
O que acontece após a morte? Qual é o sentido da minha vida se a sua natureza é efémera? Como posso aceitar a finitude da minha existência? Como posso tolerar o sofrimento inerente à vida?
As questões enunciadas foram em muitos casos, o ponto de partida da maioria das grandes religiões na história da Humanidade. Mas nem sempre o mito religioso foi suficiente para atenuar o exaspero existencial levantado pela consciência. As mentes mais céticas, orientadas para o conhecimento factual, tentaram também, através do método dialético/filosófico e da exploração dos imperativos naturais do Homem, clarificar e resolver estes dilemas existenciais.
Neste artigo, vou enunciar as respectivas teorias de quatro grandes filósofos da história ocidental e relacioná-las entre si. A abordagem será iniciada com a teoria de Platão (sucessor de Sócrates), o primeiro grande filósofo do espírito no Ocidente. Vou analisar a relação da sua filosofia com Heraclito (o filósofo do devir), e como ponte para o último filósofo abordado, que será Nietzsche, terei em conta Aristóteles, como o termo médio entre o anterior e o ulterior.
O tema da ética do guerreiro servirá de ponte entre as respectivas temáticas abordadas pelos mestres referidos. Na leitura das suas obras podemos constatar que, de maneira implícita ou explícita, todos abordaram o tema da guerra de uma forma ou outra. Os que elaboraram o tema de uma forma mais aprofundada chegaram a partilhar a noção de que o guerreiro se depara, no seu contexto ético, com a possibilidade da morte prematura e toda a miríade de formas de sofrimento provocadas pelo estado de guerra. Por este motivo, todos partilhavam a ideia de que o valor simbólico e religioso do guerreiro assumia um papel extremamente importante no confronto com os terrores existenciais da vida.
O símbolo do guerreiro pode ser identificado com o arquetípico herói, que facilmente poderá ser visto como o ideal a alcançar pelo guerreiro. A origem deste arquétipo, representante da coragem e vigor, pode ser remontada aos primórdios da civilização bélica. O símbolo adquirido por meio da representação e abstracção do modo de vida heróico foi, como já anteriormente referido, abordado de diversas formas. Nos seus primórdios, através do mito primitivo; posteriormente, por meio do mito religioso, e nas suas mais recentes manifestações discursivas, por via da literatura e da filosofia.
No âmbito deste ensaio, cujo foco é o paradigma da filosofia ocidental, nascida em Atenas, o modelo utilizado para simbolizar o guerreiro será portanto, o exemplar heróico das grandes epopeias e tragédias Helénicas, como o foram Aquiles, Hércules, Perseu, Odisseu, e todos aqueles que pelos seus feitos tenham sido idolatrados como guerreiros temerários e vigorosos.
Platão e Sócrates, os primeiros a abordar o tema da guerra e da política de uma maneira filosófica e de uma maneira sistemática, chegaram à conclusão de que a poesia trágica, ao antropomorfizar a divindade nas suas diversas representações, incorria no erro – em alguns casos acidental, noutros deliberado – de deturpar a sua autoridade moral divina, e, assim, incorrendo fundamentalmente na sua blasfémia. Por conseguinte, neste modelo toda a divindade deveria ser destituída de características humanas e servir de exemplar derradeiro da virtude que representa. Este pressuposto levou Platão a dissecar a ética do guerreiro, e tentar purificá-la de todas as características típicas do Deus humanizado. Pela mesma razão, foram os heróis descartados como exemplares na educação do guerreiro, isto porque em muitas das tragédias estes eram descritos a praticar impiedades incompreensíveis para qualquer ser possuidor de um título divino:
«- Logo, tudo o que é relativo a divindades e deuses é totalmente alheio à mentira.
–Totalmente, sim
–Por conseguinte, Deus é absolutamente simples e verdadeiro em palavras e actos …Quando alguém disser tais coisas dos deuses, levá-lo-emos a mal e não lhe daremos um coro, e não consentiremos que os mestres as usem na educação dos jovens, se queremos que os nossos guardiões sejam tementes aos deuses e semelhantes a eles, na máxima medida em que isso for possível ao ser humano.(383a/b/c)» [i]
Por esta razão, ao ideal ético do guardião foi subtraído o arquétipo do guerreiro, restando assim a mera virtude na sua forma intuitiva pura com pretensões de universalidade. Por conseguinte, a virtude mais gritante do guerreiro, a coragem, deixaria de lhe ser atribuída como um pressuposto categórico, para se tornar o seu ideal de vida. Por estas razões, Platão definiu o guerreiro ideal como aquele que age, acima de tudo, conforme a preservar a virtude da coragem no seu carácter e vê-la como o elemento essencial para alcançar a perícia bélica.
No sistema de Platão, o guerreiro é correspondido por analogia à parte intermédia na tripartição da alma, a parte irascível. Ao mesmo tempo, é-lhe atribuída a função de Guardião da cidade-estado; nesta correspondência dupla é encontrada uma semelhança análoga no que concerne à ordenação e à dinâmica dos processos que se dão tanto no âmago da alma como na ordenação do modelo estatal.
Como já referido, neste sistema, a alma está dividida em três partes. A primeira, a parte apetitiva, é a mais próxima da matéria e da sua essência fundamentalmente mutável, e desta maneira mais afastada das formas divinas e imutáveis (e imateriais). A esta secção é encarregue o dever de garantir a manutenção do corpo através da alimentação e a sua respectiva reprodução através da apetição carnal (eros). Tendo em conta que esta natureza apetitiva e cumulativa é dada ao excesso, quando não regulada por uma entidade mais sofisticada, foi-lhe atribuída a temperança como virtude fundamental e reguladora. A definição mais clara de temperança é: uma tendência natural para obediência às ordens e às regras estabelecidas pelas partes superiores da alma.
À secção apetitiva é também feita uma correspondência, por analogia, a todos aqueles que se ocupam da providência de recursos naturais e humanos dentro da cidade, isto é, os elementos do povo, que, à semelhança da apetição no corpo, se asseguram da alimentação e da reprodução, a fim de continuar a existência da cidade. Quando esta secção se deixa corromper pela sua natureza excessiva e cessa a obediência às restrições que lhe foram impostas, ocorre um número diverso de consequências expectáveis. No caso do indivíduo (ou particular), dá-se uma degeneração do corpo e da psique. Quando neste o excesso procede da alimentação, ou seja, de uma gula descontrolada, as doenças resultantes, como obesidade ou inflamações intestinais – que já os gregos identificavam parcialmente na sua medicina – tendem a se instaurar, e na última das consequências – ou seja, caso este não se modere – levam o indivíduo à morte. Quando se trata de uma líbido excessiva, há uma tendência para comportamentos promíscuos e para a consequente contracção de doenças venéreas. Por outro lado, com o adultério, também uma consequência de uma líbido descontrolada, tende a ocorrer uma destruição da harmonia familiar, resultando na dissolução de relações entre pais e filhos. A degeneração psicológica e ética resultante leva o indivíduo a agir de forma violenta sempre que alguém interfira com os seus desejos, o que, independentemente da magnitude do seu poder, o acaba por caracterizar como um tirano.
No estágio tirânico, todo o decurso da acção tende para a ruína própria e de terceiros. Pelas mesmas razões, a cidade, quando consumida pelo apetite, torna-se excessivamente numerosa, economicamente desigual, caótica, e violenta, até que, por fim, acaba por se degenerar numa tirania, que à semelhança do indivíduo devasso consome todos os recursos sem mão nem medida e destrói tudo o que se meter no caminho dos seus vícios. Para evitar que tal se dê, como já anteriormente referi, é necessário que, de acordo com a métrica harmoniosa, a comunidade seja, na sua unidade, tão temperada quanto o particular o deve ser. Desta maneira, ambos se deverão seguir, respectivamente, pelas leis estabelecidas pelas entidades hierarquicamente superiores.
A entidade suprema da alma corresponde à secção encarregue da razão, a qual, por via do seu princípio racional organizador e distribuidor, tanto é capaz de ordenar harmoniosamente recursos e funções essenciais com a estabilidade em vista, como, por outro lado, de definir os valores que orientarão a hierarquia do colectivo no sentido da harmonia e estabilidade social duradoura. A este princípio corresponde o conceito de Justiça. Esta virtude fundamental da secção racional, como todas as outras, manifesta-se de forma semelhante tanto no indivíduo como na comunidade. Quando nos referimos à alma particular, a sua função é desempenhada pela reflexão. Na pólis, no entanto, é desempenhada pela dialética filosófica que, na determinação dos valores e do melhor modo de os tornar reguladores do comportamento de massas, estabelece a legislação em vigor tanto para casos universais como para instâncias particulares. Sendo assim, a função do legislador é preservar os princípios morais e garantir que as instâncias particulares se assemelhem a estes dentro do possível.
No entanto, o governante, à semelhança daquilo que representa, ou seja, a secção racional da alma, tem uma função meramente legislativa e planeadora: aquilo que o governante dita não está carregado do ímpeto que acompanha as secções carnais da alma; da mesma maneira que não se espera que a mera palavra do legislador seja suficiente para ordenar a plebe, não é esperado que os apetites dos subordinados vão obedecer directamente à tábua de valores harmoniosamente esculpida pelo legislador. Mesmo que se pressuponha que esta foi desenhada de acordo com o modelo divino de uma verdade absoluta e alcançada por via de uma complexa dialética (desempenhada pelos homens mais excelentes da cidade), não é garantido que todos vão confiar na sua autoridade, especialmente aqueles que são naturalmente intemperados.
Como já anteriormente referido, a temperança manifesta-se tanto naquilo que é geral como naquilo que é particular O mesmo dar-se-á com o seu oposto (a devassidão). Por esta razão, é necessário que haja em ambos os paradigmas uma parte intermédia e interlocutora dos dois extremos. Na República, esta parte é semelhante ao guardião da cidade que, possuído pelo ímpeto carnal da vontade, é capaz de agir sobre a matéria, com o intuito de a moldar ao seu projecto. Essa vontade, no entanto, não se trata de uma vontade apetitiva e aquisitiva, correlata da mera sobrevivência em mente, mas sim algo que a supera, algo que, ao contrário dos apetites, que visam adquirir algo que não seja ainda possuído, procure dar algo ao mundo. Ou seja, esculpir o material de acordo com uma vontade, sem que deste mesmo se espere algo em troca que não o produto final da acção; por isso, teremos que visualizar esta secção como capaz de efectuar um movimento de dentro para fora, com a finalidade de satisfazer aquilo que foi deliberado, uma secção transformadora ao invés de aquisitiva.
Estou-me a referir, portanto, àquilo que os Gregos designavam por “thymos”, um conceito que corresponde aproximadamente à noção de emoção competitiva e irascível, algo cuja finalidade seria subjugar outro à sua vontade própria. É, portanto, fundamental que a emoção seja, como forma de sentimento, distinta dos sentimentos apetitivos, bem como das sensações físicas. O próprio termo do qual a palavra “emoção” deriva, utilizado pelos escolásticos na tradução latina,“emovere”, sinaliza um movimento do interior para o exterior.
É importante salientar que, no mito grego, e como é por norma aceite por Platão, a emoção é despoletada por meio de uma entidade divina. Refiro-me ao “daemon”, que na mitologia helénica representa um mediador entre o Divino e a Humanidade. Assim, a cada “daemon” corresponde o dever de incitar o sentimento que representa, como acontece no caso de Eros com o desejo carnal – ou o desejo da beleza material ou imaterial. A ideia de “daemon” é, em muitos casos, análoga à ideia de emoção e todo o espectro dos sentimentos (como o próprio apetite). No entanto, à semelhança do herói, que é descartado como representação antropomorfizada da divindade, também neste modelo é descartada a representação imagética, sendo no seu lugar colocada uma noção discursiva que, neste contexto, seria portanto o conceito de irascibilidade.
Assim, de acordo com o comando da parte divina da alma (razão ou “logos”), a parte emotiva, à semelhança do guerreiro, executará as ordens legisladas pela razão. No entanto, devido à natureza dual da parte intermédia – que está em contacto com a parte carnal e a parte divina –, a secção emotiva pode ser corrompida e suplantada pela vontade do apetite. Tal leva inevitavelmente àquilo que anteriormente descrevi como a gradual transformação do indivíduo num tirano; pelos mesmos motivos se dá a degeneração de uma cidade-estado aristocrática numa tirania. Neste ponto, as eventuais consequências são diversas. Tanto poderá dar-se a autodestruição da cidade como, quando deixada entregue ao seu próprio destino, ser conquistada ou destruída por um inimigo que se aproveite da corrupção dos governantes e guardiões. Assim a virtude fundamental do guerreiro, como já elucidei anteriormente, a coragem, tem de ser vista com olhos diferentes daquilo que seria a coragem temerária e desinteressadamente destemida do herói clássico. Para tal, o guerreiro foi definido no que concerne à natureza intermédia da alma tripartida e à sua correspondente virtude como moderadora do conflito entre os dois extremos:
«[C]ontudo, é sem dúvida necessário que eles sejam brandos para os compatriotas, embora acerbos para os inimigos; caso contrário, não terão de esperar que outros os destruam, mas eles mesmos se anteciparão a fazê-lo […]
– Então que havemos de fazer? Onde acharemos um feitio doce e impetuoso ao mesmo tempo? É que um temperamento brando é o contrário do arrebatado […] afinal há temperamentos que não imaginámos dotados destas qualidades opostas […] poderá ver-se em outros animais, mas não menos (375c) naquele que nós comparámos com o guardião, sabes certamente que nos cães de boa raça, é seu feitio natural serem o mais mansos que é possível para com as pessoas da casa e conhecidas, mas o inverso para com os desconhecidos (375e) […]
– Mas sem dúvida que demonstra a engenhosa conformação da sua natureza, que é verdadeiramente amiga do (376a) saber.
– Em quê?
– No facto de não distinguir uma visão amiga e inimiga, senão pela circunstância de a conhecer ou não. E como não terá alguém desejo de aprender, quando é pelo conhecimento e pela ignorância que se distinguem os familiares dos estranhos? […]
– Por conseguinte, será por natureza filósofo, fogoso, rápido e forte quem quiser ser um perfeito guardião da nossa cidade.(376b)[…]
Supõem, portanto que também nós realizámos uma coisa parecida, na medida das nossas forças, quando seleccionámos os guerreiros e os educámos pela música e pela ginástica. Não julgues que planeámos outra coisa que não fosse embuí-los das leis o melhor possível, a fim de que as recebessem como um tinto, para que a sua opinião se tornasse indelével, quer sobre as coisas a temer, quer sobre as restantes, devido a terem uma natureza e uma educação adequadas. E também para que o seu tinto não desbote com aqueles detergentes que são terríveis para tirar a cor – o prazer, de efeito mais temível do que qualquer soda ou barrela, o desgosto, o temor e o desejo, que o são mais do que outro detergente. É, pois, a uma força desta ordem, salvação em todas as circunstâncias de opinião recta e legítima, relativamente às coisas temíveis e às que não o são, que eu chamo coragem e tenho nessa conta, se não tens nada a opor. (429e; 430a/b)» [ii]
Nos parágrafos anteriores, verifica-se que, no ideal platónico, o guerreiro, cuja função é defender a cidade, corresponde à função da emoção que, carregada de ira, exerce a defesa do próprio, tanto face a ameaças externas (inimigos), como internas (cedência aos apetites). Um bom exemplo dos dois casos seria aquilo que acontece ao indivíduo que perde o controlo dos seus apetites, e que por isso se coloca desnecessariamente em perigo.
Assim, a emoção seria aquilo que, à semelhança do guardião, se assegura da manutenção da paz, este último ordenando os cidadãos de acordo com o comando do governo. É pelo mesmo motivo que a emoção consegue controlar a orientação do sentido do seu ímpeto e, com isso, ser capaz de reprimir tanto ameaças exteriores quanto ameaças interiores, o que neste caso consistiria na repressão da vontade apetitiva. Ou seja, por acção da natureza irascível da parte intermédia da alma, o indivíduo pode suprimir a força do ímpeto apetitivo, do mesmo modo que o guardião suprime insurgências na cidade.
Assim, resta-nos analisar em que sentido a coragem permite que a emoção se submeta ao comando da razão e, conforme foi dito no excerto, a educação do guerreiro e a imutabilidade do seu carácter face a todo o ímpeto que não aquele que lhe é permitido pelo superior consiste, fundamentalmente (na perspectiva platónica), naquilo a que nos referimos quando falamos de coragem. Assim, no guerreiro ideal, a coragem deve-se manifestar em toda a sua plenitude, de forma que, para tal, é necessário que a integridade na coragem seja absolutamente inabalável pela força do desejo.
É neste ponto que entramos em contacto com a controversa ética do guerreiro em Platão. Para que se consiga alcançar um carácter inabalável face ao apetite, é necessário inebriá-lo com uma mentira útil. Apesar de o deixar nas entrelinhas, Platão entende que é impossível erradicar o desejo e que, no fundo, o que está a fazer com a sua mentira útil é direcioná-lo num sentido inexistente, um sentido que existe para mera satisfação da razão, ou correspondentemente, da vontade dos governantes. A mentira útil focar-se-ia portanto, nos dois pontos fundamentais do sentido temporal do homem, a sua origem, e o seu destino.
Quanto à mentira acerca da origem, Platão é claro o suficiente na dissimulação, de tal maneira que seria, a seu ver, a única forma de suplantar a vontade dos governadores na volição dos guardiões. Esta mentira acerca da origem consistiria na ideia de que há três tipos de homem, homens de bronze e ferro, homens de prata, e homens de ouro. Todos estes teriam nascido do centro da terra. Os três tipos de homem correspondem igualmente à tripartição da alma, de tal forma que o bronze corresponde àqueles que cobiçam o ouro e a prata no seu sentido literal, isto é, o povo (ou a burguesia). Os homens de prata são os guardiões, e os homens de ouro são os governantes. Assim, os homens de prata e ouro não deverão perseguir valores exteriores, porque já os possuem figurativamente no seu âmago. O seu papel será então, viver de acordo com valor inato que lhes foi pressuposto, ou seja, o que figurativamente significa viver de acordo com o ideal timótico (ideal de honra), que lhes foi implantado por via da educação.
Na teoria ética platónica, a honra está directamente relacionada com a emoção e isso está em concordância com o mito da origem: se o valor máximo para o guardião deverá ser procurado em si mesmo, a extração do valor deverá corresponder àquilo que se manifesta na conduta do próprio. Assim, o mito da origem orienta a parte apetitiva da alma no sentido de almejar tudo o que encaminhar o guerreiro na correspondência à expectativa que lhe é imposta. Desta maneira, a manutenção de um carácter inabalável será para o guerreiro o maior dos bens.
Esclarecida a necessidade da mentira útil no modelo da República – cujo objectivo é, fundamentalmente, modular os valores da emoção guerreira de acordo com a vontade racional –, resta-nos falar do destino definido para os guerreiros. É nestes que a crença se deve manifestar mais forte. Apesar de ser necessário que os governadores acreditem nas intuições das formas puras (de beleza, bem e verdade), não é por via do mesmo método que se instala esta crença nas duas classes inferiores. Enquanto o governante deverá chegar à intuição do belo e do bem por via da iluminação da verdade, que se dá na dialética, o guerreiro, com a sua natureza menos racional, deverá adquirir a crença por via do dogma instalado pelos governantes. Para que tal aconteça, é necessário que o guerreiro adira ao ideal de coragem estabelecido e à correspondente narrativa mítica.
Como já anteriormente expliquei, a noção de coragem em Platão corresponde a um carácter sólido. No entanto, para garantir que o guerreiro (guardião) se mantenha honrado, não basta a educação do corpo para o vigor físico e artes bélicas ou a educação das emoções por via da harmonia musical. É também necessário que, à semelhança daquilo que acontece na modelação da hierarquia de valores da sua secção apetitiva da alma (dando prioridade à honra), seja realizada uma modelação com a finalidade de assegurar a coragem e, assim, garantir o valor da honra. Isto porque, devido à natureza forte do desejo, quando se trata de amor e amizade, mesmo que o resto dos desejos (os apetites) tenham sido apaziguados pela educação estrita, é possível que o apego ao amor e à amizade levem o guerreiro a fraquejar e a ser avassalado pelo medo da morte. Medo este que pode levar até o mais honrado dos homens a ceder face o temor de ser separado daqueles que ama. Assim, é absolutamente necessário que o guerreiro acredite na imortalidade da alma e que lhe seja garantido que se reencontrará com os seus amados, numa promessa de companhia eterna.
A teoria da imortalidade da alma, que foi proposta no diálogo Fédon, está intimamente relacionada com a teoria platónica das formas. No sistema platónico, como já anteriormente expliquei, é feita uma divisão entre alma e corpo; esta divisão, no entanto, não é meramente aplicada ao corpo mas também os objectos materiais e os conceitos contemplados pelo homem possuem essa dualidade, de maneira que, nesta perspectiva metafísica, tudo o que seja material consiste meramente numa instância particular de uma essência universal, ou seja, todas as formas que se manifestem no mundo são meras réplicas imperfeitas de essências imateriais. Estas réplicas estão sujeitas à mutabilidade e decadência, de maneira que tudo o que seja material é também imperfeito na sua essência. Daqui podemos concluir que a essência do mundo material é fundamentalmente a mudança e que nesta está implícita a decadência do perfeito.
Deste modo, Platão pretende contornar a teoria heraclitiana do devir. Heraclito atribui a causa da mudança e das consequentes decadência e criação à transição entre opostos do ser, que se encontram numa infindável guerra pela supremacia (ex. dia/noite; vida/morte, etc.). Portanto, seria da guerra entre os extremos que todo o ser propriamente dito emanaria (inclusive os extremos em si): «49- Descemos e não descemos ao mesmo rio, somos e não somos.»; «8- A discórdia é útil, e da guerra nasce a mais bela das concórdias, uma vez que tudo devém da discórdia.»; «80-A guerra é comum, a justiça é discórdia, tudo se cria e se destrói pela discórdia»[iii]
Para Platão, a discórdia de Heraclito estaria em direta oposição à perfeição e, assim, em direta oposição ao ser, de maneira que o mundo material seria uma constante criação e decadência das formas. Deste modo, é rejeitada a ideia de que o ser nasce do não-ser (e vice-versa), daí o motivo para a postulação de um mundo supra-sensível no qual a essência, ou o ser verdadeiro dos entes, reside na sua forma estática e imutável. Assim, a alma, que seria a essência do homem, não poderia existir somente no mundo da extinção/criação.
Desta ideia é derivada a teoria de que a vida terrestre consiste no encapsulamento da alma num corpo e, através deste, na sujeição à constante mudança do mundo. Ou seja, a alma, como imortal instância particular da perfeição divina, estaria a ser submetida a um teste de pureza – muito à semelhança dos rituais tribais de passagem da idade jovem para a idade adulta. Ou seja, a alma que por via da dialética e da maiêutica – processo dialético de clarificação semântica, no qual, por via de exclusão de partes, são extraídas as essências nos diversos particulares, até sobrar a sua forma universal – adquirisse a intuição das virtudes na sua forma perfeita e que com este conhecimento as tentasse replicar no mundo material, estaria a agir de acordo com o ideal divino. Assim, através da acção virtuosa, seria liberta do seu tormento carnal e unificada com a essência das essências, o Bem (essência de toda a perfeição divina).
Portanto, aquilo que Heraclito teria presumido como a origem a de toda a imanência do saber foi por Sócrates reformulado como o caminho transcendente para a felicidade, feito através do reconhecimento e prática da virtude: «O caminho humano não possui sabedoria que não seja a do espírito Divino» [iv]
Aristóteles, o grande opositor contemporâneo da tradição de Sócrates e Platão, tinha outra perspectiva acerca da origem e função da virtude. Este, mais à maneira de Heraclito, via o mundo como uma complementaridade de opostos, de maneira que a sua teoria acerca da divisão entre forma e matéria acabava por se explicar a si mesma. Nesta, a matéria é o substrato onde as diferentes formas se manifestam. Assim a matéria seria imutável pois esta, em si, seria aquilo no qual se dá a mudança, e as diferentes formas manifestar-se-iam em diversas ocasiões. Ou seja, a matéria não seria a causa da mudança, mas sim o substrato no qual esta se dá.
Por este motivo, também as suas visões teleológicas diferiam: na perspectiva aristotélica, não seria necessário complementar todos os paradigmas do conhecimento com uma finalidade única. Apesar de todos participarem do logosuniversal, cada um teria a sua finalidade específica; assim, era admitida alguma ignorância acerca das matérias divinas, visto que estas não seriam acessíveis aos sentidos humanos – pelo menos em consonância com a perspectiva de uma divindade, o que estaria de acordo com a cosmologia das epopeias, na qual os homens se tratavam de peões para o entretenimento dos deuses.
Tendo isto em conta, podemos entender em que sentido se afasta do seu mestre nas obras de ética, política, epistemologia, metafísica, e psicologia. Enquanto, para Platão, todos estes temas estariam ligados numa teia com uma finalidade específica, para Aristóteles (como anteriormente referi) todos eles consistiriam em paradigmas diferentes com diferentes finalidades,e tal forma que as refutações a Platão se podem encontrar fragmentadas nas diferentes obras do corpusaristotélico, correspondentes às diferentes dimensões do conhecimento.
O tema específico deste artigo, apesar de também ele abordar diversos tópicos numa teia paradigmática, permanece fundamentalmente o da ética, ou seja, o sentido pessoal do indivíduo, tanto no plano psicológico como no plano filosófico. Por isso vou salientar, na perspectiva ética aristotélica, os temas da virtude e coragem quanto aos haveres do guerreiro no seu âmbito, e a relação destes com a educação das emoções.
É também importante salientar a distinção entre ética e política, visto que se no sistema de Platão estas chegam a ser uma e a mesma coisa, já no sistema de Aristóteles são dois temas, que sendo complementares, têm por fim duas hierarquias de valores distintas.
A ética, derivada do grego Ethos que significa lar, explora a dimensão do hábito humano nos seus comportamentos particulares, enquanto a política consiste nos comportamentos na Pólis, ou seja, a manifestação política do indivíduo enquanto membro de uma comunidade: a sua vida pública. Assim, sem mais explicações vou começar por citar a definição Aristotélica de coragem, e de seguida, relacioná-la com aquilo que foi dito acerca do guerreiro, e do ideal que orienta a sua conduta:
«O corajoso é imperturbável enquanto Humano. Terá medo também das situações terríveis, mas terá medo como se deve ter medo e oferecerá resistência de acordo com o sentido orientador em vista do que é nobre, porque é este o fim da excelência… É o corajoso quem suporta o medo, sentindo-o nas situações em que o deve sentir, em vista a um fim correcto – ao modo como deve quando deve. Apenas o corajoso, portanto, pode sentir-se confiante… quem tem excesso de confiança é audaz em situações terríveis. O audaz pode no entanto, ser também um impostor e fazer alarde da coragem [que não tem]. Este finge comportar-se em face de situações terríveis tal como o corajoso de facto se comporta. Só que aquele faz teatro nas situações em que não é capaz de se comportar corajosamente. É por isso que a maior parte destes tipos são cobardes disfarçados de audazes. Nestes casos os audazes não conseguem suportar as coisas terríveis. Quem tem medo em excesso, é assim, cobarde. De facto tem medo a respeito do que não se deve ter medo… (1115b10) Quem é deste género tem também falta de confiança… O cobarde está, com efeito desesperado com medo de tudo; “Finalmente, os audazes são precipitados. Pois, quando estão em situações de perigo querem afastar-se delas; os corajosos contudo, são rápidos e eficazes na acção, mas primeiro aguardam o decorrer dos acontecimentos serenamente. (1116a1) A coragem é uma disposição intermédia a respeito das situações que convidam ao excesso de confiança, e as que levam a sentir um medo tremendo, tal como vimos. (1116ª10)»[v]
Comparando a definição de coragem de Platão à definição aristótélica concluímos que diferem num ponto fundamental, apesar de serem bastante semelhantes na noção da integridade de carácter.. Segundo Platão, a honra e a nobreza de carácter não são fins por si mesmos, mas sim um meio para alcançar um ideal de beleza e justiça, o que por si, implica a crença numa vida após a morte, deste modo almejando que o guerreiro se disponha a morrer por algo que supera a sua compreensão (a justiça, a beleza, e a verdade). Já em Aristóteles, a coragem e todas as têm como finalidade a excelência e a plenitude em vida.De maneira que a um homem corajoso e honrado, não será necessário idealizar uma vida após a morte, para ser pleno na decisão. Basta que a decisão de enfrentar a morte vá de acordo com a vontade própria, derivada da sabedoria ética, que lhe foi transmitida através da educação das emoções, e a prática de bons hábitos.
Por esta razão, na ética aristotélica a excelência de carácter orienta o Homem para uma vida feliz ,ou plena em tudo o que é conforme à excelência dos haveres do homem enquanto Homem. Se esta excelência encaminha o Homem no sentido da morte, ele agirá de acordo com a sua felicidade, aqui entendida como plenitude.
No que concerne à educação do carácter, também as duas teorias diferem. Na perspectiva platónica, o Homem é um ser de ideais claros e a partir destes que, de acordo com a necessidade, orienta a sua conduta. Para além disto, a todo o comportamento estaria associada, a escolha de algo concreto. Aristóteles por outro lado, crê que aquilo que orienta a conduta se distingue das crenças factuais acerca da realidade: a crença ética não se manifesta cognitivamente, mas sim através de emoções e desejos regulados pelo sentido orientador da acção, ou sabedoria prática). esta perspectiva p, a emoção não deverá ser meramente habituada da maneira correcta, será também necessário que seja convencida pela razão. Para Platão isto não é necessário, porque o sentido orientador é intuído por via das crenças éticas, inscritas nos bons hábitos. Ou seja, estas não se tratam de crenças necessariamente racionais, e articuladas de um modo discursivo. Desta forma, é rejeitada a dialética filosófica como estritamente necessária à educação ética.
Conforme se disse já, Platão rejeita a educação através de poesia trágica e épica, por julgar que estas, ao caracterizarem deuses e heróis com defeitos humanos, proporcionam uma representação corrupta da essência perfeita da Divindade. Assim no seu modelo da República, seria apenas admitida a fábula (uma representação simples dos deuses), como ferramenta de educação mimética (através da mimese, ou imitação).
Aristóteles, por outro lado,, crê que representar seres superiores em dimensões da acção humana poderá servir de exemplo na educação das crianças e cidadãos. Leia-se na Poética:
«…imitar é natural nos homens desde a infância, e nisto diferem dos outros animais, pois o homem é o que tem mais capacidade de imitar e é pela imitação que adquire os seus primeiros conhecimentos (1448b) …A tragédia é a imitação de uma acção elevada e completa, dotada de extensão, numa linguagem embelezada por formas diferentes em cada uma das suas partes, que serve da acção e não da narração e que, por meio da compaixão e do temor, provoca a purificação de tais paixões (1449b) …Diferem é pelo facto de um relatar o que aconteceu e o outro o que poderia acontecer. Portanto, a poesia é mais filosófica e tem um carácter mais elevado do que a história. É que a poesia expressa o universal, a História o particular.»[vi]
Assim a poesia, através do exemplo a ser glorificado e imitado, proporciona ao homem a possibilidade de adquirir sabedoria prática, acerca da conduta excelente a ter numa situação trágica(?), e ao mesmo tempo realizar a catarse das emoções negativas da sua vida particular, isto feito através da compaixão para com os homens superiores, em situações aterradoras.
Ironicamente, o autor primeiro da teorização da virtude como algo entre dois extremos opostos, parece encontrar-se como uma ponte no abismo entre os dois extremos que de forma curiosa se tocam, entre Platão e Nietzsche.
Julgo que a melhor forma de introduzir Nietzsche seja relendo Aristóteles. Talvez o espírito trágico heleno, ainda latente em Aristóteles – e decadente em Platão – seja aquilo que partilham: «A verdade acerca do sério é esta: age em prol dos que ama e da sua pátria, e se tiver de ser, morrerá por eles. (…) Mais vale um só feito glorioso e magnífico do que muitos sucessos mas medíocres. É isto o que acontece aos que morrem por outros. Escolhem para si próprios uma glória magnífica. (1169ª1)» [vii]
O espírito trágico-heróico helénico, aludido na citação de Aristóteles, foi amplamente apropriado pela filosofia de Nietzsche. Apesar da sua concordância em diversos aspectos, Nietzsche discorda da tese Aristotélica da natureza trágica, quanto à resignação passiva que a catarse das emoções implica: «o símbolo sexual era, para os gregos, o símbolo venerável em si, o autêntico sentido profundo dentro de toda a religiosidade antiga. Cada pormenor no ato da geração, da gravidez, do nascimento, suscitava os mais elevados e festivos sentimentos. Na doutrina dos mistérios, a dor é sacralizada: as “dores da parturiente” santificam a dor em geral – todo o devir e crescer, tudo o que garante o futuro tem por condição a dor… Para que exista o prazer de criar, para que se afirme eternamente a vontade de viver, deve também existir a “dor da parturiente” (4. O Que Devo Aos Antigos)»;
«A psicologia do orgiástico enquanto sentimento transbordante de vida e de força, em cujo seio a dor age como estimulante, deu-me a chave para o conceito trágico, que foi mal-entendido tanto por Aristóteles como, em particular, pelos nossos pessimistas. A tragédia está tão longe de se tornar algo a favor do pessimismo dos helenos, no sentido de Schopenhauer que deve antes figurar como a sua recusa, a instância oposta. O dizer sim à própria vida mesmo nos seus mais estranhos e mais duros problemas; A vontade de viver, que se alegra com o sacrifício dos seus tipos mais elevados à própria inesgotabilidade – eis o que eu chamo Dionisíaco, eis o que adivinhei como a ponte para a psicologia do poeta trágico. Não para se livrar do terror e da compaixão, não para se purificar de uma emoção perigosa mediante a sua descarga veemente (assim o entendera Aristóteles, mas para, além do terror e da paixão, ser ele mesmo o eterno prazer do devir – prazer que encerra em si também a alegria do aniquilamento… (4. O Que Devo Aos Antigos)» [viii]
Nas citações anteriores é recusado o pessimismo de Aristóteles, de forma bastante explícita, acerca da natureza trágica: a tolerância do sofrimento implica que lhe seja dado um sentido por via da compaixão, e da sua inserção numa narrativa com uma coesão causal compreensível. Esta narrativa tem por finalidade a atribuição de um sentido ao sofrimento, e assim, a expurga do vazio que há numa dor sem sentido. Ao contrário, Nietzsche vê o espírito trágico, não como uma resignação fatalista, mas como o reconhecimento do sentido que reside no âmago do sofrimento. O sofrimento não é mera condição necessária a algo que o supera em magnitude. Se o sofrimento trágico é, em si, o valor daquilo que o sucede, ou como refere ainda o filósofo prussiano: «O meu conceito de liberdade – O Valor de uma coisa não reside no que com ela se alcança, mas no que por ela se paga – no que nos custa».
É também na primeira citação que encontramos a hostilidade de Nietzsche para com a filosofia platónica: a necessidade de um ideal num “além-mundo”, a incapacidade de tolerar o sofrimento derivado de uma inaptidão reprodutiva, e, por consequência, a glorificação e propagação de um ideal que é fundamentalmente hostil à vida na terra, e, por conseguinte, à vida em si.
Nas seguintes citações, do Banquete de Platão, podemos identificar aquilo a que Nietzsche se refere:
«Achas que Alceste teria morrido em vez de Admeto, Aquiles por Pátrocolo, ou que o vosso Codro teria enfrentado a morte para conservar a realeza dos seus descendentes, se não tivessem como certa uma memória imortal do seu acto? aquele que precisamente guardamos? Muito longe disso, e julgo que todos universalmente, e, quanto melhores são, agem segundo a imagem dessa virtude imortal e dessa fama gloriosa; estão enamorados da imortalidade. Assim os que são fecundos no seu corpo voltam-se de preferência para as mulheres e conhecem essa forma do amor; julgam ao gerar filhos que adquirem imortalidade, memória e felicidade para o futuro. Outros são fecundos espiritualmente: há-os até que transportam mais frutos nas almas do que nos corpos. (VIII; 7.)» […]
«o mesmo aconteceu em toda a parte e com toda a espécie de heróis, entre os gregos e os bárbaros, porque realizaram as mais diversas façanhas, mas gerando sempre a virtude. Muitos templos foram consagrados a esses filhos, e nenhum aos filhos dos homens. (VIII;8.)» […]
«chegando ao termo da busca do amor, esse contemplará de súbito uma beleza originalmente maravilhosa…existe em si mesma e por si mesma, na unidade eterna da sua ideia, e qualquer outra beleza no universo participa do seu ser, mas de tal maneira que escapa absolutamente à condição do devir e da destruição que se impõe ao resto do mundo, e não sofre com isso a mínima consequência (VIII; 9.)» […]
E por fim a questão à qual Nietzsche responde com toda a clareza:
«Achas que é mesquinha a vida do homem que faz incidir o olhar sobre o objecto de além, usando o meio necessário e coexistente com ele? …E aquele que concebe e alimenta a verdadeira virtude, não lhe cabe ser amado pelos Deuses e, entre todos os homens tornar-se imortal? (VIII; 9.)»[ix]
Observe-se a resposta
Por conseguinte, dirijo-me aos que crêem no além. Foram o sofrimento e a impotência que criaram todos os além-mundos. Isso e aquele breve delírio de felicidade que é experimentado por quem mais sofre. …Foi o corpo que desesperou da terra e que ouviu o ventre do ser falar com ele… Mas “aquele mundo” está bem escondido das pessoas, aquele mundo desumanizado e inumano, que é um celestial nada; e o ventre do ser não fala de modo algum ao ente humano, a não ser como homem. Na verdade, o ser é sempre difícil de demonstrar e é difícil fazê-lo falar. Dizei-me vós, irmãos, não é a mais singular de todas as coisas também a melhor comprovada? Sim este Eu, com a contradição e a confusão do Eu, ainda é quem fala mais honestamente do seu ser, este Eu que cria, quer e avalia, Eu que é a medida e o valor das coisas. E este ser, de todos o mais honesto, que é o Eu, fala do corpo e até quer o corpo… O meu eu ensinou-me um novo orgulho, que eu ensino aos homens: não meterem mais a cabeça na areia das coisas celestiais, mas trazerem-na a descoberto, como uma cabeça terrena que proporciona sentido à terra. Ensino aos homens uma nova vontade: quererem esse caminho, que o ser humano percorreu às cegas, aprovarem-no e não mais se desviarem dele furtivamente à maneira dos doentes e dos moribundos… Queriam escapar à sua miséria, mas as estrelas eram para eles demasiado longínquas. Então suspiraram: “Oh! Se houvesse, contudo, caminhos celestes para nos infiltrarmos numa outra existência e felicidade!” Depois, inventaram as suas artimanhas e as suas sanguinolentas beberagens” (Dos Visionários Do Além» [x]
O ideal de Nietzsche é assim um ideal proveniente da terra, à semelhança de Heraclito, Nietzsche vê o mundo como um ser que apenas existe no devir. Assim, o homem deve ver-se a ele mesmo como o meio para o devir do derradeiro ser, algo que o supere; é desta ideia que surge o ideal do “super-homem”. O “super-homem” seria o culminar do devir Humano, um ser cuja existência se justifique por si mesma, algo que dê um sentido a todo o passado, uma forma de ser com valor intrínseco e ao mesmo tempo almejável pelo Homem. Não uma projecção para o “além”, no entanto, mas sim uma projecção para o futuro.
É também neste sentido em que Platão e Nietzsche, aparentemente, se encontram em oposição direta. Isto porque Platão defende que o ser apenas se poderá alcançar através da união com a divindade, num processo ascético de rejeição do corpo, em prol da alma no além, enquanto Nietzsche defende que o caminho para o ser, o devir, só poderá ser feito por via da reprodução, por via do corpo, e por via da terra. No entanto, esta ascese imanente ao homem não se pode considerar uma mera formal reprodução: para que haja uma ascese é necessária uma superação do passado, ou seja, uma reprodução criadora, uma criação. Pode ler-se ainda o pensador contemporâneo:
«És homem e desejas ter mulher e filhos? Mas eu pergunto-te: és um homem a que seja lícito desejar ter um filho? ÉS o vitorioso, o vencedor de ti próprio, o dono dos teus sentidos, o senhor das tuas virtudes? …Ou são o animal e a necessidade que se exprimem através do teu desejo? Ou a solidão? Ou a insatisfação contigo próprio? Quero que sejam a tua vitória e a tua liberdade a ansiar por um filho. Deves edificar monumentos vivos à tua vitória e à tua libertação.
Deves construir algo que te ultrapasse. Mas primeiro tens de estar tu próprio construído, rectangular de corpo e alma. Não deves apenas reproduzir-te, mas produzir algo que fique acima de ti… Deves criar um corpo superior, um primeiro movimento, uma roda que gira por si mesma – Deves criar um criador. Casamento: Chamo assim à vontade a dois de criar o ser único, que é mais do que aqueles que o criaram.» [xi]
Assim surge a questão seguinte : se o sentido derradeiro da vida, aquele que não apenas dá um sentido à morte e ao sofrimento, mas que os justifica à partida (à semelhança da oposição que existe entre a árvore e as suas raízes (diretamente opostas, e no entanto condições mutuamente necessárias); e se este sentido é, desde o começo , proporcionalmente equivalente ao sofrimento, assumindo que se vai acumulandoao longo do constante devir histórico , como se poderá justificar o sofrimento daqueles que não deixam prole?
Nietzsche, como Heraclito, acredita que tudo o que é novo nasce da guerra, ou seja, da aniquilação daquilo que é antigo e inapto, e nisto consiste o sacrifício da vida, a sua autoaniquilação ascética. Nesta ascese não participam meramente aqueles que deixam descendência como sacrifício, e desta forma se tornam uma ponte para o futuro Homem.
Para os aparentemente incompletos, que não deixam prole, também são oferecidas sugestões acerca de como participar no processo. Às duas propostas correspondem dois espíritos diametralmente opostos; a primeira proposta – feita aos moribundos inaptos que se agarram à vida apesar desta já não lhes oferecer nada mais digno que a morte:
«Cansados da vida! E ainda nem sequer vos afastardes da terra! Sempre encontrei ainda cobiçosos da terra, ainda enamorados do vosso cansaço terrestre! Não é por nada que estais de beiço caído: há ainda um pequeno desejo assente em cima dele! E nos vossos olhos… Não paira por lá uma nuvenzinha de prazer terrenal inesquecível? Há na terra muitas invenções boas, umas úteis, outras agradáveis: por causa delas há que amar a terra. E há nela uma tal diversidade de coisas tão bem inventadas que são como os seios da mulher: simultaneamente úteis e agradáveis. Mas a vós, cansados da vida, indolentes da terra, deve-se dar com vergastas! É por meio de vergastas que se deve reanimar as vossas pernas! Pois se não sois doentes ou homúnculos decrépitos, dos quais a terra está farta, então sois astutas preguiças ou voluptuosos gatos lambareiros bem enroscados. E se não vos quereis voltar a correr alegremente, pois deveis sumir-vos! Com incuráveis, não se deve querer ser médico: eis o que ensina Zaratustra. Deveis, pois, sumir-vos! Mas é preciso mais coragem para pôr um ponto final do que para fazer mais um verso; todos os médicos e poetas o sabem. E a segunda proposta para aqueles que se encontram corajosamente dispostos a se sacrificar pela vida, de livre vontade, e que com a sua morte esperam ascender a humanidade através da força seletiva que ofereceram ao seu inimigo, ou seja, os guerreiros: “Pelos nossos melhores inimigos não queremos nós ser poupados, nem tão-pouco por aqueles que amamos profundamente…Deveis procurar o vosso inimigo, deveis fazer a vossa guerra e fazê-la pelos vossos pensamentos. E se o vosso pensamento for vencido, que a vossa honestidade ainda cante vitória por isso! …Sois feios? Pois bem, meus irmãos! Embrulhai-vos no sublime, a capa do que é feio! E quando a vossa alma se fez grande, então torna-se arrogante, e na vossa grandeza há maldade. Na maldade, o arrogante encontra-se com o fraco. Mas compreendem-se mal um ao outro. Eu conheço-vos. Só podeis ter inimigos que sejam para odiar, mas não inimigos para desprezar. Deveis estar orgulhosos do vosso inimigo: então os êxitos do vosso inimigo são também êxitos vossos. Sublevação – é essa a nobreza do escravo. Que a vossa nobreza seja a obediência! Que mesmo o vosso comandar seja um obedecer! Para um bom guerreiro, “tu deves” soa melhor do que “eu quero”. E mesmo aquilo que vos agrada, ainda vós deveis deixar que, primeiro, vo-lo ordenem. Que o vosso amor pela vida seja amor pela vossa suprema esperança e que a vossa suprema esperança seja o mais alto pensamento da vida! O vosso mais alto pensamento, porém, deveis recebê-lo de mim como uma ordem… a qual reza assim: o homem é algo que deve ser superado. Vivei, pois, a vossa vida de obediência e de guerra! Que importa uma longa vida? Qual é o guerreiro que quer ser poupado? Eu não vos poupo, amo-vos plenamente, meus irmãos na guerra!» [xii]
(No meu entender, a resposta de Nietzsche é a mais profunda e completa.Há nela uma verdade crua, o tipo de verdade que só um espírito guerreiro poderia tolerar:o tipo de verdade que, como Nietzsche pretende, nos leva a dizer sim à vida, em todo o seu sofrimento possível. Não se trata de uma resposta fácil , e no entanto fala às vísceras – e em tudo aquilo que fala às vísceras existe uma sabedoria mais antiga e profunda, uma sabedoria que em muito excede o recente e confortável êxtase da procura de uma aparente felicidade.
No entanto, neste plano nem todos são capazes de “sair da caverna”. Para esses só resta uma outra antiga e visceral verdade. Nas palavras de Nietzsche : «Despreocupados, trocistas, violentos – é assim que nos quer a sabedoria: é mulher, só pode amar um guerreiro.» [xiii]
[i] PLATÃO; A República; trad. Maria Helena da Rocha Pereira, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian; 15ª edição, 2017.
[ii] PLATÃO; A República; trad. Maria Helena da Rocha Pereira, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2017, 15ª edição.
[iii] HERACLITO DE ÉFESO, Filosofia Grega Pré-Socrática, trad. Pinharanda Gomes, Lisboa: Guimarães Editores, 1994
[iv] HERACLITO DE ÉFESO, Filosofia Grega Pré-Socrática, trad. Pinharanda Gomes, Lisboa: Guimarães editores, 1994
[v] ARISTÓTELES; Ética a Nicómaco, trad. António de Castro Caeiro, Quetzal Editores, 2009.
[vi] ARISTÓTELES; Poética, trad.Ana Maria Valente F.C. Gulbenkian, 2004.
[vii] Ética a Nicómaco, ob.cit.
[viii] NIETZSCHE; O Crepúsculo do Ídolos; trad. Artur Morã Edições 70, 2017.
[ix] PLATÃO, O Banquete (Diálogos II),trad. Sampaio Martinho, Publicações Europa-América, 2000.
[x] NIETZSCHE; Assim Falava Zaratustra, trad. Paulo Osório de Castro, Relógio D’Água, 1997.
[xi] Idem, ibidem.
[xii] Id., ibid.
[xiii] Id., ibid.