Porquê (re)ler o prefácio de “A Volta no Parafuso” de Henry James?

O leitor dado ao prazer imediato poderá desprezar a leitura de um prefácio. Julga-o uma introdução desnecessária; um embaraço ao seu envolvimento com o enredo. Mas as histórias começam num momento posterior e exterior ao seu início propriamente dito e, neste sentido, a leitura do prefácio de “A Volta no Parafuso” é condição necessária para a compreensão das dinâmicas intrínsecas à sua narração. O leitor que o despreze desconhecerá, pois, a sua complexidade narrativa. Isto porque esta não se trata somente uma inquietante história de fantasmas da época vitoriana. Trata-se, acima de tudo, de uma história sobre mecanismos de leitura; sobre efeitos que os livros – ou os seus narradores – prometem.

O prefácio de “A Volta no Parafuso” surge como uma antecâmara: pede ao leitor que retire os seus sapatos, que pendure o casaco e que se familiarize com a obra que tem em mãos. Corresponde a um espaço de receção e, simultaneamente, a um exercício de contextualização espacial e temporal da narrativa. Afinal, uma leitura interessada implica situar a história e conhecer o seu processo de transmissão.

Num primeiro momento, o prefácio revela como este romance remete para a situação tradicional de storytelling. É numa mansão vitoriana à noite, num círculo à volta da lareira, que “A Volta no Parafuso” é contada: “A história mantivera-nos, junto ao fogo (…) numa casa antiga exatamente como aquela que nos reunira”. Note-se como a relação entre a história e o espaço em que é contada é, aqui, potencialmente significativa. Se à data da leitura do prefácio é possível que se desconheça (ainda) o enredo, a proximidade com o fogo, elemento destruidor, surge já como um prenúncio de destruição. Mas mais do que localizar espacialmente a história, o papel destas páginas iniciais é o de clarificar a sua transmissão no tempo. Isto porque aquilo que chega assinado por Henry James é, na verdade, o resultado de uma complexa cadeia de narradores. E o prefácio tem uma função de esclarecimento destas figuras e das dinâmicas entre si.

Numa primeira instância, é apresentado o narrador que fala na primeira pessoa: o “eu”. Esta figura aproxima-se de James e tem relativa autoridade sobre a forma como os factos são apresentados. Desvincula-se da sequência de histórias contadas à lareira e concentra-se naquilo que lhe interessa mais: a reação de Douglas a uma dessas histórias (“Foi essa observação que suscitou de Douglas – não imediatamente, mas mais tarde nessa noite – uma resposta que teve a consequência interessante para a qual chamo à atenção.”) Antes de mais, é pertinente que se esclareça a resposta que aqui se refere. É na sequência do relato de um “caso em que uma dessas visões acontecera a uma criança” que Douglas conta a “A Volta no Parafuso” [1]. A sua resposta corresponde, portanto, à história deste romance. À promessa de algo mais terrível e retorcido do que aquilo que fora contado anteriormente.

Ora, o interesse do narrador pela reação de Douglas prende em si uma singularização desta personagem e, simultaneamente, uma transferência da ‘responsabilidade’[2] de narração. Para pensar este conceito de ‘transferência’ é necessário reconhecer que a história não está diretamente relacionada consigo. Este primeiro narrador surge à semelhança das restantes personagens reunidas à volta da lareira: “tendo eu [narrador] percebido que ele não estava a segui-la e tomado isso por um sinal de que ele próprio iria desencantar algo e que nós [ouvintes] só tínhamos de esperar”. É a utilização da primeira pessoa e a sua inclusão enquanto personagem que sugere este distanciamento em relação à história e uma permeabilidade aos seus efeitos narrativos. Significa isto que a sua relevância enquanto narrador não reside inteiramente no ato de narrar. Pelo contrário, reside também na seleção que faz de um outro narrador – um segundo elemento da cadeia de narradores. E esse outro, essa alteridade a quem é transferida a responsabilidade da narração, é Douglas.

A figura de Douglas foi já introduzida e dispensa, por isso, uma apresentação. Ainda assim, é relevante analisar a sua relação com a “Volta no Parafuso”. À semelhança do primeiro narrador, Douglas não é parte integrante da história. Atente-se o seguinte excerto que o confirma:

Depois perguntei-lhe se a experiência em questão fora com ele, ao que prontamente me respondeu:

— Oh não, graças a Deus!

— E o relato é seu? Foi você que o escreveu?

— Não, só a impressão que me causou é que está aqui escrita – bateu no peito. Nunca a perdi.

Apesar da confirmação de que não se trata da sua experiência, está implícita uma proximidade com a história. Mas como poderá Douglas estar próximo de algo que não experienciou? É através do relato/narração de terceiros – aqueles que de facto o experienciaram – que esta relação de proximidade se tece. O prefácio revela que Douglas conhecia a personagem feminina de “A Volta no Parafuso” (“Era a perceptora da minha irmã – disse calmamente – Era a mulher mais competente a afável que já conheci”.) Sublinhe-se como o conhecimento desta personagem o coloca numa situação de intermediário na cadeia de narradores. Como quem passa um testemunho, Douglas opera uma mediação entre Henry James e a mulher que viu (?)[3] estas aparições fantasmagóricas.

A utilização do termo ‘testemunho’ é ponderada: vem ao encontro de uma materialidade inerente à transmissão entre os narradores. Ainda que a circulação da história remeta para a tradição oral, há num suporte escrito material que a apoia. Antes da sua morte, a perceptora entrega a Douglas as páginas do seu relato. Estavam escritas “numa tinta velha, esmaecida, e com a mais bela das caligrafias”. Por sua vez, também Douglas, antes da sua morte – “quando a previa já” – confia o seu manuscrito ao primeiro narrador. “A Volta no Parafuso” é uma transcrição exata do texto de Douglas. É a passagem do testemunho que esclarece a relevância da análise desta sucessão narrativa. Não está em causa a autoridade e a credibilidade do narrador, mas a sua urgência de assegurar a continuidade da história, passando-a de mão em mão.

Esta urgência de partilha e continuidade está intrinsecamente ligada aos efeitos. As histórias surgem em resposta ao que fica gravado no peito. A apatia não é, pois, desejável no processo narrativo-literário: primeiro sente-se; depois escreve-se. E escreve-se para que o próximo o sinta também. Os três narradores [anteriormente identificados] transmitem esta história exatamente porque ela produz um efeito e porque esse resiste à sua transmissão. Mas de que se trata este efeito? A que se refere o narrador quando escreve: “com um efeito impressionante, começou a ler ao nosso pequeno círculo silencioso”?

Uma primeira análise revelará como o efeito que aqui se refere corresponde a uma espécie de inquietação. Esta deve-se – pelo menos em parte – ao mistério e à ambiguidade contidos na própria narrativa. De facto, a indeterminação da existência (ou não) de fantasmas parece ser mais significativa para a produção de efeito do que a confirmação da sua existência. A incerteza é fonte de um caos desordenado; de uma curiosidade inquietante que envolve o leitor até que encontre respostas. Mas na “Volta no Parafuso” não há respostas concretas. Perdura a ambiguidade e, neste sentido, o leitor terá de ser sensível ao seu segredo.

A par da inquietação que deriva da narrativa há também aquela associada ao seu adiamento. É apenas na quarta noite que Douglas começa a contar a história. Até então, procura conquistar o interesse do seu auditório e atiçar[4] a sua curiosidade (“Amanhã saberão o que ela soube” e “Logo se verá, não me quero adiantar”). Promete uma história fantasticamente terrível sob uma única condição: teriam de esperar para que a pudessem ouvir. O adiamento surge como um mecanismo de seleção do auditório. Há aqueles para quem a espera fomenta o interesse e aqueles que, por outro lado, não estão dispostos a esperar: “Oh, não posso esperar pela história!” Anseiam entregar-se de imediato às emoções terríveis outrora prometidas. “Mas isso apenas fez com que o seu pequeno auditório final fosse mais compacto e selecto, e se mantivesse, junto à lareira, preso a uma excitação comum.”

Pensar estas “emoções terríveis” conduz novamente à reflexão sobre os efeitos. Mais do que uma inquietação, esta história provoca no seu leitor um terror profundo. E de onde deriva este terror? O vínculo entre a dimensão fantasmagórica e a infância afigura-se, desde logo, como a receita para um arrepio. É na dicotomia entre a assombração e a inocência que a história assume os seus contornos terroríficos.

Para além disso, também a cadeia narrativa parece ser um ingrediente para o terror. Há uma reprodução contínua do ato de narração através de três narradores. Todos eles estão mortos e, ainda assim, a história e os seus efeitos permanecem vivos. Em “Obra Aberta”, Umberto Eco sugere a morte do autor como uma continuidade da obra. Esta associação entre texto órfão e a sua continuidade é útil à compreensão deste romance. Mas não será a morte do autor narrador também uma forma de potenciar o terror? Aquando da impossibilidade de formular respostas satisfatórias, segue-se um esboço de possíveis hipóteses:

  1. A morte do narrador significa que este não poderá reclamar a sua história. Àquilo que conta, poderão ser acrescentadas interpretações crescentemente terríveis que nunca serão corrigidas.
  2. Ouvir/ler a narração de alguém que se sabe já morto poderá contribuir para a terrível dimensão fantasmagórica da narrativa.

Note-se como a reflexão tecida sobre o terror não tem um teor exclusivamente subjetivo. Ao longo do prefácio, o auditório de Douglas revela progressivamente aquilo que lhe interessa numa história (“Naturalmente que várias vozes declararam que isso conferia à história o mais precioso valor.”) Este círculo de pessoas à lareira deseja envolver-se num horrível processo de destruição. Porque há um prazer que daí advém. Este processo torna-se especialmente prazeroso porque não os envolve diretamente. Trata-se, pois, de um fascínio voyeurista; de um interesse do leitor pelo “delicioso” sofrimento do outro. E este fascínio terá tanto mais intenso e prazeroso quanto maior for esse sofrimento.

Foi já referido que esta história é a resposta a uma «história sobre a aparição de um fantasma a uma criança. Mas se “a criança dá um efeito mais retorcido, como um parafuso a que se desse mais uma volta”, a inclusão de duas crianças nesta história dá-lhe um efeito ainda mais terrível: “Dizemos claro – exclamou alguém –, que são duas voltas! E também que queremos saber o que lhes aconteceu.” O parafuso surge, aqui, como uma metáfora para a intensificação do efeito. É mais ou menos apertado consoante os ingredientes da narrativa. Torna-se evidente que o título “A Volta no Parafuso” não é exterior ao universo da narração. Esta interioridade reside na sua indissociabilidade aos efeitos da narrativa. Isto significa que o título não só deriva destes, como os determina: como uma espécie de condicionamento inicial da leitura.

Diferentes títulos para a mesma história conduzirão, portanto, a leituras múltiplas e distintas. Por isso, é relevante analisar de que forma diferentes línguas respondem à problemática da adaptação dos títulos. Em italiano, por exemplo, o título para este romance é “Giro de Vite”. A palavra “vite” significa parafuso e corresponde ao plural de “vita” (vida). Neste sentido, “Giro de Vite” parece sugerir um efeito concreto no leitor – um rodopiar da sua vida. Mas a problemática do título transcende a temática da tradução e manifesta-se – inclusive é – no seio da mesma língua. Em português, o romance surge, por vezes, sob o título “Calafrio”. É um título (eventualmente) mais desviado, mas, ainda assim, contido na narrativa e elaborado ao longo prefácio: “Não era um cenário de dar calafrios, mas oh!” Cada um destes títulos evidencia um efeito ou um aspeto narrativo particular. Mas quem decidiu intitular este romance de “A Volta no Parafuso”? Ainda que comummente associado àquele que ‘detém autoridade’ sobre a história, este título é discutido entre as suas personagens no interior do prefácio:

— “Qual é o título que lhe dá?

— Não tenho nenhum.

— Oh, eu tenho – interpus. Douglas, porém, sem me prestar atenção, já começava a ler com uma voz clara e distinta, que aos nossos ouvidos transmitis a beleza da caligrafia da sua autora.”

O leitor que despreze a leitura desde prefácio desconhecerá a obra de tal forma que até o título surgirá como um enigma. O prefácio abre portas à descodificação do romance. E assim como a história que Douglas conta necessita de algumas palavras introdutórias para uma verdadeira compreensão, também este romance o necessita. Mais do que uma espera ou um adiamento, estas páginas são tempo de preparação do leitor. Pois que este ensaio sirva também para atiçar a sua curiosidade e fomentar a sua aptidão de leitura. Que sirva de convite à (re)leitura deste prefácio e de todos os outros outrora desprezados.

Notas:

  1. A referência ao título do romance surge, aqui, apenas para efeitos de simplificação e de esclarecimento da história contada por Douglas. A leitura do prefácio revelará que a personagem não intitula a história: “Qual é o título que lhe dá? Não tenho nenhum.” O título “A volta no parafuso” surge a posteriori da sua narração, ainda que nela esteja contido. Uma reflexão mais elaborada sobre o título encontrar-se-á adiante.
  2. O termo ‘responsabilidade’ poderá ser problematizado. A sua intenção não é conotar a narração com um sentimento de obrigatoriedade, mas remeter para o compromisso/pacto inerente à relação narrador-leitor.
  3. Mas viu mesmo? Serão os fantasmas reais? A ambiguidade da obra reside essencialmente na temática dos fantasmas e da sua (in)existência. (?) surge como símbolo do que permanece uma incógnita.
  4. As entradas de dicionário sugerem diferentes possibilidades de significação para ‘atiçar’: (1) Atear ou incitar o fogo; (2) Estimular ou incentivar; (3) Afrontar ou assanhar; enfurecer. No ato de “atiçar a curiosidade do leitor” reside uma dualidade de significação. Isto porque, durante a sua narração, Douglas está a estimular o seu auditório e, simultaneamente, a atear a fogueira: “Voltou-se para o fogo, pontapeou um tronco” e “atiçou de novo o fogo”. Está em causa a associação da arte de contar/ouvir histórias a algo que arde. A história é contada e perdura enquanto houver algo para arder. O fim do fogo é, consequentemente, o fim da história.