Recuperamos uma rubrica a que pontualmente acrescentamos algumas entradas, sempre dominadas pelo seu uso contemporâneo — e às vezes o critério de contemporâneo pode ser tão estrito como a recorrência do uso de determinada palavra ao longo de período curto de poucos meses. Tratamos assim de palavras ou expressões que entram na moda ou cujo uso ligeiramente distorcido face ao significado original é socialmente útil para marcar determinado ponto, ou mesmo até palavras e expressões já há muito estabelecidas na língua mas cujo sentido foi sujeito, ao longo da sua historia, a severas distorções.
Começamos assim por abordar um conceito que está na ordem do dia: o de oligarquia. Tem sido levantado a propósito do papel de alguns milionários, nalguns casos papel mais público que o habitual, nas recentes eleições presidenciais norte-americanas de 2024. O uso é abusivo: não existe de facto oligarquia nem nos Estados Unidos nem na maior parte das democracias liberais ocidentais, onde encontramos regimes de representação política eficazes, com partidos políticos diversos, eleições livres sem fraude significativa, rotação de poder político e pesos e contrapesos judiciais independentes. Existem sim oligarquias em países de partido único ou perto disso, em que, na ausência de rotatividade de poder e de pluralidade democrática, o poder de facto concentra-se em poucos. Não é o caso dos USA: Elon Musk, por exemplo, é um cidadão com intervenção política, à semelhança de muitos outros (Soros, Oprah, Chomsky, etc), com mais dinheiro ou menos dinheiro. Tal exercício de intervenção não constitui por si só de forma alguma uma situação de regime que se possa classificar como “oligarquia“.
Continuamos com sororidade, neologismo recente, com raiz latina mas ainda não inscrito nos dicionários, que reporta a um sentimento de união tribal primária entre pessoas do sexo feminino face a poderes opressores exteriores, em qualquer circunstância. É um termo típico das contradições da terceira fase do feminismo, em que se apela a um sentimento acrítico de defesa de pessoas só por serem mulheres, precisamente o oposto da pugna pela igualdade e pelo mérito da primeira fase do movimento. É derivado do latim soror (irmã) e refere-se a um sentimento de união tribal entre mulheres frente a poderes opressores externos, evocando uma solidariedade quase instintiva que, embora poderosa, reflete contradições típicas da terceira fase do feminismo: enquanto o movimento em sua primeira vaga lutava por igualdade e mérito, rejeitando estereótipos em busca de oportunidades universais, o uso de “sororidade” pode sugerir uma lealdade acrítica baseada apenas no género, criando um tribalismo que prioriza a defesa incondicional em detrimento da avaliação individual e racional, o que paradoxalmente se afasta do ideal emancipatório original e reforça uma dicotomia “nós contra eles”.
A expressão “construção social“, tão em voga em debates académicos e culturais, adquiriu um caráter irritante devido ao seu uso frequentemente pejorativo, que implica uma desvalorização de fenômenos como meros produtos arbitrários da vontade humana, desprovidos de qualquer fundamento mais profundo — uma visão enraizada na falácia de que tais “construções” seriam inteiramente mutáveis e plásticas, sujeitas a uma reformulação caprichosa, quando, na verdade, muitas delas estão profundamente ancoradas em lógicas naturais e históricas que resistem a mudanças simples ou voluntariosas. Por exemplo, ao rotular-se género, hierarquias ou mesmo a família como “construções sociais” com um tom de desprezo, ignora-se que essas estruturas, embora moldadas por contextos culturais, frequentemente emergem de padrões biológicos, psicológicos e sociais — como a reprodução, a cooperação ou a necessidade de oertencça — que não são meros artifícios descartáveis, mas sim respostas adaptativas complexas, entranhadas na experiência humana ao longo de milénios. Esse uso redutor da expressão, popularizado em especial por correntes pós-modernas, sugere uma leveza ilusória na transformação dessas realidades, subestimando as tensões entre o que é construído e o que é dado, o que gera frustração tanto pela simplificação quanto pela arrogância implícita de que bastaria “desconstruir” para reescrever o mundo, quando, na prática, tais raízes naturais impõem limites que não podem ser ignorados sem consequências. Assim, o tom irritante de “construção social” não vem apenas de sua repetição mecânica, mas da falácia que carrega: a de que o humano é um arquitecto absoluto, e não um coautor condicionado por forças que escapam ao seu controle total.
A expressão “adultos na sala” cristalizou-se nos últimos anos como um cliché irritante, especialmente devido à intensa polarização política e social que marcou a ascensão de forças populistas nos parlamentos europeus e americanos, servindo como uma espécie de grito de guerra retórico que reflecte tanto a arrogância quanto a insegurança de quem o emprega. Originalmente, parece ter surgido como uma reação das elites intelectuais e progressistas — acostumadas, desde o consenso político pós-Segunda Guerra Mundial no Ocidente, a ditar os códigos morais e as regras do discurso público, definindo o que era aceitável ou tabu — frente ao surgimento de novos actores e códigos que desafiavam a sua hegemonia, como os movimentos populistas de direita ou mesmo de esquerda radical. Ao invocar “adultos na sala”, essas elites buscavam posicionar-se como guardiãs da maturidade, da razão e da ordem, infantilizando os seus adversários com um tom de superioridade moral e nariz empinado, como se dissessem: “Nós sabemos como as coisas devem ser feitas.” Contudo, a ironia é que a expressão acabou sendo apropriada pelas forças contrárias, que passaram a usá-la para ridicularizar justamente essa postura elitista, virando o jogo e expondo a fragilidade de uma classe que, diante da perda de controle sobre a narrativa, recorre a chavões para reafirmar uma autoridade cada vez mais contestada. Assim, “adultos na sala” tornou-se um símbolo da disputa por legitimidade em tempos de ruptura, carregando tanto a nostalgia de um passado de consensos quanto o ressentimento de um presente fragmentado.
O mercado, lendária expressão que migra dos terrenos da ciência económica especializada para a designação genérica de tudo o que tem a ver com termos mais dinheiro ou menos dinheiro, mais coisas ou menos coisas, mais recursos ou menos recursos, é hoje uma expressão com alguma má reputação, já que uma parte significativa da população interpreta os mecanismos das trocas económicas complexas — acções, participações voláteis em geral, câmbios, produtos financeiros derivados, etc — como maquinâncias sinistras destinadas a lixar-lhe a vida para alguns peixes gordos se safarem. Mas o mercado, apesar de ser em parte isso, fundamentalmente não é isso: mercado económico significa simplesmente todas as trocas, a gigantesca maioria voluntárias, que as pessoa fazem das suas propriedades e recursos, em toda a parte, por todo o mundo, a toda a hora. Uma venda de uns auriculares usados tem exactamente o mesmo valor, o mesmo significado e a mesma substância de um investimento em fundos imobiliários. A economia não é uma ciência oculista nem uma tramóia contra-natura — uma “construção social”, como hoje se costuma dizer — para lixar as pessoas comuns: a economia é antes tudo aquilo em que participamos quando entramos em trocas voluntárias uns com os outros, do que quer que seja, em geral intermediadas pelo sistema de medição de valor a que chamamos de moeda. O mercado é isso, é tudo isso: a vida social de troca de recursos de toda a gente.
A expressão “liberal“, que tem ganhado má fama nos terrenos da política contemporânea, pode ser colocada em contraste ou em semelhança com a reputação que a palavra “libertino” já carregou em tempos passados, ambas marcadas por uma evolução de sentidos que reflete tanto os contextos históricos quanto as disputas ideológicas de suas épocas. Enquanto “libertino”, no seu uso histórico, evocava uma ideia de devassidão ou desregramento moral, associada a excessos individuais e a uma rejeição das normas sociais, “liberal” hoje enfrenta um desgaste semelhante, sendo frequentemente distorcida em debates polarizados: para alguns, sinónimo de elitismo económico ou indiferença social; para outros, um rótulo de fraqueza moral ou permissividade. Importa lembrar, contudo, que a tradição do liberalismo, com raízes no século XIX, é muito mais ampla e profunda do que essas caricaturas sugerem — trata-se não apenas de uma teoria económica, centrada na defesa do mercado livre e da propriedade privada, mas também de uma filosofia moral que coloca a maximização da liberdade individual como princípio fundamental, entendendo-a como o caminho mais proveitoso tanto para o florescimento dos indivíduos quanto para o fortalecimento da vida coletiva. Figuras como John Stuart Mill e Adam Smith, por exemplo, articulavam essa visão com um equilíbrio entre autonomia pessoal e responsabilidade social, algo que se perde nas simplificações atuais, onde “liberal” é muitas vezes reduzido a um espantalho político, distante da sua ambição original de harmonizar liberdade e bem comum. Assim, tanto “liberal” quanto “libertino” ilustram como palavras podem ser arrastadas para o campo da má reputação, menos pelos seus significados intrínsecos e mais pelas paixões e preconceitos que mobilizam em determinado momento histórico.
A palavra “queer“, hoje amplamente associada a sexualidades alternativas e não maioritárias — como bissexualidade, transgeneridade e outras identidades que desafiam as normas tradicionais de gênero e orientação sexual —, carrega uma trajetória semântica que revela tanto sua riqueza quanto sua transformação ao longo do tempo. Originalmente, “queer” vinha do inglês arcaico e significava simplesmente “estranho” ou “bizarro”, uma descrição genérica de algo peculiar ou fora do comum, sem qualquer vínculo necessário à esfera sexual. Esse uso mais amplo, que persistiu até o início do século XX, foi gradualmente apropriado por movimentos identitários, especialmente a partir das últimas décadas do século passado, quando ativistas e teóricos, como os ligados à teoria queer, ressignificaram o termo para abarcar uma rejeição deliberada das categorias fixas de sexualidade e gênero impostas pela heteronormatividade. Assim, o que era uma expressão neutra de excentricidade tornou-se um símbolo político e cultural, muitas vezes carregado de orgulho subversivo, mas também de controvérsia, já que sua associação com variantes percebidas como “bizarras” ou “distantes da norma” pode tanto empoderar quanto alienar, dependendo do contexto. Essa evolução reflete não apenas uma mudança linguística, mas uma disputa mais ampla sobre identidade, aceitação e os limites do que se considera “normal”, evidenciando como palavras podem ser reinventadas para carregar novos mundos de significado — e de conflito.
Por fim, desde aproximadamente 2010, tem-se observado uma crescente pejorativização da expressão “ao que vem“, que, em português, tradicionalmente funcionava como uma construção neutra para indagar sobre intenções ou propósitos, mas que, mais recentemente, passou a ser associada, em muitos contextos, a uma insinuação de más intenções por parte do sujeito em questão, carregando um tom de desconfiança ou acusação implícita. Esse deslize semântico, que transforma uma pergunta ou constatação simples em algo potencialmente carregado de julgamento, é ao mesmo tempo irritante, menorizante e neurótico: irritante, porque distorce uma forma corriqueira de comunicação em algo desnecessariamente hostil; menorizante, por reduzir a complexidade das intenções humanas a uma presunção negativa; e neurótico, pois reflete uma tendência cultural mais ampla de hipervigilância e polarização, onde até mesmo expressões banais são arrastadas para o terreno da suspeita. Essa mudança pode ser vista como um sintoma de tempos em que a boa-fé é menos presumida, e o diálogo cotidiano se vê contaminado por uma postura defensiva ou cínica, o que empobrece a linguagem e as interações que ela sustenta. Embora não haja um marco exato para essa transformação, ela parece ecoar o aumento da tensão social e política da última década, evidenciando como o léxico acompanha — e às vezes amplifica — as ansiedades de uma era.