A reputação do judeu como manhoso, ladrão e, principalmente, usurário, é uma reputação lendária que vem já desde os relatos bíblicos. Estas características são, como todas as descrições genéricas de grupos sociais, largamente exageradas, influenciadas por tensões político sociais, mas nunca são inteiramente desprovidas de fundamento histórico factual, mesmo que muito remoto.

Podemos tentar aqui fazer um resumo muito sintético das bases históricas para esta reputação. Em primeiro lugar, o próprio ofício de mercador tem, na tradição cristã, mau nome. Nos textos sagrados, a figura é frequentemente vista como veiculador de falhas morais relacionadas com o dinheiro. A sociedade judaica em específico foi-se desenvolvimento par a par com a complexidade das trocas comerciais de grande escala, devido tanto à sua ética religiosa com forte papel na regulação dos negócios, como também pelo lugar geográfico de grande importância nas rotas económicas do período antigo. Já na idade média europeia, a diáspora semita sofreu a existência de restrições à actividade comercial. Isto empurrou parte dessa população mais financeiramente robusta para a única actividade economicamente viável disponível: emprestar dinheiro.

Todas estas circunstâncias favoreceram a proximidade da cultura e da ética judaicas com a complexidade que exigem sistemas de dependência financeira e económica de grande escala. Por isso frequentemente o judeu é o “burguês” por excelência: ele prospera na grande cidade, nas metrópoles, nos lugares de vanguarda da sociedade civilizada enquanto gestor e intermediário das grandes trocas de recursos e de ideias aí florescentes.

Mas falemos do caso específico do cantor norte-americano Kanye West que, numa das suas fascinantes diatribes, já pouco ou nada inéditas, emitiu qualificativos complexos e por vezes até contraditórios quanto a essa população. Kanye afirma, resumidamente, que foi roubado, censurado e metaforicamente escravizado por judeus. Afirma também, aqui em especulações mais abstractas, que essa elite judaica, traumatizada pelo holocausto, manipula os homens brancos contra os negros e vice-versa, protegendo-se a si mesma.

Estes últimos pontos são mais difíceis de provar. Mas os primeiros são mais rasteáveis. Fundamentalmente, a tese que Kanye West tem adiantado nos últimos dias quanto aos “judeus“ como grupo homogéneo advém da sua experiência no mundo do entretenimento norte-americano, onde, por contingência histórica e por mérito próprio, alguma elite judaica acumulou não só lugares de poder e influência significativos como também aguçou o talento de gestão artística que esse meio, o mais exigente, competitivo e lucrativo do mundo, requer.

O que West está a dizer é que ao longo de sua carreira — que, em grande parte, é equivalente a dizer ao longo da sua vida — as personagens intermediárias de gestão de recursos, habituadas e aliás obrigadas a forçarem um equilíbrio entre liberdade de expressão artística e viabilidade comercial/moral pública foram, em grande parte, judeus. É muito provavelmente isso que ele está a dizer.

Assim, como guardiões da moral pública, não necessariamente através de um cálculo meramente moral por si só mas através da navegação da viabilidade comercial que é, no fundo, um tomar de pulso dessa moral pública, os judeus figuram nessa maneira como os intermediários censórios entre o artista e o público, tanto na experiência de West como na experiência de inúmeros profissionais no mundo do entretenimento norte-americano, de Los Angeles a Nova Iorque.

Mas estas acusações, que destacam apenas o papel censório e não o papel divulgador, são injustas para os judeus, pois os mesmos, noutras e muitas ocasiões, favoreceram o desafio das convenções, a redefinição dos códigos pelos quais os artistas se regiam, com isso ajudando a transformar a moral pública por avenidas inéditas.

Podemos dar aqui alguns exemplos muito breves mas definitivos. O papel que alguns compositores tiveram não só na divulgação da música negra mas também na sua adaptação a formatos palatáveis para o grande público (Leonard Bernstein, na Broadway; os irmãos Chess, nos blues); a comédia observacional aguçada e astuta (Mel Brooks, aliás notável produtor cinematográfico de expressões extra comédia; Jerry Seinfeld; Woody Allen); a divulgação das artes (o patronato monumental de figura de vanguarda feito por Peggy Gughenheim ou Gertrude Stein).

Todas estas pessoas, e muitas outras, eram judeus. Notavelmente muitas foram intermediários — como, de certo modo, todo o artista é também um intermediário, um mercador de influências, etc. — que ajudaram a trazer expressões de vanguarda ao grande público. Trouxeram-nas por vezes truncadas, outras vezes inteiras. Mas trouxeram-nas.

Nos tempos actuais, e, aliás, não por culpa própria nem da classe gestora nem da elite judaica, tempos estes em que a indústria do entretenimento norte-americana tem já uma bagagem monumental de tradição e cultura, o aspecto mediador surgirá, eventualmente, aos olhos do artista mais inocente, como uma incompreensível trama censória de origens dificilmente determináveis, e facilmente atribuível a um poder sinistro. Se os primeiros empresários que trouxeram o blues para o grande público poderiam ser vistos como libertadores, as mesmas figuras hoje que participam no empresariado do mundo do rap e da música popular são vistas como mercadores usurários e censórios: perdeu-se a memória da classe intermediária como poder moderador fundamental, e tende-se a achar que as coisas acontecem sozinhas.

É deste modo que West terá razão, porém, no caso da sua experiência pessoal — no facto de ser objectivamente censurado, controlado e eventualmente traído pelos gestores não só da sua carreira mas do mundo do entretenimento e geral — partindo do princípio que não estará inteiramente a mentir nem inteiramente a ser somente preconceituoso. E esta é uma experiência que pode, em grande medida, corresponder factualmente à contemporaneidade do entretenimento norte-americano, e ser historicamente contigente. Mesmo assim, é importante sublinhar nesse aspecto como os judeus não serão o poder agencial principal dessa censura mas simplesmente — como tantas vezes são — os intermediários de um diálogo, nestes tempos difíceis, entre liberdade expressão artística ou, mais sucintamente, liberdade de expressão por si só, e discurso público.

É um tempo que se manifesta difícil devido a circunstâncias históricas não inteiramente claras e provavelmente não atribuíveis por inteiro nem a nenhuma etnia em específico nem sequer a nenhuma classe profissional em específico, duas categorias que claramente são confundidas, não por culpa própria porque as coisas são mesmo assim, no discurso do West.

Ouvindo-o e lendo-o correctamente — sendo que aliás as suas expressões totalmente desgarradas, sem filtros, que passam pelo fantástico teste da autenticidade pois muitas vezes se contradizem a si mesmas — conseguimos iniciar uma conversa profícua quanto ao assunto “os judeus” e o papel específico que têm na definição da moral pública norte-americana através do seu estatuto meritório absolutamente fundamental no mundo do entretenimento.