Texto de Luís Coelho, Fisioterapeuta e escritor, Escola Superior de Saúde do Alcoitão. Mais um artigo que desenvolve reflexões filosóficas prolongadas sobre o tópico da fisioterapia, desta vez pegando no método de Pilates e na sua aplicação à condição da raquialgia. Imagens: esquissos de Miguel Ângelo.
Em tempo de modas e “vanitas”, a realidade clínica parece ser subjugada pela expressão dos métodos, dos paradigmas, que a temática das raquialgias tão bem expõe e propende no mundo da reabilitação psicofísica. Se o próprio “ráquis” realiza o equilíbrio, o excesso dos modelos trai-o, polarizando a relação das cadeias musculares com a acção “musculada” e liberal.
Se, segundo os modelos posturais 1, 2 , 3, o equilíbrio implica a relação sinérgica de uma musculatura postural – essencialmente posterior – suficientemente flexível, e – por isso – forte e tolerante, com uma musculatura fásica – essencialmente anterior – reforçada, é certo que é o próprio excesso de alongamento que desafia o equilíbrio, gerando o sintoma “positivo” e reforçando o ciclo da necessidade de estiramento; o dogma alimenta-se a si-mesmo e ao terapeuta placebetário, faltando precisamente o equilíbrio que propenderá o movimento e a possibilidade da acção anterior.
É justamente o movimento que não pode ser obliterado, é ele que pede o reforço re-estabilizante. Note-se que o modelo “postural” se efectiva essencialmente na posição de “flexão”, por via a recuperar o comprimento muscular, mas esse paradigma possui a sua grande limitação no modelo “discal” (efectivado essencialmente com manobras de extensão, visando, inclusive, a reabsorção do núcleo pulposo do disco intervertebral 4), com a possibilidade da Reeducação Postural poder fazer agravar o processo envolvido, por exemplo, nas hérnias discais. Claro está que o modelo defende-se (sugere, aliás, que o alongamento faculta a descompressão dos discos intervertebrais 3), e o corpo defende-se dele, gerando mais compensações, e estas são, tal-qualmente, as defesas do intrínseco terapeuta. O trabalho de reforço abdominal profundo não pode, neste contexto, recuperar o equilíbrio perdido; gera, até, novas defesas. É preciso realizar trabalho em extensão, capitalizar a função, o movimento, e só depois valerá a pena incluir, eventualmente, o Pilates. Por sua vez, o exercício deste num corpo em desarmonia promete criar, também, mais resistência, posterior e cíclica, gerando a prática dolorosa(claro que o modelo defensa, bastas vezes, a necessidade de “dor”, mas nem toda a dor compensa) e multiplicando as possibilidades de reequilibração. O processo polarizador é uma representação do próprio “pathos” da raquialgia, como da inflamação dos paradigmas, igualmente na mente do duo terapeuta-paciente, Sujeito-Objecto. Reforçar os extensores do tronco, higiene postural, trabalho superconsciente da musculatura, tudo isto alimenta, ainda mais, a relação desarmónica dos modelos, a raquialgia, contribuindo, aliás, para fazer achatar a coluna vertebral, ora cerzida pelas forças da dualidade em “eterno retorno”.
O alongamento tem de ser moderado, espontâneo, o movimento deve aproveitá-lo, e a força capitaliza o equilíbrio. Quando a Reeducação Postural se excede também o Pilates tem de o fazer. Quando os modelos propõem um novo equilíbrio, só a função poderá recuperar a harmonia, estabilizando a relação, dirimindo a dualidade, recriando o crescimento de uma coluna, onde o trâmite neurológico e cognitivo não pode ser negligenciado. A prática dogmática propõe a salvação do terapeuta, não do paciente. E é por isso que o clínico não pode ser obliterado pelo reeducador messiânico ou pelo professor de Pilates. E nem, como tal, a “Clínica” deve esquecer o manancial do “idiossincrático”, com aquelas práticas a abraçarem, crescentemente, com precisão, a abordagem de grupo, no que esta tem de pior e mais massificado. A ciência “nomotética” envolvida, por exemplo, nos estudos relativos ao Pilates também só fará sentido se for contextualizada no equilíbrio idiossincrático do paciente, só assim poderá a ciência validar-se ecologicamente; doutro modo, teremos estudos que convidam à prática quase coerciva. A ecologia clínica sugere, por exemplo, que o Pilates praticado desmesuradamente também pode ter um impacto negativo nas hérnias discais. Apesar da literatura sugerir outra coisa, somos, todos os dias, desafiados a combinar os modelos de um modo que estabilize e engrandeça o equilíbrio, o que, muitas vezes, não abona à validade financeira de uma “práxis” exercida perpetuamente. Mas não será, todavia, fácil visar em estudos o efeito de uma prática reequilibrante, que permita dirimir as forças “articulares”, incluindo as discais, e que possua, portanto, expressão na representação “neurológica”. Não que este Sistema padeça de (pouca) “ciência”, mas ele configura um “longo prazo” estrutural que, de qualquer modo, avoca, mais uma vez, a ameaça do dogma “postural”. Também aí a função, a força funcional, representa um importante papel, introduzindo o “curto prazo” na Estrutura postural.
E, novamente, se representa o ciclo, que é, irmãmente, a relação do “input” ascendente com a (i)Razão descendente, do sistema terapeuta-paciente com o Objecto inapreensível, inalcançável. O “curto prazo”, a “interferência contextual”, desafia, portanto, o equilíbrio que o Contexto, a ciência, almeja, e para ele concorre a dualidade onde o terapeuta não se exclui enquanto elemento do Sistema, antes se torna, quiçá, “paciente” do mesmo à custa da interferência do Outro.
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Que o terapeuta seja, igualmente, “paciente”, isso inclui o efeito do raciocínio dialéctico, o “design” ideal que esboça a acção do Sujeito sobre o Objecto-paciente, e também este enfuna por uma dialéctica, por uma dor, que possui o poder de “sujeitar” o (ex) paciente a objectar-se, quiçá, à interferência contextual, gerando o aspeito de um equilíbrio que ofende, porventura, o domínio “científico”, a “normalidade”. Claro está que a novel “normalidade” identicamente se concebe como domínio, princípio da Realidade, e este cativa as razões, que concorrem para a Unidade. E esta desempenha permanentemente o papel de delineadora da “moral de ressentimento” (Nietzsche 5), acção do paciente, da dor, do “pathos”, capaz de burilar nova moral, novel domínio, que, aqui, se comporta como projecção “polar”, e o novo “pólo” redesenha a Realidade, submetendo, talvez, a razão vindoura. Terapeuta e paciente, Sujeito e Objecto, alternam os papéis, mas, quando ambos se integram, dilui-se a ansiedade, o “pathos”, e o Sistema é pacificado, equilibrado. É o excesso de Realidade “terapêutica” que irá fazer do “paciente” agente do paciente “terapeuta”, e isto ocorre, sobretudo, quando jaz o dogma, que, de algum modo, se peja como “complexo de castração”. O terapeuta é, assim, um doente de transformação, e isso (re)constrói a dialéctica do paciente, aliás, toda a acção terapêutica implica uma reconstrução, eventualmente anamnésica, e ela tem o poder temporal de dualizar os “agentes”, com a resultante da Unidade.
Obviamente, a Unidade terapêutica poderá sujeitar outrem, e isto desenha-se ciclicamente, polarização e despolarização, também isto é dualidade, bissexualidade, e a Unidade é homossexual, incestuosa, “Ser”, Liberdade, inDeterminidade, este é o Objecto franco, Sujeito absoluto. A dualidade é, outrossim, o mecanismo de defesa pleno, em que a postura se permite redesenhar. A ilusão de Unidade corresponde à Razão placebetária, e esta convida à reactualização da Realidade, acaso para além do bom senso científico, do contexto que a modernidade encima, demónio do “pós-modernismo”.
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Que a Postura pareça “Espírito” e o Pilates remeta para a ciência “nomotética”, com esta a constituir o “bom senso” realista, tudo isto nos dualiza, convocando à “posturologia” do absurdo (Camus 6), onde Razão e Cultura se reproduzem teticamente, possibilitando a (re)habilitação de muitos agentes. Esta é a dor maior, o grande sofrimento, e o Placebo poderia ser o Fim, o Sujeito puro, o Equilíbrio, prestes a ser perdido para a Realidade científica, que sempre vem vociferando com a “última palavra”. Também por isto as práticas grupais se apresentam muitas vezes como a solução “menos má”, e, perante ela, os desajustados, os desadaptados, parecerão “negacionistas” da Verdade, bem vendo, o que é a “falsificabilidade” popperiana senão um negacionismo racional, que, na senda de Popper 6, é critério de cientificidade, não de “Verdade”? Que esta permaneça no Incognoscível, ladeando na plena Liberdade, existe, no entanto, o “livre-arbítrio” dualizador, a “razão neurótica”, tentando pluralizar as verdades no tempo, as “dores do mundo” (Schopenhauer 7), e cada “verdade” parecerá maior, “racional”, repleta de Graça, no sentido que lhe é dado por Malebranche 8.
As “verdades” convergem neuroticamente para a Razão maior, o paliativo perfeito, é uma guerra de adaptação à Spengler 9, pode ser, até, que a Razão submeta a Realidade do modo peremptório, que é ter toda a razão do mundo.
Difere, aliás, da guerra competitiva em que “dói” a ciência pela injecção do “Espírito”, a dualidade “modernidade vs. pós-modernidade” é, na verdade, a peleja exemplar, e nisso é ainda mais Sofrimento do que “dor”, o tempo, a Consciência, dá-lhe o alento, a relação terapêutica é, similarmente, uma guerra de paradigmas (Kuhn 10), mas nada obsta ao paralelismo, que é, no fundo, polarizar, de vez, “Espírito” e “matéria”, quebrando a comunicação possível. Porque quando esta se estabelece, há, de alguma maneira, exercício de poder, é a razão de cada um a alicerçar-se como Cons-ciência, e a peleja substitui continuamente os lugares de Sujeito e Objecto, com o sentido implícito de esgotar a Realidade.
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O Domínio científico representa o conforto “maioritário”, nele pode, todavia, patologizar-se a actividade do “terapeuta” “espiritual”, na relação compensatória com o paciente. Compensados ambos os agentes, pode ser que subsistam paralelamente ao “Domus”. Num domínio espiritual, o terapeuta “científico” poderia reter um papel semelhante, são, aliás, as diferenças que remetem ao “pathos”, só estas importam, porque esboçam a descompensação do Sistema.
O patologizado pode ser compensado ou estruturado, ou pode sublimar para a Realidade, é este o caso flagrante que poderá originar a conversão de muitos “agentes”, patologizando os pretéritos adaptados, que se vêem sem o apoio da Realidade, e, aqui, incluem-se muitos terapeutas “patológicos”, uma minoria salvífica e ressentida. E o ressentimento pode abranger a atitude perante uma medicina “científica” que, ainda assim, coloca a Objectividade clínica à frente da necessidade da “pessoa”. Similarmente neste contexto, as “terapêuticas” tentam marcar pontos, (re)compensando as vítimas do Sistema, que, a determinada altura, é acusado de “neoliberal” e “selvagem”. Para muitos, não cabe à ciência a resolução “moral” do mundo, mas também aqui reside a “impessoalidade”, o resto é deixado à vontade do Placebo, que pode demover o sujeito da participação na Realidade tangível.
Eis como as dualidades se perpetuam, cada Sujeito possui a sua própria dualidade e o seu intrínseco Corpo-Espírito, resta saber onde ele se situa maioritariamente, pode advir daí a sua segurança, ou pode ser que ela venha sobretudo de fora, os “seguros de si” não são a fonte de mudança, mas – sim – os inseguros, e até a ciência pode ser assestada no lugar de “amaldiçoada”, às tantas o “Domus” é sempre Espírito, mesmo que à custa da concretude, o Equilíbrio é a abnegação, a “impassibilidade”, o lugar da inDeterminidade, onde já não se teme o incesto onde necessariamente se recairá.
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O pleno incesto in-consciente é o destino da relação terapêutica, numa espécie de “além mundo”, mas o processo despolarizador, em que “Espírito” e “matéria” se aproximam, não se faz sem o “desespero” (Kierkegaard 11), é verdade que todas as relações são relações de incesto, mas permanece a “resistência” que implica aproximação do Inconsciente pessoal do Superego de “outrem”, e haver despolarização é tornar a Consciência menos dual, o que, em vida, não provoca a sua desaparição, é preciso, outrossim, que subsista alguma “dor” perfazendo a linha da vida, o “prazer” é diluí-la, mas também neste caso Eros se acerca de Thanatos, este é o “paradoxo da Consciência”, a vida requer a consciência sofrida, mas esta mata e polariza; o in-sofrimento é dirimir as oscilações, é reconciliar a consciência com a Origem, mas a pacificação, na medida em que dirime a dor, também dirime o prazer.
Que fazer, por exemplo, a quem glorifica o sofrimento, se explicar a sua puerilidade é já sofrer? Como ser “objectivo” se a decisão implica forçosamente a perspectiva sofrida? Claro está que a “morte” faz doer muitas outras consciências, basta, para tal, que falemos de “morte assistida”, lembrá-lo é evocar o sofrimento e atrair a própria morte, a necessidade de evicção.
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No contexto das “terapêuticas”, dirá, tantas vezes, o terapeuta que o sofrimento compensa, lembra a urgência de abnegação, mas até quando esperar pelo milagre, fará, sequer, sentido sofrer toda a vida para aprender a morrer? Quando a vida é, já, a própria morte… Porque cada ciclo é uma “morte simbólica”, mas sofrer é atirar-nos enquanto pólo à expugnação da Realidade, é ater novel compensação postural pedindo nova relação com a força “liberal”; por outro lado, o Placebo também pode alimentar a compensação, porque permite posturas que, às tantas, não recolhem o assentimento do “meio”, e quem mais sobrevive à Realidade é o “seguro de si”, mas neste nem a questão se colocaria, senão numa outra esfera, na “Physis”, onde, apesar de tudo, a dor “mínima”, o estado de “insofrimento”, cria um Objecto de reequilíbrio melífluo.
Assim como o equilíbrio avizinha os pólos Sujeito-Objecto, terapeuta-paciente, similarmente reequilibra a relação da Postura com a função; a Postura “tolerante”, flexível, implica um movimento menos forçoso, e isto é também como dizer que o liberalismo económico não despende dum Estado “mínimo”, que, aliás, permite e obvia a “liberdade”, a Razão postural aleita, identicamente, a Deôntica e esta exprime um consequencialismo, uma resultante “pragmática”, e a última fará a próxima Deôntica, e a mudança provém dos desadaptados, mas estes são, igualmente, a expressão da intolerância “estatal”, racional. Também é a Deôntica que exprime a fobia pela morte, coisa considerada sagrada mas a pedir o consequencialismo do respeito, isso não mata o facto de haver “liberdade”, mas isto é para não ser dito em alto e bom som, é preciso arranjar, incessantemente, uma maneira de compatibilizar a Regra moral com o “livre-arbítrio”, porque a Realidade precisa de ambas, e precisa de fazer acreditar que ambas se proporcionam, se bem que, fatalmente, requeremos a liberdade para nós e o “dever ser” para o “outro”, excepto, claro, quando algo nos corre mal, aqui já puxamos da justificação.
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A dualidade “terapêutica” debuxa, equitativamente, a relação da Razão “ideal” com o multiverso de razões que se estendem infinitamente no tempo, com cada uma a arrostara “Auctoritas” de “Deus” na potenciação de uma Deôntica tão transformável quanto possível. Ao invés de concebermos o Superior enquanto Pai da Regra moral, passaremos a trabalhá-la com base no “elementarismo” atomista, cuja face “quântica” (tomista) pluraliza as possibilidades. Cada Logos contende nova regra, e isto lembra a relação que a (i) Razão descendente emprega com o corpo “empírico”, sabendo nós que o controlo da dor é feito também desse modo “central”. Mantendo a analogia, o “pathos”, ao sublimar para novel Razão “dominante”, está, no fundo, a encabeçar a postura anti-álgica, e o Sistema se lhe adaptará pela Cultura, que possui o poder de redesenhar o duo Razão-Realidade, que poderia ser, aliás, o binómio Espírito-corpo, capaz, ainda assim, de levar outros agentes a executarem a mesma força mas com outro sentido. Trata-se, logo, de uma conquista da Razão-Realidade “indolor”, com uma base competitiva. Neste contexto, relembramos o erro do trabalho demasiadamente “local” no tratamento da dor, com este a permitir o movimento “irreflectido” das posturas racionais por um tempo indeterminado em que, contudo, alguns se compensam, porventura pela acção de uma pertença “indómita”.
Mas também não queremos, mais uma vez, excluir o trabalho local; basta que não seja exclusivo, pois não é viável, por exemplo, que o paciente esteja em sofrimento no tempo delongado do alcance de um qualquer ímpeto “superior”/neurológico, isso seria voltar à abnegação, e manda o equilíbrio que tentemos harmonizar o “Espírito” do “longo prazo” com a matéria célere, quiçá até à obliteração da carência de dualizarmos, quando tudo se encontra unificado e a depender de uma referência suprema, “ateia” perfeita, mas viva de leve “dor”, que é a linha do tempo sujeitando perpetuamente os homens. E a linha implica o “atrito” empírico, a paciência “local”, burilando a diferença (Deleuze), quando esta é precoce e o Sujeito não pode escudar-se na Razão dominante, o seu “defeito” atentará, permanentemente, à compensação – que mimetiza o “Princípio” -, e esta é retribuída ao terapeuta, porque se o contrário se verifica bipolariza-se a Realidade, que pode ser mera incompatibilidade paradigmática, cegueira “dual” da Unidade.
O que contende terapeuticamente o Sujeito é, muitas vezes, o que o contendeu primariamente, é legítimo que se torne ainda mais primário, na senda de um autêntico “religare”. Talvez, aí, possamos ver como “Espírito” e “matéria”, Sujeito e Objecto são exactamente a mesma coisa, só muda a perspectiva. Não há, bem sabemos, qualquer dualidade, tal “clivagem” serve, somente, a perspectiva; claro que, para grande parte do materialismo, o “Espírito” é, apenas, Consciência aprisionada no corpo, mas já dizia Voltaire que estas discussões são inúteis à moral, e, não obstante, também esta é a regra neural, superegóica, que, na relação dialéctica com o inconsciente, se justifica sempre; o determinismo mata a moral, mas não mata a sua ilusão, bem como a ilusão de liberdade, receptáculo primário, distinto da liberdade pura, do Nada, que alguns portam para a linha do infinitamente pequeno, mas, mesmo aí, é tudo uma questão de perspectiva, basta que nos arrumemos na escala perfeita; nesta, a Consciência parecerá, indefinidamente, indolor, ou in-sofrida, para o “utilitarismo” seria, possivelmente, questão de multiplicarmos o Insofrimento, assaz algoritmicamente, mas, por cada momento infinitesimalmente pequeno, se esboçaria novel acção perfeita, e teríamos de saber quanto tempo nos resta, quem abranger no plano de Salvação, ou importará mais a qualidade do que a quantidade, valerão os homens todos de igual modo? Qual a proporção exemplar? O terapeuta abusa, constantemente, da perspectiva da “qualidade de vida”, mas que fazer sem o número mínimo, não será esta uma “questão de vida ou de morte”? A ciência médica cumpre, bastas vezes, a sua missão categórica, ficarão as grandes questões fora da ambiência clínica? Deixá-las-emos para a psiquiatria? Não é esta a grande “dor” que enforma a Consciência? Não andará, perpetuamente, o Homem cindido entre a “dor de costas” e a “dor de cotovelo”? Num tempo de Humanidade corcunda, o eixo raquidiano já não forma uma cruz com o eixo do tempo, bastará, então, que nos “doam as cruzes” o suficiente para não pensarmos.
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O pensamento é, não obstante, o demónio do “Espírito”, para este sobra várias vezes o âmago do “Nada”, não admira que no Placebo se aplique tantas vezes “tudo”, e é forçoso que venha o “materialismo” arrumar a casa, é preciso dividir para reinar, é o que faria a componente “clínica” na senda de um Foucault 12, largando para a pós-modernidade todas as outras possibilidades, vivemos em “logocentrismo” 13, claro está que o pensamento é espírito também, o “juízo” é, de alguma forma, a injecção de uma força, para a qual converge a “fáscia” Espírito-corpo, susceptível de patologizar muitos “Eus”, e o “Eu”, em estado de “pathos”, é a queda mefistofélica, e esta é, continuamente, elevação, “materialismo racional” (Bachelard 14). Há, como tal, repleta circularidade, mas isso é ver segundo diversas perspectivas, vários lugares “escalares” na “escada” da Consciência, e as escalas são, mais uma vez, as “razões” de Ser de uma Unidade indeterminada, onde tudo parece Nada, e onde a “posição” remete para novel “pathos”, a ciência trata das relações distintas do que seria Incognoscível, seria mas já não é, se o fosse seria Espírito, ou talvez este seja, apenas, matéria subtil, parece a ciência limitada, mas ela trata, tão-só, das relações “úteis”, tal o pragmatismo à William James 15 ou à Peirce 16, a própria “vida” figura um pragmatismo que a Razão, tantas vezes, quer ofender, para Claude Bernard 17 a vida é o “fenómeno”, pouco interessa se atemos “Espírito” ou “matéria”, é tudo Uma só coisa, e a ciência é para servir a vida, não nos colocamos, aqui, tão longe da realidade fenoménica à Husserl 18 ou Heidegger 19, que o fenómeno é precedente, é o próprio Númeno (Kant 20), e Michel Henry 21 vai mais longe arrumando a sua “Vida” naquilo que proporciona tudo isto, bem como a consciência de quem isto escreve, que é, uma vez mais, espírito patologizando caminhos, a queda é uma elevação, e o contrário também é verdade, mesmo aqui se vê como tudo caminha em círculo vicioso, é por isso que a Filosofia sempre se repete, daí o jogo das analogias, e a acusação popperiana 22 de que se redunda num “relativismo dogmático”, a falsificabilidade serve, então, o pragmatismo “vital”, bem que o podemos reduzir ao elementarismo linguístico 23, mas isto não mata a Consciência, o “fenómeno”, que, consecutivamente quer portar consigo a Realidade, mudando, portanto, a consciência de uns tantos onde reside outra “imagem”, outra “vida”, outro “juízo”, e esta pode engendrar novel Sistema, mesmo estando em desacordo com o conjunto algorítmico do mundo, e este nunca deixou de ser “subjectividade”, o Sujeito totalizador insofrido, e multiplicar os algoritmos é multiplicar Realidades no tempo, que parar é morrer é Ser Unidade impensante e impensada, mas parar poderia ser “equilibrar” o Sistema num agregado determinado da Razão-Realidade, é incessantemente o Corpo que fabrica a maior demanda, a obrigação vitalista de nos escudarmos dos excessos fabulísticos, e, no entanto, a Razão seduz, tantas vezes, o corpo, submetendo-o, sujeitando-o, e é por isso que alguns dirão ter o Placebo a palavra final, poderia, até, o terapeuta entrosar sua verdade, pouco interessaria o consentimento, de qualquer forma, todo o trabalho terapêutico é uma violação, que interessa o consentimento sem a omnisciência, sem a adivinhação da Realidade, até o acto médico seria uma violação, é este o problema da dualidade, nunca é inteiramente compassiva, mas se o paciente nos procura é porque requer uma transformação, uma “práxis”, que se assaca como consciência no terapeuta, cujo acto visa, muitas vezes, transtornar a Realidade, a mesma onde ele se insere, e que o transtorna juntamente, e isto pode, quiçá, estancar a acção “terapêutica”, ou talvez ele queira tratar-se tratando, curar-se curando, libertar-se no acto de apropriação orgasmática do “paciente”, no fim não seria UM só, coito, ainda assim?, Marcuse 24 menciona a “racionalidade libidinal” como novo paradigma, seria assim tão obscuro que um terapeuta se comportasse como conquistador?, e que a resultante fosse a Unidade indeterminada, despolarizada, compassiva e libertária para com todos os outros que restariam como peças de um Sistema desorganizado?, mas é terminante que exista Caos para que haja intento terapêutico, cada um quer fazer amor com o seu “paciente”, a criatura, e esta “paixão” é pedófila, para além de incestuosa, porque fazemos sempre amor com a criança que somos e que o “outro” convoca, assaz com paternalismo, ou maternalismo, e o Fim é resgatar o Princípio, fugindo, de vez, da responsabilidade de salvar o mundo, já nos matámos matando de amor a criatura, os que ficam refazem a luta, a relação dominante-dominado, como em Hegel 25, e também neste o jogo é dialéctico, e também nele a dialéctica jaz dentro de nós, no raciocínio, que importa que Marx o quisesse trazer para a senda de um pragmatismo (histórico e social), claro que o que fazemos é sempre para transformar as vidas, é a acção que importa e ela transporta-se tenazmente para o aspeito de um pós-modernismo, reactualização do espiritualismo, não quer, bastas vezes, o médico agir como “participante”, a Objectividade sempre deseja o Objecto sem desejo ou sujeito, estranho é que o Espírito queira continuamente cair na aventura de apropriação de um mundo lúbrico, valerá, novamente, sofrer para nos limitarmos a ascender ao lugar intemporal, inConsciente, indeterminado, onde o tomismo reproduz infinitamente a relação do Uno com a própria dualidade, gerando, sempre, a ilusão temporal de que podemos “crescer”, mas crescer para onde?, que importa a meta se ela se (re)desenha permanentemente no horizonte?, e é por isso que existe a ilusão, a ilusão é “existir”, insistir transformando-nos no “absurdo”, tentando, acaso, esgotar o multiverso, obtendo, mesmo assim, o “Princípio dos Princípios” 26, onde, apesar de tudo, estaria previsto este texto, ou talvez venha algo do Nada, mas que dizer do que não existia, só podemos falar do que podemos prever, e a previsão é, precisamente, a zona de conforto da ciência, os espirituais justificam-se, tantas vezes, dizendo que tratam, meramente, de “matéria por desvelar”, potencialmente previsível, mas isto nunca chegou a ser “Espírito”, era, somente, um desconhecido, quantas coisas desconhecidas não andarão por aí deflectindo o destino, baralhando as variáveis, transtornando a reprodutibilidade, há que fugir desse terreno para que não tenhamos que pagar a factura da responsabilidade, mas a “práxis” é, justamente, construir um novo mundo, nem que seja pela mera compreensibilidade, que é muito mais do que “descrever”, mas se o fazemos “agressivamente” o mundo defende-se, e nós também, para Maslow, o terapeuta tem de ser obrigatoriamente harmónico, ao invés de ser um “louco” de orgulho reflectindo os seus fantasmas num paciente rapidamente subtraído ao universo de uma Ordem fosca que acabou por ser traída e transtornada no jogo das faculdades quiméricas. O medo da transformação é o intento do “descritivo”, o “atomismo lógico” é uma defesa clássica, mas, igualmente, uma defesa do paciente, do Colectivo, quem pode, realmente, mudar o mundo, quem pode ser “deus”?, e, não obstante, “Deus sendo” só na criação perfeita, que se faz sem precedência, mas ela também enfuna por uma resultante mais ou menos sinérgica, e o “adquirido” é, muitas vezes, o palco onde reconstruímos um passado sem precedentes, ou talvez previsível, para que não tenhamos que sofrer tanto, e para que possamos ser compreendidos, que é, neste contexto, ver-nos descritos nos olhos do terapeuta, e não façamos muito mais, quem somos nós para interferir?, mas esta é a Culpa maior, e ela não deixa de exprimir um pretérito de fantasmas ao qual não acedemos puramente, porque fazê-lo é reconstruí-lo, como reconstruímos o paciente por cada instante de “terapia”, e isso faz-se, ainda assim, no Agora, no Eterno que estagna a hemorragia nostálgica e neurótica, no Fenómeno onde o “acontecer” é justamente heurístico, no Amor já sem “pathos”, sem dor, que consigna a meta final, algorítmica, consumindo o Imaginário, que, não obstante, sempre demarcou outro palco de criatividade, amar é criar, e isto é “descrição” pura para a compreensão que se enxuga na zona de cruzamento do Espírito com a matéria, realçando o puro monismo Corpo-mente, o “adequado” de Espinosa 27, mais uma vez, é esta a “meta” pretendida, o “perfectível” infinito, tomístico, assusta, e a dúvida é a dor absoluta, o vaivém neurótico que todos consignam, e que estancamos, ilusoriamente, com as compensações, mas, quando se trata da “psique”, todas as possibilidades estão em aberto, e esse relativismo assusta, claro, o “atomismo lógico”, já basta que o terapeuta seja “dialéctico” e que construa o paciente à vontade do que vê, “tudo é interpretação”, dizia Foucault 28, mas, exactamente por isso, “bem” e “mal” não existem, há, apenas, que perseverar, mas, como já dissemos, existe o pragmatismo, a “zona de conforto” onde operamos com o esquema empírico proximal que conseguimos controlar, prever, a liberdade seria irresponsável, isto se existe alguma, mas aquela de que falamos correntemente é a própria Condição anelada, acaso a “impassibilidade”, o “Verbo”, da patrística, o estado de Cristo, mas cuidai que a Fé dos teólogos não passa de “emoção” para os filósofos que pretendem, sobretudo, reificar a Razão, mas também esta é emoção, a “relação” é o paradigma da modernidade 29, mas ela transporta consigo todos os fantasmas que uma certa “redução fenomenológica” transtorna pela “impassibilidade”. E o pesadelo da i-moralidade, obviamente a “moral” não precisa da liberdade, mas esta é muitas vezes arrumada à frente do “dever”, e este é conforme os “planos”, as perspectivas, as referências neurais; a “dor” é a “diferença” que comummente se coloca na Idiossincrasia, esta pode magoar o Colectivo, mas é também ela que faz a ciência, que serve o anterior, que faríamos num mundo inteiramente libertário?, mesmo sem Estado, as forças de “ajuda mútua” (Kropotkine 30) prevalecem, por vezes até é necessário sacrificar-nos – atemos, mais uma vez, a compaixão -, e esse seria o serviço “terapêutico” peremptório, mas, assim, morreria a “práxis”, a transformação – que, num mundo plenamente determinado, se limita a fazer variar os dados da Causa incausada -, seria a busca pelo “melhor”, mas este só pode ser adivinhado se o próprio multiverso se esgotar, como apropriar-nos da “Causa Final” num mundo plenamente livre?, por que não trabalhar pragmaticamente num mundo onde as necessidades imperantes são, quase sempre, imediatas?, é por isso que a “ciência” recusa tantas vezes a criatividade, e é por isso que a “evidência” se faz, concomitantemente, do já esperado, os melhores estudos são os que dizem o que já sabemos, a ciência é omnisciente na sua atitude totalitária, para além disso só o Espírito, e este é ciência por desvelar. Então, para tudo ordenarmos, mais uma vez, convenhamos que Razão e empirismo devem, como sempre aconteceu, caminhar conjuntamente, num “paralelismo” monista, se bem que a linha da Consciência é quase sempre a dádiva da Cultura, e o intento de recuperar sacrificialmente a nudez do “Corpo”, da Imediaticidade, mas, Aqui, morre a consciência, já sabemos que não há Razão pura (Kant), portanto vivemos da negociação perpétua, ou da “indiferença” (Cioran), mas isto é recuperar a “dor”, a dúvida”, o desespero, e a doença mortífera é suprimi-la com o Princípio nadificador, daí que continuemos a versar pela leve “dor”, uma que não mate, a morte é o ponto onde a doença da vida recua plenamente, abnega totalmente, o Fim e o Princípio são a mesma coisa, e o paradoxo é a “dor” da sua compreensibilidade, os limites são, assim, (des)polarização absoluta, veja-se como, até aqui, os contrários embatem e se repelem, a despolarização total é uma repolarização, como na vida, e a “indiferença” é o PH equilibrado, já o relativismo total é polarizador, quando é que uma coisa é de tal modo “outra” que passa a ser “definitivamente” a “outra”? Bem vemos que o Corpo é dialéctica, é dor, é transformação, é apetência pela resolução sempre instável e nunca totalizadora, e o seu Centro Superior inclui qualquer coisa da SuperConsciência instrutora. Que o corpo fale mais do que o Espírito, já dissemos que nem isto garante nada, pode até ser que o Espírito condene o Corpo, também já dissemos que o “antes” é (re)construído no Agora, e este é Espírito, onde, aliás, cabe toda a Realidade, ora, isto é pragmatismo ainda assim, o plano consciente de um “ser” onde, aliás, cabem muitos outros, que isto submeta o corpo do paciente é o risco de toda a intervenção, também o paciente nos (re)constrói, e fá-lo sempre reinventando o pretérito, que é, igualmente, o que faz cada instante de Consciência colectiva, até ao in-momento de Re-solução cabal, o Julgamento crístico que nunca pôde subtrair-se à dor do “pecado original”. Claro está que a transformação “perfeita” volta a sofrer a amnésia, do passado e do futuro, no presente, que é construirmo-nos sem sentimento de culpa; quando já não tivermos vergonha de Sermos, já não existe “ser”, apenas a própria transformação, mas, aqui, desembocamos, mais uma vez, na Fenomenalidade da Vida, despreocupação, “Otium”, a partir do qual vamos querer voltar para nos reproduzirmos em mais uma “queda”, na qual estaremos, já, pensando em elevar-nos, quiçá, para novel plano multiversal, ou talvez nos surpreendamos com um Logos diferencial onde a imprevisibilidade dará lastro à dúvida reconstrutora de ciência e religiões, qualquer coisa adaptada ao novo modo de “pensar”, isto para não usar outro termo, não vá eu próprio deixar de ser pragmático, que é o risco de qualquer texto ou abordagem.
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A “indiferença” terapêutica poderia representar o célebre “meio-termo” aristotélico, mas cada um o visará de acordo com o lugar que ocupa na cadeia de escalas, na escada da Consciência, e, segundo os lugares, atemos, identicamente, diferentes linguagens, vários paradigmas. Não surpreenderá que a “clínica” tente, de alguma forma, fugir disto tudo, buscando uma limitada “razão prática”, para a qual converge uma “deôntica” com alguma aceitação do Colectivo. O equilíbrio entre “Deôntica” e “utilitarismo” não escapa à “Clínica”, que, não obstante, metodologicamente é “imoral”. Acresce-se, correntemente, a ética à “Clínica” como coisa “estranha”, esquecemos, inclusive, que a ética perfeita remete para a omnisciência, que o mesmo é dizer que a ética médica serve, muitas vezes, apenas para aligeirar consciências, responsabilidades e processos. Mas se é verdade que a Ética perfeita é igualmente imoral, o trabalho terapêutico não pode ser inteiramente despido de imoralidades. Por vezes, sentimos, até, que o erro é a regra, a “moral” é, tão-só, para amortizar a Culpa, e, estando esta extinta, poderíamos, quiçá, reinventar, de vez, o nosso paciente. Culposamente, bastamo-nos na defesa, inculposamente, seremos Unidade sem mácula. Que a vida é ir acumulando um saldo (i)moral, e mesmo a nossa passividade não garante nada, podemos pecar involuntariamente, onde quer que nos coloquemos há sempre algo a aprontar, a indiferença também pode macular, e talvez essa seja mais o destino do que o trajecto, e neste há de tudo, se formos muito passivos, pode, quiçá, ser o paciente a tratar-nos, se há Condição há sempre algum lugar a partir do qual nos portamos ao comportamento moral, e é também a partir daí que vamos justificando-nos, função da Culpa, todos estariam perdoados, e há sempre razão onde há Realidade, o que expressa o movimento relacional é a carestia de auto-perdão, auto-amor. Assim, perante o Incognoscível, padecemos, somente, de nos posicionarmos algures numa Escala de Consciência, e também perante o primeiro, pode ser que não faça qualquer diferença estar onde estamos, e, não obstante, também padecemos de nos mobilizarmos para um “estado” que permita o menor atrito possível com o exterior. O “exterior” absoluto é a meta, até lá seremos determinados pela culpa, pela “razão neurótica”, a assumir um papel de “livre-arbítrio” lentamente recuperável.
A “Clínica” é, ainda assim, o que mais garantidamente podemos dar ao paciente. Quando o pragmatismo “local” se quer empregar numa transformação mais profunda, aqui, sim, cria-se um risco, daí que, muitas vezes, haja quem se limite a medicar(-se), deixando para o destino, para a vida, o jogo do vaivém “terapêutico”, e neste todos são terapeutas na mesma medida em que todos somos neuróticos. Trabalhar para o equilíbrio é o grande Objecto, mas o “meio termo” de cada um difere idiossincraticamente, se o terapeuta quiser fazer, num dado momento, um movimento plenamente pensado para um Colectivo algorítmico, mesmo aqui, tudo dependerá do (in)sofrer de cada um, a resultante é o conjunto “final”?, é o tempo que nos resta?, incluirá toda a mácula do passado?, ou limitar-nos-emos a remir no “outro” a mácula que nos consome? Pagas as dívidas “morais”, haverá algum futuro?, o empirismo perfeito é o alvo de muitos terapeutas que se pretendem “objectivos”, faremos disso parte do trajecto e despedimo-nos do resto?, ou faremos disso o alvo inicial, para que outros tratem das manifestações “locais”? Nem o Algoritmo seria justo para com o passado se quiséssemos que ele sanasse o tempo que nos resta, e o Absurdo não seria tão absurdo que permitisse dar aos mesmos de sempre as mesmas quotas morais, o tempo poderia vir para dar ao Princípio todas as possibilidades mal reinantes, mas isto é o que diz a minha própria convicção, e esta é, apenas, a idiossincrasia do momento, poderia, até, acontecer que ela se deleitasse com o tracto de uma terapia, mas terapeuta e paciente não serão uma espécie de minoria face ao Colectivo nesciente? Quanto pode durar o efeito de um tratamento se esse Colectivo, ou o meio, não ajuda? E haveremos de começar por onde?
O terapeuta “algoritmo” teria de fazer magia, antecipando o momento que a Consequência produziria, de resto, qualquer transformação abrupta parecerá fazer demasiadas vítimas, seria preciso compensar tudo com o tempo restante, mas isso não tira a cada um o Sentido da sua Justiça, que, aliás, se justifica sempre, mas parecerá mais ou menos “culpada” no acordo com a Razão dominante. E é nesse contexto que o “culpado” será crescentemente convidado a “tratar-se”, irónico que possa formar com o terapeuta uma espécie de bloco resistente. Mas a “resistência” maior é quase sempre hipermoral, e esta nem sempre é digna da “moral” idiossincrática, que, logicamente, conhecerá, sempre, de algum modo, o peso da “desigualdade”. Aquém do “Arché”, deixamos que o futuro seja muitas vezes irresponsável face ao Pretérito. Também o Cristianismo quis fazer “tábua rasa” do seu produto “secular”, e isto é, apesar de tudo, a Ordem da “Razão prática”, o pragmatismo que, no limite, coloca a Deôntica ao serviço do consequencialismo. La Palice diria, quiçá, que os Princípios precisam dos Fins, mas, antes de defendermos que “a função faz o órgão”, talvez devêssemos lembrar que é o órgão, a Postura, que permite a função, ou será, talvez, como o ovo e a galinha, até aqui se engendra a circularidade Espírito-matéria, o paradoxo da Consciência, a bipolaridade morte-vida, e também se engendra o “bom senso” científico que, ademais, se reproduziria pedindo, muitas vezes, socorro à “Physis”, a mesma que o mesmo “bom senso” constrói na sua prestação Consciente. A batalha incansável Espírito-corpo é uma guerra de conquista da primazia que a Filosofia nunca pôde resolver; ou talvez não haja nada a resolver, porque a Consciência de cada um possui a palavra final, como no suposto Algoritmo, nem importa que sejamos “máquinas”, pode ser até que a máquina ganhe “alma”, para isso basta parecer, não é preciso ser, porque essa “alma” está, não obstante, na validação externa, noutra alma talvez, e o “externo” é tudo o que requeremos, mesmo que para isso tenhamos de esquecer que nos transformamos constantemente e à custa dessa empiricidade. A empiricidade da máquina, o futuro, poderia ser assim, desprovida de Culpa, apagando sucessivamente o passado “imediato” à medida que caminharia no trajecto que, entretanto, também deixaria de ter um destino “consciente”, o que, para todos os efeitos, é o que já acontece com o Homem inculpado, que tão feliz é que se vai borrifando para tudo, e ainda comete o deslize de não querer progredir, tragédia do “Espírito”, mas real Objecto de todos e do Tudo, não ter para onde ir e estar sempre em casa onde quer que estejamos, e isto é um pequeno recuo face à dor, à dúvida, é a vida de harmonia, onde nos esquecemos e onde tantos dizem estar, numa Luz qualquer que não alimenta nada senão a ilusão de uns poucos. Indiferenças há muitas, placebos ajudam, massagens, festas e “Wellness” sempre nos podem reconciliar com o corpo, mas podem, igualmente, alienar, desviar-nos do caminho, quiçá nos encontrássemos de vez.
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A Função maior será, então, o Princípio da Realidade, face ao qual nem todas as posturas resultam, por mais que um Sujeito esteja “resolvido”, pode sempre expressar-se uma ameaça “vitalista”, sim, é verdade que não há posturas perfeitas, mas pode pagar-se um preço muito caro por não satisfazermos minimamente as condições da “empiricidade”, e nem sempre o terapeuta ajuda neste processo, o seu “pathos”, a sua “pena”, pode fazer olvidar a Função em nome da Postura, mas se a Postura não serve a função não pode haver futuro, aliás, a função brota naturalmente da Postura, e para isso converge a necessidade de inibir todo aquele excesso “dogmático”, anamnésico, que a “Cadeia muscular posterior” simboliza. Daí que a “flexibilidade” corresponda a maior tolerância, dentro da qual o “Ser” se pode exprimir livremente, eticamente.
Manda a dinâmica “normal” dominante-dominado que a “Physis” iniciática permaneça francamente inalterável, é indiscutível que é nela que buscamos a Razão moral, colocando no devir as condições de gerência do livre-arbítrio, que, como já dissemos, requerem do apoio da Realidade. É assim que a própria dualidade se vai perpetuando e adivinhando, em torno de um eixo que poderia ser o do ráquis, crescendo na aproximação de Postura e função, músculos posturais e musculatura fásica, Reeducação Postural e Pilates, com o movimento expressando um tempo que se vai lentificando progressivamente, multiversalmente.
De resto, cada ínfima postura do grande movimento funcional expressa a dualidade “Postura vs. Função”, o paradoxo heraclitiano renasce em cada mínima posição, o risco recua à Postura e esta ajusta-se ao movimento, que os métodos constantemente se contorçam e relativizem é o destino de uma intervenção dialéctica, se a postura é rígida também o risco acelera, porque o movimento se regidifica também, há, portanto, dança permanente, “pathos” concorrente terapeuta-paciente, equilíbrio conquistado em fluxo (des)siderante.
É nesta dança que o terapeuta projecta comummente para o passado a deriva do Presente, na realidade, a Psicanálise é, “per se”, neuroticizadora, no seu quase delírio perde de vista o efeito do adquirido tangencial, mas este é o “sentido vital”, daí que o método dogmatize, e seja, ele mesmo, defesa, substituindo-se, acaso, à moral, mas, como já sabemos, a hipermoralidade é outra defesa usual, assim como a busca “meditativa” da transcendência, que não pode ser obtida precisamente porque é desejada, a Salvação não se deseja, a transcendência é o equilíbrio permutado, “desiludido”, a dor, a dúvida, está mais perto do Equilíbrio, quando o “pathos” não é, ainda, doença, e desfere o golpe da indiferença, esta é a inibição da escolha, a facilitação do movimento pelo alongar do próprio “Ego cogitum” (Descartes, Husserl), a maior “redução fenomenológica” advém de tornar o Sujeito maior face ao Objecto que (o) inclui, quando o Objecto magoa até o “Ser” empírico poderá ter de “recuar”, de retrair a cadeia muscular espiritual, egóica, e a compensação nutre a retracção, facilita-a, e obstrui-se, quiçá, a harmonia da “Physis”, que é estarmos nos “termos” correctos, provavelmente não muito para além do “Arché”, é a consciência “culposa” que exprime o movimento forçoso e a busca da defesa anamnésica, “posterior”, claro que isto não mata o “Ego cogitum”, nem o “objecto” racional, mas turba, acaso, a perspectiva, mobiliza o Sujeito na Escala de Realidades, e estas são outros Sujeitos, outras “posturas”.
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Cada postura configura uma i-razão aplicando-se praxicamente na Realidade, na medida em que duvida desta, consigna uma “Razão prática” submetendo-se à moralidade do Colectivo, e isso só faz sentido quando a Razão se pretende maior do que outras, quando nos enfocamos num Universal, que é acreditar que há um Superior, ora, a ilusão de que a liberdade é alcançável é condição do exercitar dessa mesma liberdade, doutro modo, a liberdade é “relativa” e cada razão será “númeno” transformado em “fenómeno”, porque o Númeno não É, existe, apenas, como Ser compensando o Ego. Desta forma, a Razão não é um irracional desvelado, ou talvez tudo seja I-Razão, um Colectivo mental, onde cada instante adequa uma relação diferente, um desequilíbrio distinto, entre o Sujeito repleto de desejo e o Objecto impassível e impossível de ser atingido sem que o Sujeito se perca, sem que ele se torne, pela “práxis”, noutra coisa, que, ainda assim, não sendo livre, é Colectivo maior, principesco, onde a Razão prática é Uno. E a partir deste, cada i-razão enfuna por um conjunto mor de desequilíbrios, e cada um deles é uma tentativa de racionalização, unificação, do Ego, que não deixa de buscar em “Si” a segurança com que abalará o Princípio, no viés da insegurança do avanço, que, às tantas, é recuo, busca do “mesmo”, já não mesmo, porque o Agora sempre se redesenha, cada in-momento se perde continuamente para um Objecto que se recusa a sujeitar-se e logo o faz na medida do desafio do Ego. A circularidade é a dualidade do “eterno retorno”, a posição moral é a compensação, quiçá Estrutura, ameaça de Nada, de Equilíbrio, e o desequilíbrio é a certificação constante de que quanto mais o Sujeito quer ser Objecto menos Sujeito existe. Perante isto, a Culpa é dor, e tanto faz que o saibamos, não existe modo absoluto de nos estancarmos, estamos “condenados a ser livres”, e somos sempre no Fenómeno enquanto “coisa em si”, e cada um difere de Sujeito para Sujeito, em cada um destes existe uma relação dissemelhante com o Objecto, uma aproximação maior ou menor deste, e esta multiplicidade nutre o Sistema, é a sua Energia, onde cada um desempenha um papel, e outro papel seria se o Ego do outro fosse outra coisa, que nós não somos nada, limitamo-nos a compensar-nos, a maior determinação implicaria uma “liberdade”, ou uma crença nela, que é olvidar, quiçá, que a mesma seja “relativa”, condição da acção heurística, num mundo onde a heuristicidade absoluta não existe, não impedindo isto a “Razão prática”, a mesma que difere e retorna à “massa”, à cadeia do Colectivo racional tornada Realidade, para que esta seja transtornada pela necessidade de cada um.
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Se o poder (Adler) concorre para Eros (Freud), também o indivíduo trabalha para converter os que ladeiam na sua Razão dominante pragmatizada, e isto pacifica a sinergia muscular, lentificando a corrida, e já o outro Domínio reage para recuperar o seu “poder” compensatório, é porque há peleja que cada compensação medra num “Fenómeno” que parecia, assaz, “coisa em si”, a dualidade é, ainda assim, quase previsível, e a sua linha quer crescer espiritualmente, comutando o tempo, substituindo-o por mera verticalidade ética, para além de bem e mal. Uma postura ideal dilui as forças, fazendo serenar a dualidade epistémica, a “diferença”, por conseguinte, é a proa da transformação, mas ela requer da outra força, dos que se convertem, estes são os “duais” por natureza, e eles decidem acerca da Razão dominante aferindo-lhe o peso da Realidade. O Sistema novel é “moral”, o que transforma moraliza. A conversão “dual” é o peso da Razão prática, o jogo é a Razão “moral” evoluindo para uma Ética que a esgota, suprime, compensa, e esta é a “Physis” maior, imoral, inocente, libidinal, incestuosa.
A Postura forçada torna o Pilates forçoso e vice-versa, este caminho nutre o paralelismo de forças, a polaridade. A aproximação polar é o espaço de Eros, a acalmia do Sistema, e, no entanto, existe, aqui, mais uma vez, a ameaça de destruição incestuosa, daí que a polaridade volte a ser cevada para alavancar a “vida” do Sistema, a fenomenologia dual, sem a qual a própria morte não faz sentido. “Viver é sofrer”, bem sabemos, e o algoritmo Insofrimento + vida é, também ele, instável, de algum modo mesmo a Higiene postural é bem intencionada, porque pretende prescrever um Equilíbrio (dominante), cominação do Igual, perante o qual a Idiossincrasia é torta, heresiarca, patriarca de um novo propósito higiénico capaz de burilar um “Domus” que, de qualquer forma, inclui todas as possibilidades vindouras, todos os desvios, todos os intuitos de regressão, e de assunção de um Equilíbrio maior, prenúncio de “Coisa em si”, prestes a desvelar-se fenómeno inescapável, passado constantemente reconstruído na relação irrecuperável com o tempo psicotizante.
Que o terapeuta se coloque frequentemente na zona de dúvida não espanta, e é lá que ele possui amorosamente o paciente, matando a moral, mas ofendendo, porventura, a “higiene”, há, claro, o risco de trair o Princípio clínico da Realidade, e sabê-lo é duvidar, mais uma vez, vogar entre “posturas”, lugar do “pathos” terapêutico, não admira que tudo pareça ser e não ser, e isto ofende, mais uma vez, a “higiene”, o “curto prazo” nomotético. O terapeuta pretende, bastas vezes, substituir-se ao “Domus” nomotético e pode ser que, arriscando o Todo, se desvie constantemente para o lugar da “minoria”, é esta a sua “maiorização” compensatória. Mas isto não faz olvidar a sua própria dualidade estruturadora, a sua missão de Síntese.
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