuidoras, como por exemplo a FNAC, na oferta das edições da Clean Feed, lamenta o editor, que tem uma visão muito lúcida sobre o estado da arte em Portugal, senão leia-se:

«Quando vem no telejornal em rodapé, “cultura” ou “artes” e depois aparecem os Delfins ou os festivais pagos pelas multinacionais percebemos que ainda há muito a esclarecer. Este país não pode ser só festivais de Verão ou fadistas para os turistas. Há que perceber que uma coisa é o teatro de revista e outra é o teatro. O teatro de revista não é uma coisa nova, não tem intervenção, não marca uma época, não tem profundidade. Em todas as áreas há os gajos da chacha, e muitas vezes são esses os que aparecem nos media como “cultura”. Não é que os chachas sejam maus-mesmo-maus, mas não são nada. Esses organismos públicos e essas instituições também têm de desenvolver uma perceção mais clara desta distinção. Não vamos dar às pessoas só o que elas querem, o que elas já conhecem. Não podemos estar sempre a apresentar António Zambujo só porque é o que elas querem. A obrigação é a de estar sempre a puxar um bocadinho. E aí, nós somos completamente ignorados; não existe qualquer tipo de apoio ou sequer interesse. Já ouvi dizer que há uma malta da política a dar o exemplo da Clean Feed como uma coisa bem-sucedida. Acho que isso já ocorreu na Assembleia da República. Alguém da oposição referiu a ausência de edição em Portugal e alguém do governo deu o exemplo da Clean Feed, como uma editora de nível mundial, um bom exemplo. Mas a verdade é que nunca houve nenhum carinho connosco. É que eu não estou a falar de dinheiro quando falo de apoio: que dêem alguma atenção, que tenham interesse no nosso trabalho, que percebam em que é que nos podemos ajudar mutuamente. […] As Câmaras Municipais de Cascais, Oeiras e Lisboa não deviam mostrar interesse? Entregar-nos um espaço para trabalharmos? Lá está, algo que demonstrasse o seu interesse. Porque é óbvio que nós devíamos ter um espaço para fazer programação.» (Falcão, 2021)

As edições da Clean Feed, que englobam discos coreanos, chineses, colombianos, chilenos, franceses, noruegueses, entre outros, são altamente ecléticas e, ante esta diversidade de abordagens artísticas, Pedro Costa considera ser difícil classificar ou arrumar a linha editorial, afirmando, em entrevista a Rui Miguel Abreu, que a Clean Feed não é nem uma editora experimental nem uma editora de free jazz, mas uma editora não mainstream «que tenta representar o jazz e a música improvisada de hoje em dia». Ainda na mesma entrevista, Pedro Costa admite que o ano mais difícil para a editora foi em 2005, antes da saída de Rodrigo Amado: as rendas do espaço eram altíssimas e não existia ninguém responsável pela organização, o que se traduziu numa dívida de 120 mil euros. Porém, a entrada de Madalena Borges provocou uma viragem de cenário: a faturação entrou em dia e as dívidas esvaíram-se graças ao exímio planeamento de Borges.

O trabalho inexcedível da editora, quer em relação à promoção de jovens músicos portugueses (e.g.: Gabriel Ferrandini, João Almeida, Bernardo Tinoco, Pedro Melo Alves, entre outros), quer em relação ao dinamismo projetivo dos músicos nacionais e internacionais[7] na cena mais atual do jazz (a título exemplar, lembre-se a edição de seis festivais em Nova Iorque, e outros na Alemanha, Eslovénia e Portugal, sem nenhum apoio institucional ou estatal), merece destaque longo, como o efeito que os salva.

Neste sentido, as primeiras gravações da editora aconteceram no Shangri‑Lá, em Campolide, espaço onde Pedro Costa conheceu Madalena Borges, que pertence à família editorial atual da Clean Feed, na companhia de Travassos e Ricardo Leiria. Atualmente, a editora opta por deixar a escolha dos estúdios aos artistas e músicos, elegendo dois estúdios em terras nacionais: o Namouche e o Tchatchatcha.

Note-se que, inicialmente, os auditores e os amantes de jazz olhavam com um certo grau de suspeição para a editora e Pedro Costa chega a afirmar em entrevista a Rui Miguel Abreu que até José Duarte lhe dissera preferir não encontrar no catálogo algumas edições e que, muito em breve, Costa teria que começar a editar «músicos que não gostas». Mas Pedro Costa não cede e luta pelo seu sonho. Prova disso mesmo é o catálogo da Clean Feed, que ostenta uma plêiade variada de músicos, cuja unidade se encontra no gosto editorial do editor, exposto nestes termos:

«Por exemplo: não vou editar um disco de um grupo que já tem não sei quantos discos parecidos e grava em outra editora; ou de alguém que tem muitos discos editados e que já disse aquilo muitas vezes. Tenho mais interesse em editar coisas que não estão tão ouvidas e têm mais necessidade de edição. Coisas que me surpreendem, que têm um condimento especial. Obviamente, não vou dizer que os 600 e tal discos que tenho editados são todos altamente revolucionários. Não é necessariamente isso. Mas… muitas vezes é a composição que é sofisticada, que tem ali uma coisa que me cativa. Muitas vezes é a improvisação, a relação entre os músicos, e não necessariamente porque se trata de virtuosos do saxofone ou do piano. O que me atrai é a relação que os músicos têm entre si, o que é que eles procuram, uma forma de apresentar a improvisação. É uma coisa que se sente. A improvisação é uma coisa que me cativa. Há muitos músicos a improvisar, não é? Mas há coisas que me tocam mais do que outras num contexto de improvisação total. Também não estou propriamente numa altura em que quero editar discos de improvisação “não-idiomática” dentro daquilo que estávamos a falar…» (Falcão, parte 2, 2021).

Acreditando e defendendo que existem «tantas músicas como improvisadores», o que interessa ao editor é fazer do processo criativo o momento heurístico por excelência e, por isso, cada disco editado é visto pelo editor como uma nova abordagem, uma descoberta do artista ou uma inquietação que o leva a encontrar respostas distintas, outros efeitos e/ou outras formas, por outras palavras, «é preciso mudar outra vez, é preciso questionar outra vez, procurar novamente», afirma Costa a Falcão. Aliás, e para reforçar este aspeto do seu temperamento, Pedro Costa esclarece, em entrevista de 2021 à Lusa, que este seu gesto se prende com o interesse em que a editora se torne «uma coisa distinta» e, dado ser impossível ter sempre música nova, o que importa é que as edições espelhem «músicos autênticos».

Note-se que esta procura incessante pela distinção atravessa o design editorial da Clean Feed. A apresentação de capas de álbuns o mais diversificadas possível, sem nenhum modelo que as encarcere num fundo homogéneo e previsível. A este respeito, convém acrescentar que o primeiro designer da editora foi Rui Garrido, tarefa assumida posteriormente por Travassos. Porém, Pedro Costa admite, na segunda parte da entrevista a Falcão, que as capas do Rui «são porreiras, mas iguais a outras», apostando nas fotografias e no lettering, mas «os primeiros discos do Travassos, são outra coisa», pois a identidade da editora escusa-se a uma fórmula, arrisca e distingue-se por assumir o risco em várias frentes.

Em 2008, a Clean Feed atingiu o reconhecimento, há muito merecido, pela revista All About Jazz, tendo sido reconhecida como uma das cinco melhores editoras de jazz e três das suas edições foram nomeadas para álbuns do ano pela mesma revista, preservando a linha inovadora com que surgiu na cena jazzística. Fruto da qualidade das suas edições, em 2009, a Clean Feed foi considerada um case study.

Em 2011, a Clean Feed foi convidada por John Zorn para comissariar quinze dias de concertos no The Stone, em Nova Iorque, tal como afirmado por Nuno Catarino no site Bodyspace, espaço virtual que se juntou à celebração dos dez anos de existência da editora, com um belíssimo bolo de aniversário a dar conta dos discos mais relevantes do seu catálogo, sob a lente sonora de alguns amantes do jazz. Mas oiça-se o registo, em primeira pessoa, da experiência para a programação no The Stone:

«Quando recebi o email do Zorn achei que era a gozar. Era um John Zorn ultra simpático a convidar-me para fazer coisas e programar 15 dias em julho. Assim, preparei 28 concertos, dois por dia, durante 14 dias. Um inferno de calor.… o ar condicionado avariado. Em Nova Iorque quando está calor é a sério; passava os dias a suar, chegava à noite, aos concertos, a escorrer água. Foram lá os Fight the Big Bull num concerto lindo em que acabaram a cantar uma música de The Band, sem instrumentos. Foi um final incrível. Levei John Hébert em octeto com Fred Hersch a tocarem música do Mingus. Estava “à pinha” (olha, o Mingus é outro de que apetece ter tudo, e se não tenho tudo… tenho quase tudo).» (Falcão, 2021)

Do vastíssimo catálogo da editora, saliento apenas alguns discos, que se tornaram distintivos, quer para o editor, quer para os auditores, a saber: “Reed Song” [CF005CD] de Will Holshouser Trio, saído em 2002, espécie de «mise-en-scène» dual e emotiva, segundo a apreciação de Rafael Santos; Interface” [CF022CD] de Steve Lehman Camouflage Trio, um disco gravado em 2003 no Teatro Académico Gil Vicente, em Coimbra, e lançado em 2004, que conta com Mark Dresser (contrabaixo), Pheeroan Aklaff (bateria) e Steve Lehman (saxofone e composição), e apresenta design e design concept de Rui Garrido; “Beautiful Existence” [CF050CD] de Joe Morris Quartet, gravado em 2004, em Brooklyn, Nova Iorque, lançado em 2005, com design  de Rui Garrido, fotografia de capa de A. Mateur, liner notes de Tad Hendrickson; “Live In Lisbon” [CF063CD], marca sonora de Otomo Yoshihide’s New Jazz Quintet, saído a lume em 2006, com design de Rui Garrido e que, segundo Nuno Catarino, apresenta o registo de um concerto inesquecível, que aconteceu no auditório ao ar livre da Gulbenkian, um momento sonoro intenso que fez parte da programação do Jazz em Agosto de 2004; “Tamarindo” de Tony Malaby[8] (saxofone e composição), com William Parker (contrabaixo) e Nasheet Waits (bateria), álbum lançado em 2007, que conta com design de Rui Garrido e liner notes de Mark Helias; “4 Corners”, que conta com a composição de Adam Lane (contrabaixo) e de Ken Vandermark (saxofone e clarinete), Magnus Broo (trompete) e Paal Nilssen-Love (bateria), é um álbum gravado ao vivo em junho de 2006 no Salão Brazil em Coimbra, segundo nota de Nuno Leal, que foi editado em 2007, com design de Rui Garrido e notas de Rui Eduardo Paes; “Four Improvisations (Duo) 2007” [CF100CD], que conta com Anthony Braxton (saxofone) e Joe Morris (guitarra), é um disco quádruplo saído em 2008, mas gravado em julho de 2007 no Crowell Auditorium da Wesleyan University, com design de Rui Garrido e liner notes de Mike Chamberlain; “Guewel” [CF123CD], de Harris Eisenstadt, foi gravado em abril de 2008 nos Magma Studios, em Brooklyn, tendo saído nesse mesmo ano, com design de Travassos e fotografia de grupo da autoria de Scott Friedlander; “Life Between” [CF128CD] da pianista e compositora Angelica Sanchez foi um dos álbuns nomeados para melhor álbum do ano e foi gravado no Systems Two Studios, em Brooklyn, em 2007, e lançado no ano seguinte, com design de Rui Garrido e liner notes de Mark Dresser; “All Is Gladness in the Kingdom” [CF169CD], de Fight The Big Bull (feat. Steven Bernstein), álbum saído em 2010, que oferece «uma música para ouvir alto», «como se estivesses a ouvir Bartók, Frank Zappa, jazz de New Orleans, Duke Ellington…», esclarece Pedro Costa na primeira parte da entrevista a Falcão; “Deluxe” [CF174CD] de Chris Lightcap (contrabaixo e composição), gravado em outubro de 2008 em Brooklyn e editado em 2010, o álbum conta com Andrew D’Angelo (saxofone), Gerald Cleaver (bateria) e Craig Taborn (piano elétrico), com design de Travassos; “Motion” [CF177CD] de Bernardo Sassetti Trio[9], álbum gravado, misturado e masterizado na Valentim de Carvalhos Studios, que saiu em 2010 e conta com os músicos Carlos Barretto (contrabaixo) e Alexandre Frazão (bateria) e design de Travassos; “I Never Meta Guitar” [CFG005-009CD] é uma complicação que abarca diferentes colaborações, cujo acme se dá com “Study For Hairpin And Hatbox”, de Nels Cline, segundo Paulo Cecílio; “Insomnia” [CF215CD] de Tim Berne, álbum gravado no Flux Studios em 1997 e editado em 2011, conta com Erik Friedlander e Dominique Pifarély (violino), Chris Speed (clarinete), Michael Formanek (contrabaixo), Jim Black (bateria), Baikida Carroll (trompete) e Marc Ducret (guitarra de 12 cordas); “You Taste Like a Song” [CF216CD] de Júlio Resende Trio, álbum editado em 2011, que resgata o legado de Monk e outros mestres, segundo Hugo Rocha Pereira, e apresenta design de Travassos e fotografia de Sara Vieira; “Old and Unwise” [CF221CD] de Bruno Chevillon e Tim Berne[10], gravado em junho de 2010 no Namouche Studios e saído em 2011; “Injuries” de Angles 9[11], álbum de jazz avant-garde editado em 2014, com design de Travassos; “O Carro de Fogo” [CF522LP] de Sei Miguel[12], álbum gravado ao vivo em abril de 2018 no Namouche Studios e saído em 2019, também com design de Travassos, entre muitos outros álbuns, que distinguem a editora. Os desejos de novas edições continuam a habitar o espírito insaciável do editor, que confessa gostar da ideia de gravar outra vez Steve Lehman, Ken Vandermark, Mats Gustafson, mas nunca Jamie Cullum ou Norah Jones, depois da questão provocatória de Hugo Pinto.

Em 2023, aconteceu o festival Causa Efeito na Universidade Nova, um desafio lançado à Clean Feed, que incluiu concertos e palestras. A 28 de março de 2024, a jazz.pt dá conta do anúncio de mais um pacote de novas edições da Clean Feed, com TGB, Liba Villavecchia Trio + Luís Vicente, Rob Mazurek, “Meandering Demons” de Peter Van Huffel’s Callisto, um novo registo de CAVEIRA pela Shhpuma e, dando novo impulso ao sonho, no dia 26 de abril, a jazz.pt fixa um novo anúncio da editora, datado de 25 de abril, que contempla material discográfico da autoria de Miha Gantar, Simon Nabatov Quintet e “Te Ti​’​amā” de Christelle Séry e Jérôme Descamps.

Pedro Costa, um «menino da linha», como confirma em entrevista, e que se tornou um editor do mundo, não deixa, ainda assim, de ser invadido por um desejo bucólico de passar a vida na Malarranha – município de Mora, distrito de Évora, bem junto ao de Portalegre – afirmando que é um sonho trabalhar naquele espaço: de um lado, o computador a rivalizar com a piscina e os passeios rurais; do outro, ovelhas, burros, vacas e galinhas com nomes próprios, isto mesmo descreve o editor em entrevista a Hugo Pinto.

Em suma, o sonho, sendo fruto de um homem, não deixa de ser pertença da Humanidade. Mas há que alimentar o sonho e não o deixar morrer à míngua. Para isso não será necessário um banquete de Lúculo, basta um espaço de programação, um clube, uma sala, como sustenta Pedro Costa[13]. É preciso que os “homens” reconheçam e alimentem o sonho de um homem, que se torna, afinal, o sonho do Homem.

[1] Sobre a experiência de docência de Pedro Costa, oiça-se o que diz o editor a Hugo Pinto: «É muito giro. É algo que faço desde 2021. Agora vou com o Hernâni Faustino e o Pedro Sousa. Na primeira parte eu falo sobre a história do jazz, mostro uns vídeos, desde o princípio das canções do trabalho, o blues e por aí fora, o jazz propriamente dito, as várias correntes… E na segunda parte, os músicos vêm, eu distribuo os instrumentos da escola pelos alunos porque eles só tocam flauta nas aulas. No princípio todos traziam as flautas, mas agora já não trazem e utilizamos xilofones, metafones, caixas chinesas, pandeiretas, tamborins e eu dirijo a orquestra a tocar todos esses instrumentos e faço jogos com eles e os músicos improvisam por cima daquilo.»

[2] Leia-se o que diz Pedro Costa sobre a experiência de chauffeur, uma «experiência maravilhosa», que o permitiu conhecer vários músicos: «Sim, e adorei fazer isso. Ia buscar os músicos ao aeroporto, estive com Henry Threadgill, conheci-o, falámos de música.» (Falcão, parte 1, 2021) Um cidadão do mundo, Pedro Costa refere, ainda na mesma entrevista, quais os músicos que mais gostou de conhecer, assim: «Conhecer Charles Gayle… Estava eu, ele e o Hernâni num quarto de hotel no Chelsea, que era onde nós estávamos alojados. O quarto era só discos e malas, tudo ao molho. Estivemos lá horas a falar. O Charles ligava-me muitas vezes. Ou Tim Berne, que me liga e manda-me mensagens. Michael Formanek; é uma coisa de que me orgulho, de ter criado uma relação com ele que vai para lá da música. Tim Berne é um tipo com quem eu ia regularmente tomar o pequeno-almoço quando estava em Nova Iorque. Encontrávamo-nos num cafezinho. Ele morava em Brooklyn e eu ficava lá também numa casa.» E acrescenta, ainda: «O Vandermark. Adorei também conhecer James Blood Ulmer, Sam Rivers, Muhal Richard Abrams, Andrew Hill, estive várias ocasiões com eles. Quando estive a última vez com o Hill perguntei a John Hébert o que é que lhe podia levar. E ele disse-me que uma coisa que o Hill gosta muito é de bolo de chocolate. Então, em vez de comprar um bolo de chocolate, fiz eu, pela primeira vez, uns “muffins” de chocolate. O tipo ficou super agradecido. Era um gajo incrível. E David S. Ware, William Parker.» (Ibid.)

[3] Sobre a atmosfera vibrátil da Trem Azul, um espaço de eleição para a criação e a improvisação, oiça-se o editor em entrevista: «Ele [Gabriel Ferrandini] tinha lá a bateria e era lá que ensaiava. Antes dele tivemos Els Vandeweyer, não sei se te lembras. Era uma vibrafonista que conheci na noite em que ela chegou a Lisboa atrás do namorado. Vinha para passar 15 dias com o namorado, mas este já tinha outra. Conheci-a nessa noite em que ela estava completamente desorientada, não conhecia ninguém em Portugal, não tinha onde ficar e ajudámo-la. Falámos com o pai dela, ele mandou o vibrafone da Bélgica numa caixa feita de madeira por ele e ela ficou a trabalhar lá na sala de ensaios. Foi ela a primeira a aproveitá-la, ensaiando lá todos os dias. E começou a aparecer pessoal para tocar com ela. Na altura lembro-me de Alípio Carvalho Neto… Ela tinha vindo por 15 dias e acabou por ficar seis meses. Depois apareceram o Gabriel e o Pedro Sousa. Muito miúdos, tinham 18 ou 19 anos. Foi giro, ouviam música connosco, traziam pessoal para praticar com eles. Eu estava no escritório e começava a ouvir uma saxofonada. Abria a porta devagarinho e estava o Sousa, o Gabriel e outros músicos a ensaiar. Foi giro, porque apareceu gente de muitas latitudes diferentes. Desde DJ Ride a Sam The Kid, Norberto Lobo, Felipe Felizardo; muita malta que apareceu lá para coisas diferentes. Foi muito boa, essa mistura. Os gajos do jazz propriamente dito é que nunca apareceram. Nós tínhamos lá uma bateria montada, um contrabaixo, um amplificador de contrabaixo e eu estava sempre a dizer ao pessoal para ir lá ensaiar, mas os gajos do jazz nunca iam.» (Falcão, parte 1, 2021) A Trem Azul, inaugurada em 2004, alegrou o espírito criativo nacional e internacional durante dez anos, porém, quando pintaram a Rua de cor de rosa, o azul não aguentou, admite Pedro Costa a Hugo Pinto.

[4] Na segunda parte da entrevista a Gonçalo Falcão, Pedro Costa admite que «embirra» com alguns instrumentos, como a bateria, o piano, a harmónica de Toots Thielemans e o acordeão de Richard Galliano, mas que se rende aos efeitos sonoros do contrabaixo solo, nestes termos: «Se pudesse escolher tocava contrabaixo: adoro! E adoro contrabaixo solo. Adoro os discos de Dave Holland a solo, de Barre Phillips, Mark Dresser, Miroslav Vitouš… o contrabaixo solo sempre me encantou. Normalmente, gosto imenso de instrumentos a solo. Adoro ouvir violoncelo, as suites de violoncelo do Bach… Houve uma altura em que cada disco que encontrava das suites, comprava. Ficava doido com os Caprichos de Paganini. O piano solo de Cecil Taylor.»

[5] Em entrevista a Hugo Pinto, Pedro Costa admite que os primeiros discos de jazz, emprestados pelo seu amigo Gonçalo Canelas, que o fascinaram foram “Rejoicing” de Pat Metheny, com Charlie Haden & Billy Higgins e “Blue” de Terje Rypdal. Porém, o primeiro disco que ouviu de jazz foi “Joe Jackson’s Jumpin’ Jive”, confessando ter gostado dos saxofones, dos trompetes e dos trombones e rematando, de forma comovente, ter estado «a vida inteira à espera de ouvir isto.»

[6] Sobre a viagem a Nova Iorque de “um puto de 30 anos”, e outras alegrias, leia-se ainda a entrevista de Gonçalo Frota, saída a lume no Público a 19 de Agosto de 2021.

[7] O trabalho de divulgação da música e dos músicos, encabeçado por Pedro Costa, tomou diferentes proporções: uma delas, tal como admitido pelo editor na primeira parte da entrevista a Falcão, foi a influência do editor na promoção e divulgação de Portugal, gesto que se traduziu numa procura por casa em Portugal por uma série de músicos internacionais (e.g.: Paal Nilssen‑Love, Julian Argüelles, Andy Sheppard, Peter Evans, Michael Formanek, entre outros) e outros tantos músicos com essa intenção (e.g.: John Hébert, Tim Berne, Tony Malaby, entre outros).

[8] Este primeiro disco de Malaby na Clean Feed foi feito em Nova Iorque, no Living Theatre. Sobre este processo editorial, Pedro Costa afirma que foi «espantoso», pois «parecia que estava na igreja.» (Falcão, parte 1, 2021)

[9] Sobre este último disco do trio para a editora, leia-se o que diz Pedro Costa em entrevista a Rui Miguel Abreu: «(…) é intemporal, maravilhoso, e também pesa eu ter estado envolvido nesse processo com ele, termos feito uma tournée antes do disco, fomos para estúdio, vivi a banda por dentro e a música realmente é maravilhosa. Esse é um disco muito importante.»

[10] Pedro Costa afirma em entrevista a Rui Miguel Abreu que Tim Berne é um dos seus músicos prediletos, desde miúdo, e editar «um disco dele era um sonho e concretizou-se.»

[11] Sobre este disco, esclarece o editor: «É um disco de estúdio, de composição, que acho que é ume exemplo de como é que uma orquestra pode funcionar de uma forma muito diferente, ou seja, o Martin Küchen compõe os temas e grava no saxofone em camadas — ele não escreve música — e grava coisas intricadas, mostra aos filhos, eles ajudam e o gajo leva aquilo para os outros músicos e fazem ensaios de nove horas até toda a gente decorar a música — e não existem partituras. E tu vais ouvir a música, e quando a música é tocada do coração, sem as partituras e sem aquela coisa de estar sempre a olhar para a pauta, eles conhecem a música por dentro, aquilo soa de uma maneira que pode não ser tudo afinadinho, que eu também tenho pouco interesse nisso, mas pela emoção. É uma música altamente emotiva e fantástica a forma como aquela banda de nove músicos toca aquela música. Os discos deles são todos discos que eu adoro mas o “Injuries” é a obra-prima deles.» (Abreu, 2023)

[12] Admirador da pessoa e do artista, veja-se o que diz Pedro Costa sobre Sei Miguel: «É um gajo que não tem compromissos com nada, só lhe interessa a música, não está cá a pensar se aquilo vai vender, se não vai, tem a visão dele muito concreta e não mexe uma palha em relação a isso. Eu admiro-o muito. Os discos do Sei Miguel, de modo geral, para mim, são outros marcos da editora.» (Abreu, 2023)

[13] Mas leia-se: «Tem sido um objetivo nos últimos três anos, mas ainda não aconteceu. […] Ou somos acarinhados por uma autarquia que veja nisto um interesse cultural para o município, ou então é difícil. Tem de ser uma coisa com alma, com bom som e isso não é fácil de conseguir», disse Pedro Costa, lamentando não ter obtido respostas a propostas enviadas às câmaras municipais de Oeiras e de Cascais.