Sobre os ensaios reunidos em A cidade e o arquiteto, referentes às ideias encontradas na vasta obra de Leonardo Benevolo (1923-2017), arquiteto e historiador de arquitetura.
Texto de Laura Carvalho Torres. Revisão de João N.S. Almeida. https://www.wook.pt/livro/a-cidade-e-o-arquitecto-leonardo-benevolo/188374.
BENEVOLO, Leonardo, «A cidade». In: BENEVOLO, Leonardo. A cidade e o arquiteto. Lisboa: Edições 70, 2017, pp. 13-84. 1a edição: 1984. 144 pp. Título original: La Cittá e l’Architetto. Tradução: Rui Eduardo Santana Brito.
Os ensaios reunidos em A cidade e o arquiteto são referentes às ideias encontradas na vasta obra de Leonardo Benevolo (1923-2017). Arquiteto e historiador de arquitetura, estudou em Roma, licenciando-se em 1943. Este conjunto de textos apresenta uma série de problemas que surgem a todos os estudiosos de arquitetura, onde «num vértice está o arquiteto, esforçando-se por não renunciar a um estudo e a um projeto unitário do ambiente físico onde se desenvolve a vida de todos os outros; daí partem muitas linhas de ligação a uma quantidade de problemas distribuídos pelos horizontes da cultura e da vida de hoje.»1. A forma como distribui os ensaios vai de encontro à resolução do mapa de problemas que apresenta. Procura, então, analisar a noção de cidade enquanto cenário físico da vida humana e como corpo social, o desenvolvimento da cidade moderna, fazendo uma reflexão e questionando-se sobre a beleza da mesma, e, por fim, pondera sobre a conservação das cidades antigas.
Esta obra faz uma análise alargada de conceitos relacionados com a história da arquitetura, e permite a compreensão dos mesmos, em diferentes contextos culturais e geográficos. Uma reflexão do maior interesse acerca do visionamento da cidade enquanto documento histórico, por parte de Benevolo, passa pelo assinalar da diferença entre a cidade enquanto cenário físico e corpo social: mesmo que a população desapareça, as evidencias físicas permanecem, as quais correspondem à organização social contendo as mais
preciosas informações sobre a sociedade em causa, permitindo estudá-las. Isto assemelha-se à analogia que Jouvet fez em relação à arquitetura como o «grande corpo vivo de um mistério passado.»2 . Há, por parte de Benevolo, uma compreensão da cidade enquanto organismo vivo, ainda que o mesmo afirme que nem sempre a cidade e a sociedade andem de mão dada, pois só funcionam em épocas felizes e quando há estabilidade suficiente para se suportarem uma à outra. Cidade enquanto conceito e definição é algo variável, tendo em conta as diferentes épocas e períodos históricos pelos quais passa. As duas definições que apresenta são a empírica e a cultural, sendo que a segunda definição, não faz um corte nos setores que constituem a cidade, dividindo a estrutura cultural e social, como a primeira.
É interessante analisar a preocupação do autor para com a questão da pesquisa histórica. Faz um percurso que nos leva do Renascimento, até à cidade moderna. Afirma que devemos ter um raciocínio global, tendo em conta contributos como Cantimori ou Garin, para o qual o Renascimento foi uma quebra no equilíbrio de setores claramente separados. Menciona ainda grandes autores como Burckhardt (1860), Pater (1873), cujas obras de síntese fazem um confronto entre os vários setores, não pondo em dúvida a sua continuidade, separadamente, tal como Huizinga3 que discute as fronteiras não existentes entre setores contíguos.
Benevolo acaba por tomar uma atitude mais partidária, afirmando que a História de Arte e os seus «operadores de memória»4 como resistentes ao estudo arquitetónico. Acredita haver pouco trabalho por parte dos historiadores de arte no que toca à cidade, e os trabalhos que produzem ainda põem em evidência o isolamento de uma abordagem que se pretende plenamente autónoma (a arquitetura). Excetua autores como Francastel e José Augusto França. Benevolo crê em assegurar que os historiadores de arte apenas se preocupam em autonomizar a arte na sua esfera teórica ou numa perspetiva histórica meramente ocidental. Através do seu conceito analítico, a cidade renascentista acaba por libertar o trabalho criativo de um aparelho corporativo, aproximando-o dos órgãos que detém o poderio.
A partir do Renascimento, não é possível chancelar a correspondência entre a cidade e sociedade. Na perspetiva do autor, nasce uma nova definição de cidade, a qual deriva da autonomia concedida à arte: a cidade enquanto conjunto das qualidades formais do ambiente. Relembra-nos das diferentes fases pelas quais esta cidade passa: a cidade ideal, o modelo absoluto de Versailles e a aparente estabilização da mesma com a cidade burguesa. Assim, começa a elencar, definir e caracterizar as cidades provenientes do modelo burguês.
Com a revolução industrial há um desenvolvimento em pleno, mais célere, o qual, procedente do aumento demográfico, habitacional e dos serviços, põe a tónica na problemática da planificação urbana. O caso europeu permite distinguir modelos distintos e sucessivos da cidade. Enuncia a cidade liberal, a pós-liberal, a pós-liberal corrigida, a cidade moderna e, por fim, a cidade pós-liberal recorrigida. Engles vai caracterizar a cidade liberal como produto da paisagem urbana marcada pela condição da classe operária do século XIX, origem da desordem planimétrica. Assim sendo, a pesquisa histórica torna-se inegavelmente fulcral, verificando a cidade enquanto uma estrutura histórica variável no tempo, segundo modalidades sempre variáveis.
O ambiente contemporâneo acaba por ser caracterizado, acima de tudo, pelos efeitos provenientes do desenvolvimento industrial. A cidade industrial difere, em muito, da pré-industrial, principalmente ao nível da aglomeração contínua, sendo que cada transformação vai prever a seguinte e o acentuado contraste cidade-campo. É, no entanto, fulcral analisar os problemas que destas características advêm. Os inconvenientes da industrialização deram origem a duas vertentes: Stuart Mill e Spencer, por um lado, que lamentam a eliminação dos velhos preceitos, recusando-se a acolher os novos regulamentos; Owen, Fourier e Cabet, pelo contrário, levam ao extremo o conceito de gestão planificada.
Benevolo realiza uma distinção do maior interesse entre engenheiros e arquitetos. Denomina os engenheiros como alguém que recebe uma formação base em ciências puras, enquanto que o arquiteto é alguém com «uma liberdade ilusória num campo separado da experiência comum». Há, por parte do autor, uma visão extremamente poética em relação ao arquiteto, enquanto criador de coisas belas e maiores, ainda assim, conduzindo todo este manual de problemas, de uma forma extremamente lógica e racional.
Em relação à cidade pós-liberal corrigida (cidade moderna), caracteriza-se por um avanço moderno da conceção e vivência da, e na, cidade. A sua intervenção chega a uma escala internacional ao nível da Europa central e setentrional, sendo que a Ásia, África e América Latina são «padecentes» de um desenvolvimento desigual: um caráter fragmentário e regressivo, contrariando a europa unitária e progressiva. Mas, ao analisar a cidade moderna, Benevolo abre as portas para uma questão fulminante: A cidade moderna poderá ser bela? Dá como exemplo Piazza Navona, pré-industrial, palco de sucessivas alterações e contributos, todavia consegue atingir um elevado grau de beleza. «O belo é o esplendor da verdade»5, considerando a beleza como um tema crucial e cita Mondrian o qual afirma «a beleza realizada na vida: isto tem de ser mais ou menos possível no futuro.»
De modo a concluir este levantamento heurístico, por parte de Benevolo, concentra-se o foco na conservação da cidade antiga, levantando os problemas a ela adjacentes. Do seu ponto de vista, se o centro for conservado, é a partir dele que se poderá estabilizar a relação entre a população e ambiente. Assim sendo, é possível considerar o centro histórico como algo que foi criado num passado distante e que por vezes é o único elemento intrinsecamente ligado aos aglomerados pré-existentes, fazendo agora parte do núcleo da cidade moderna.
De facto, esta obra pode ser considerada uma base para o estudo não só da cidade, mas também da sua relação para com o Homem, que a habita, e que a constrói. Benevolo, apesar de apresentar uma posição, por vezes, demasiado influenciada pela sua própria profissão, sabe, no geral da obra, apresentar as ideias essenciais para conhecer a pedra basilar que assenta sobre os conceitos de cidade e a sua função no passado, no presente e a sua visão do futuro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENEVOLO, Leonardo, «A cidade». In: BENEVOLO, Leonardo. A cidade e o arquiteto. Lisboa: Edições 70, 2017, pp. 13-84.
MARIANI, Riccardo, A Cidade Moderna: Entre a História e a Cultura, São Paulo, Nobel, Janeiro, 1986
CORBUSIER, Le, Planejamento urbano, São Paulo, Perspetiva, Janeiro, 2000
1 BENEVOLO, Leonardo, «A cidade». In: BENEVOLO, Leonardo. A cidade e o arquiteto. Lisboa: Edições 70, 2017, p. 9
2 JOUVET, Louis, À l’instar de Cuvier, 1933
3 HUIZINGA, Johan, Autumno del Medioevo, 1919
4 SERRÃO, Vítor in Congresso «Dinâmicas do Património Artístico: Circulação, Transformações e Diálogos»
5 Santo Agostinho