O retrato de Ndalu em Bom Dia Camaradas, de Ondjaki

Texto de Joana Palha. Revisão de Sílvia Pereira Diogo. Resumo: O rapazinho Ndalu vive uma série de peripécias no seu dia-a-dia, muito vivas, muito pueris, convive com a família e com quem lhe é próximo. Assim se desenvolve um romance de formação, normalmente designado pelo germanismo Bildungsroman, que tem na vida familiar a principal âncora.

O romance de aprendizagem, mais conhecido por Bildungsroman, na forma, costuma ser, a traços largos, biográfico e o herói que se lhe associa uma personagem muito sensível às experiências que entabula. Normalmente, ao longo da história, o herói ombreia com indivíduos ou experiências que podem actuar como guias e ajudá-lo a acumular perspectivas diversas de transformação. É comum, além disto, que os protagonistas passem por vários momentos de superação adicionais. Estes episódios contribuem de modo geral para o amadurecimento faseado da personagem principal.

Este artigo pretende construir um retrato de Ndalu na obra Bom dia Camaradas em parceria com o conceito de romance de aprendizagem. O protagonista, através do acúmulo das memórias da sua infância, tem uma visão muito própria da realidade vivida em Luanda. Os anos da guerra civil angolana servem de pano de fundo à história e Ndalu não será imune ao conflito. Papéis importantes têm também a família e a escola, uma vez que actuam como catalisadores de amadurecimento no protagonista. Pretende-se, de resto, mostrar como a infância pode ser um período maravilhoso de transformação, não atendendo às condições sociais, e como as crianças, neste caso especifico, Ndalu, têm a sua experiência unida à cultura marcada por vários episódios de crescimento.

O retrato de Ndalu, em Bom Dia Camaradas, de Ondjaki

O ‹‹retrato›› pode ser geralmente definido como a representação de alguém ou de algo sob, embora discutivelmente, várias perspectivas. O ‹‹retrato›› não se circunscreve à descrição de uma obra de arte ou mesmo de um objeto apenas, mas pode assimilar simbolicamente aspetos sociais de um determinado país ou classe social que o acompanhem. O Bildungsroman pode aliar-se ao tema do retrato, relacionando-se com uma vertente descritiva mais social, devido aos princípios de desenvolvimento, crescimento, formação e aprendizagem que lhe são indissociáveis. O protagonista, através desse tipo de representação que vai sendo construída, terá uma melhor perceção da realidade e do caminho que tem a percorrer ao longo do romance.

Ndalu, o protagonista do romance que nos ocupa, apresenta-se como um protótipo da personagem que tipicamente associamos ao romance de aprendizagem, preenchendo quase todos os requisitos para esse modelo. Ele é o elemento-chave da história: é do sexo masculino e é jovem, e apenas pode excluir-se dessa identificação desencaixando-se através da questão da mobilidade e da insatisfação. Com efeito, para surpresa de quem esperaria um herói convencional, Ndalu não parte do lugar onde está, apesar do conflito armado na sua cidade, e não mostra sinais de mal-estar em relação ao ambiente familiar e social que o rodeia. Mesmo não se deslocando, nem partindo à descoberta, Ndalu vive as suas aventuras e as suas experiências. Ao fim e ao cabo, é um pré-adolescente residente em Luanda, num bom núcleo familiar, de classe média, e frequenta a escola, onde tem boas amizades.

O protagonista tem uma curiosidade algo aprimorada para a idade. De carácter prático e despachado, afirma que é “o primeiro a acabar as coisas” (Ondjaki,2002:61). De facto, é um observador nato de tudo o que o rodeia e tem, apesar de o negar, um pouco de carácter revolucionário, mas não se vê de todo dessa maneira. Ainda assim, a certa altura indaga: “espírito revolucionário? Eu nem sequer gostava de acordar cedo” (Ondjaki, 2002:110).

O amadurecimento e o crescimento de Ndalu realizam-se de muitas maneiras. Essa multiplicidade associada à criança faz parte do seu retrato social de transformação, apesar de, como sabemos, o menino permanecer no mesmo espaço, em Luanda. Ndalu passa sem dúvida por algumas transformações e lida com o lado menos bom da realidade. O sofrimento é uma contrapartida. Alguns episódios servem para ajudá-lo a tomar consciência da perda e de situações irreversíveis que a vida e o acto de viver implicam, às quais certamente o menino não fica indiferente nem escapa, nomeadamente: o caso das despedidas dos colegas e dos professores cubanos, onde o protagonista confessa a Romina, a sua colega e amiga mais próxima, “eu não gosto de despedidas” (Ondjaki, 2002:90), e o caso da morte do camarada António, empregado da sua família, em cujo momento Ndalu revela que fez “força para não chorar, fingi que o camarada António estava ali junto ao fogão” (Ondjaki, 2002:134).

O Bildungsroman pode construir um retrato de uma personagem devido à capacidade de apresentar características descritivas simbólicas, tanto ao nível pessoal como ao nível social, do protagonista visado. Neste caso em concreto, Ndalu acolhe, a partir do conceito do romance de formação, uma análise refletiva sobre todo o processo evolutivo a que o crescimento o empenha.

Ndalu e as relações familiares

A família é uma base importante no retrato que o protagonista de Bom Dia Camaradas realiza de si próprio; todas as personagens do seu ambiente familiar estão representadas ao longo do romance e a todas é dado um papel de relevância na vida e no quotidiano do menino. As relações familiares de Ndalu estão repletas de confiança e de afeto, detalhe que pode contribuir para situar a experiência do menino num plano ligeiramente diferente daquele convencionalmente utilizado pelo romance de aprendizagem tradicional. Isto deve-se à apropriação do género, que está adequado à realidade da sociedade angolana da época, pois é costume a personagem principal ser pressionada pela família para seguir um determinado caminho que lhe é imposto. Mas esta situação não sucede a Ndalu: a compreensão mostrada pelos familiares em relação ao facto de o menino estar numa faixa etária próxima da puberdade é notável.

O texto é narrado na primeira pessoa. E a primeira personagem apresentada ao leitor por Ndalu, ao contrário do que se possa supor, não é nem o seu pai, nem a sua mãe, e tão pouco as suas irmãs, mas sim o Camarada António, o empregado da família; está aqui presente desde já a influência que esta figura exerce sobre o protagonista, como se virá a confirmar em diversos episódios do romance. Através da afeição que o Camarada António nutre pelo menino e vice-versa, notamos a ternura que o ambiente familiar incute em Ndalu que não desmerece a atenção mostrada pelos colaboradores da casa. Este aspeto parece contribuir nitidamente para a formação humana e social do protagonista.

Ndalu conta que o pai trabalha no ministério, mas não dá muita importância à figura paterna na história, apesar de lhe ter uma grande afeição e de o considerar uma figura de base na sua ainda breve existência; o mesmo não acontece com a mãe, professora, com quem tem uma relação muito próxima. Esta relação com a figura materna, representativa de estabilidade, em quem Ndalu projecta sinais de amadurecimento, a quem pretende seguir as passadas, é também uma das características mais expressivas das personagens masculinas típicas do Bildungsroman.

Luanda nos anos 60

O protagonista, ao longo do romance, vai fazendo um retrato da sua família, bem como das suas rotinas familiares, dando muita importância a algumas, como é o caso do pequeno-almoço, apresentando esta refeição de um modo repleto de prazer, com a expressão “Matabichar cedo em Luanda, cuia!” (Ondjaki, 2002:21), e menos importância a outras, como acontece com a questão do banho, onde se refere a este ritual como uma “mania, toda hora já banho, banho, acho que não é preciso, se calhar de dois em dois dias, ou coisa assim” (Ondjaki, 2002:61). A rotina familiar é um fator importante para o seu crescimento, pois dá a Ndalu um sentido de organização desde a sua infância, bem como indispensável para o desenvolvimento de certos valores humanos.

Assim já era hora do almoço. As minhas irmãs chegavam da escola, o meu pai também chegava. A casa ficava mais barulhenta, mais o barulho da rádio do camarada António ligado na cozinha, mais a minha irmã caçula que queria contar tudo o que se tinha passado na escola nessa manhã. Ela sabia que tinha que se despachar porque quando fosse uma hora em ponto ia ter que parar o relato para deixar os pais ouvirem as notícias.

Ondjaki, 2002:25-26

O mundo da infância retém imagens muito próprias e frescas, bem como profundas experiências imprimidas de uma paisagem nativa e Ndalu dá bastante conta disso ao leitor, pois descreve muitas vezes o bem-estar ou o mal-estar que a paisagem inspira em si, em vários espaços de Luanda, mas principalmente no jardim da sua casa.

Fiquei na varanda. No jardim havia umas lesmas que deviam ser mais velhas porque sempre acordavam cedo. Eram muitas. Depois do matabicho, ficar assim na varanda com aquele fresquinho, ver as lesmas irem não sei aonde, aquilo dava-me sono outra vez. Adormeci mesmo.

Ondjaki, 2002:22

A imagem da noite é muito curiosa, pois sendo um motivo romântico ganha ainda mais ênfase na descrição feita pelo protagonista. A afirmação de que a “noite tem cheiro, sim” (Ondjaki, 2002:97) é ilustrativa de mais um dos traços que permitem desenhar o seu retrato psicológico, a sua sensibilidade. Esta novidade alia-se também a um dos princípios da imagem do protótipo do Bildungsroman. Outra questão recorrente, a que aliás pudemos fazer leve referência atrás através da figura materna, é a influência das mulheres mais velhas nos protagonistas do romance de aprendizagem. Este motivo é devidamente ilustrado pela figura da tia de Ndalu, Dada, que vive em Portugal e vai passar uns dias a Luanda, na casa do sobrinho, integrado-se durante esse tempo naquele ambiente familiar. O protagonista tem uma afeição especial pela tia. Embora só a venha conhecer pessoalmente pela primeira vez com aquela viagem, o rapaz mantém com a tia uma relação cordata e madura ao nível das conversas, de que as conversas telefónicas são especialmente realçadas. Com efeito, Ndalu chega a referir-se à voz da tia como “doce”. O sexo feminino, representado nas figuras da mãe e da tia Dada, contribui, em grande escala, para muitos aspetos importantes no processo de descoberta e amadurecimento dos protagonistas retratados no género literário que é o Bildungsroman.

Ela foi uma das poucas pessoas mais velhas que eu encontrei que não falou comigo como se eu fosse uma criança pateta, cumprimentou-me com dois beijinhos quando eu até estava habituado a dar um beijinho na cara dos mais velhos, e disse-me só assim: está muito calor, não achas?

Ondjaki, 2002:39

Ndalu clarifica, de uma forma simples, a descrição que enceta sobre a sua família, mostrando de uma forma muito sucinta, mas original e completa, as relações e as rotinas do seu quotidiano familiar. O lar aparece como um lugar onde o protagonista se sente bem e feliz; local onde não tem relutância em referir nenhum aspeto, passando um retrato tranquilo para o leitor.

Ndalu e a escola

O protagonista de Bom dia Camaradas faz também um retrato muito favorável da escola, embora como toda a criança, também saliente os aspetos menos bons; de uma forma geral, é visível que a escola é um lugar onde Ndalu se sente confortável, sendo um menino interessado pela aprendizagem, daí que refira bastante o espaço escolar nas suas memórias como parte da história da sua vida.

Ela começou a ler, eu fui arrumando outras coisas. Era muito giro mexer nesses cadernos do antigamente, uma pessoa encontrava redações engraçadas que fazíamos na segunda e na terceira classe, os desenhos bem malaicos da pré-cabunga, as contas armadas de dividir, tudo coisas que agora pareciam muito antigas.

Ondjaki, 2002:99

As experiências escolares de Ndalu são importantes e pertinentes, pois funcionam não só como uma experiência do protagonista, mas também como uma experiência em grupo. A voz do narrador torna-se assim a voz do grupo. Nesta fase da vida do menino, existem vários protagonistas com voz, a qual, segundo Geta Leseur (1995), deve ser aceite como autêntica. Alguns exemplos são, primeiro, a mobilização de Ndalu e dos colegas para combaterem, por iniciativa própria, o grupo violento denominado de Caixão Vazio. Relembramos, na voz do protagonista: “quando a aula começou, os rapazes estavam todos a pensar no Caixão Vazio. Cada um imaginava já estratégias de fuga” (Ondjaki, 2002:30); o segundo exemplo é o ritual que Ndalu e os amigos levam a cabo todos os anos, no final do ano letivo, descrito no seguinte excerto da obra:

Dali fomos para a parte de trás das salas, ali onde cheirava bué a chichi. Tirámos os cadernos e os livros das mochilas, eu tinha trazido todos os meus cadernos de apontamentos menos o de Língua Portuguesa que tinha lá redações que eu gostava. O Cláudio tirou os livros, o Helder, o Bruno também, pusemos tudo junto e acendemos o fogo.

Ondjaki, 2002:130

Os colegas e os professores cubanos com quem o protagonista mantém uma boa relação de amizade são uma marca indispensável no retrato escolar apresentado por Ndalu, uma vez que são as pessoas com quem ele mais convive, além da sua família; são figuras com quem ele compartilha as experiências mais importantes do seu crescimento: meras brincadeiras, relações mais afetivas ou perceções de uma realidade social obscura.

Eu e a Romina éramos amigos há muito tempo, mas não conversávamos muito, até porque na escola se um rapaz está toda hora a conversar com uma rapariga, assim já vão dizer que ele quer engatar, que tá a dar xaxo, ou então, que é pior, dizem que é um rapaz que só quer andar com meninas.

Ondjaki, 2002:73

O protagonista também faz uma contente rememoração de diversos episódios cuja vertente é mais divertida. Meros acontecimentos revestidos de simplicidade são um exemplo concreto disso: ele chega de carro à escola e diz: “os meus colgas estavam todos a rir porque eu tinha chegado de boleia” (Ondjaki, 2002:16); ou até mesmo a encenação de brincadeiras sem qualquer tipo de maldade com os professores cubanos, devido à questão da língua, desvendadas através da seguinte confissão pueril: “eu e o Bruno também gostávamos de brincar com os professores cubanos, como eles às vezes não percebiam bem o português, nós aproveitávamos para falar rápido e dizíamos disparates” (Ondjaki, 2002:16). Ndalu, ao falar da escola, também alude à memória dos cheiros e da paisagem nativa da sua cidade, Luanda, e chega mesmo a realçar a peculiaridade do odor a catinga, devido ao imenso calor emitido do corpo dos colegas que vêm pelo próprio pé para a escola.

Segundo o menino “estava muito calor. Alguns colegas cheiravam muito a catinga, o que é normal para quem tenha vindo a pé para a escola.”

Ondjaki, 2002:28

A questão da educação é um dos pontos focados no romance de aprendizagem, de que o retrato escolar faz todo o sentido. A este retrato se junta uma vertente social, pois não se deve ignorar que Ndalu recebe dos professores cubanos uma influência marcante. Esta questão é pertinentemente evocada por Rodríguez Fontela, o qual, ao longo dos seus variados estudos, chega até a chamar ao Bildungsroman romance de educação ou romance pedagógico, devido a ser um género literário de formação que modela uma personalidade, através de um agente, o professor.

Considerações Finais

O tema do retrato literário, aqui abordado tendo em conta uma perspetiva social, interliga-se com algumas das principais características do Bildungsroman e tem no dinamismo literário a permuta para uma descrição bem estruturada, dotada de grande simplicidade e suavidade.

Ndalu, com as suas memórias, no romance Bom dia Camaradas, de Ondjaki, traça um retrato, que além de seu, é muito próprio e íntimo de Angola, nomeadamente da cidade de Luanda, espaço central da sua existência que serve como base para a descoberta da sua identidade. É através da interação com o que o rodeia e com a sua própria natureza que Ndalu pode expressivamente procurar dentro de si uma voz exterior.

Referências

Leseur, G. (1995). Ten is the Age of Darkness. The Black Bildungsroman. University of Missouri. Press Columbia and London.

Ondjaki (2002). Bom Dia Camaradas. Editorial Caminho Outras Margens. Lisboa.