Ron Howard, insuspeito autor da tradição hollywoodiana dos melodramas para a família e não só, tem por vocação e por costume privilegiar, em primeiro plano, a lírica cinematográfica e tendencialmente secundarizar algum eventual comentário social que possa estar presente nos conteúdos da narrativa.
Texto de Ana Sérgio. Revisão de Lourenço Duarte.
Ron Howard, insuspeito autor da tradição hollywoodiana dos melodramas para a família e não só, tem por vocação e por costume privilegiar, em primeiro plano, a lírica cinematográfica e tendencialmente secundarizar algum eventual comentário social que possa estar presente nos conteúdos da narrativa. É este o caso em Hillbilly Elegy (2020), baseado numa obra auto-biográfica de 2015 da autoria de J.D. Vance, um natural do Ohio com ligações familiares profundas ao Kentucky rural. O filme causou, estranhamente, alguma polémica, não se percebendo bem porquê: partia, é certo, com uma significativa expectativa quanto à sua qualidade, devido ao sonoro casting de Glenn Close e Amy Adams, além da direcção de Howard, mas acabou por receber uma grande maioria de avaliações negativas, mais por parte dos críticos do que por parte do público. Não é claro, da leitura sistemática dessas críticas, qual seja ou quais sejam exactamente os problemas com o filme: se o falhanço da adaptação do romance – e, nesse caso, de qual leitura em específico do romance – ou se o romance era já, por si só, um falhanço de representação de alguma coisa que se pretenderia ver representada. O que não parece ser, porém, é um falhanço do filme-enquanto-filme, pois essa possibilidade de abordagem teórica, e essa vertente da obra, é, curiosamente, pouco ou nada abordada pelos críticos, conforme tentarei demonstrar. Em primeiro lugar, para não deixar aqui o leitor no escuro, nem a adivinhar de que trata o filme, nem aborrecido de estar a relê-lo quando já o conhece, tentarei sumarizar: o argumento consiste na história de um rapaz de origens rurais, mais tarde um homem, com uma família problemática – mãe divorciada, alcoólica e dependente de drogas – que tenta quebrar esse ciclo da pobreza auto-destrutiva e passar a habitar o meio urbano e próspero, sem no entanto se desligar da sua origem. Essa origem, familiar e cultural, mas não de nascimento, é o Kentucky rural, dos hillbillies, assim como o Ohio das cidades decaídas, pós-industriais; o meio urbano e próspero, por outro lado, é o das universidades Ivy League e das carreiras no empreendedorismo financeiro. Esta recensão tenta deixar bem claras duas coisas: que o filme é perfeitamente decente e cumpre os objectivos a que se propõe, de maneira aliás acima da média; e que a reacção da crítica é absurda, absolutamente desligada da simplicidade e da eficácia do produto dramático que Howard adaptou. Confesso, aliás, que se não tivesse ocorrido esta reacção tão disparatada, o filme talvez não merecesse esta recensão, dado que, como já sublinhei, enquadra-se perfeitamente dentro da tradição em que se insere e nada tem de assim tão particular ou de novo; mas isto serve para lembrar como reações ou comentários estapafúrdios e inócuos podem ajudar a chamar a atenção de um espectador ou de um crítico para a beleza mediana e não apenas para a sublime.
Não tendo lido o livro, assumo, pelo que se diz, que contém uma análise político-cultural mais desenvolvida dos fios narrativos que, no filme, aparecem simplesmente como uma história de florescimento, um romance de formação, de Bildung. O que é verdadeiramente incompreensível é que os dois terços da crítica que resolveu falar muito mal do filme são dois terços que exigiam que o filme contivesse forçosamente uma leitura sócio-cultural-política, e não fosse, simplesmente, o filme de uma tragicomédia alheia a essas considerações; uma história que pode ser abordada – como as histórias até hoje o foram, ao longo de cinco mil anos de tradição que conhecemos da narrativa – sem ligação a essas dimensões filosófico-especulativas muito específicas e, francamente, bastante minoritárias na área do estudo da ficção. É comum, ao analisarem-se histórias, estudarem-se mitologias vastas, de profundidade e amplitude duradoiras; por vezes, entram-se em considerações de ordem psicológica, com a parafernália de instrumentos legados pelo eclodir da disciplina nos finais do séc. XIX; mas parece absolutamente alienígena exigir que essas narrativas abordem não apenas explicitamente as dimensões sócio-económicas, baseadas em teorias sociais recentes, mas também as abordem de determinada maneira, ou seja, exigindo uma leitura prescritiva e correctiva do estado de coisas presente. A ficção não pode ser lida principalmente assim, e muito menos exclusivamente assim; e que essa tal esmagadora maioria da crítica pareça assumir essa obrigação como subentendida será porventura um sintoma significativo de algo.
Na qualidade da narrativa pura, da história pela história, a própria realização, que me parece imensamente bem sucedida, é também atacada pela crítica, estranhamente, como se houvesse uma tóxica dessintonia cultural entre a visão de Howard, apaziguadora, e os intuitos extra-cinematográficos e algo maníacos da crítica: por exemplo, há momentos de tensão latente no filme que são confundidos com desprezo pela exigência de um explícito emocional; há maneiras sequenciais e alternadas de contar a história a partir de quadros temporais diversos, mas encadeados e consequentes, que são confundidas com confusão e ininteligibilidade, quando tal recurso é muitíssimo comum no cinema de Hollywood regular, e nem em Christopher Nolan nem em Quentin Tarantino parecem recolher queixas; e, além disso, até genuína berraria é confundida com caricatura, como se a crítica exigisse, de forma meticulosa e autoritária, que estas personagens ou este tipo de personagens fossem sujeitas a um e apenas um certo tipo de representação em detrimento de outros. Isto poderá provir da tensão dos críticos perante uma realidade saloia com a qual, apesar de não a desconhecerem, se sentem pouco próximos, e assim facilmente confundirem uma coisa com o seu contrário, ou confundirem o seu medo de errarem na representação com a própria coisa representada.
É possível que esteja aqui implícita, neste caldo de perspectivas tão confuso e tão díspar, uma das abissais divisões culturais que dizem dominar a América, mas ficamos sem saber bem qual; afinal, há inúmeras – rural/urbana, conservadora/progressista, nacionalista/internacionalista, entre muitas, mas mesmo muitas, outras. Talvez seja melhor ver esta aparente miopia dos dois terços da crítica como precisamente um sintoma de se achar necessária uma imersão prévia nos pântanos dessas divisões, em vez de se tratar um filme sobre a pobreza e a saída da mesma como uma coisa normal, que o filme é, e a pobreza como a coisa normal que é, e não como um carvão em brasa em que receamos tocar sem que nos seja atribuída algum tipo de mundi-visão política pela qual possamos ser imediatamente responsabilizados.
As actrizes Adams e Close são, francamente, muitíssimo competentes nos seus papéis, como parece ser relativamente unânime entre a crítica e os espectadores; mas, quanto ao actor principal, o aparente carácter morno com que interpreta o protagonista não deve ser confundido com apagamento mas sim como representação cultural correta da mentalidade daquele que decidiu tornar-se bom rapaz; nesse sentido, a sua interpretação está ao nível das actrizes, se não superior. A ideia de que o meio social dos protagonistas não é suficientemente analisado parece também incompreensível; os infortúnios de família e as suas interações com os vizinhos estão perfeitamente postos à vista, embora não sejam analisados sobre nenhum sistema de convicções económicas em particular. Poderá existir, conforme já adiantei a suspeita, um problema de princípio com a aparente moral da história, que está centrada à volta da ética do trabalho e da meritocracia. É, porém, estranho que um princípio que hoje é tão aceite pela generalidade das pessoas seja sujeito a tal saraivada de desconfiança pela classe intelectual, a menos que os tempos estejam a mudar, e podem estar a mudar em dois sentidos: ou a classe intelectual está enormemente desligada das preocupações das pessoas comuns em geral, ou a meritocracia está em desuso, estando a deixar de ser vista como o pior sistema à excepção de todos os outros.
Poderia concluir-se que é um filme normal sobre temas normais que aparece num tempo estranhamente anormal ou num tempo que tende a amplificar visões extremamente anormais, maníacas e minoritárias sobre esses temas. Temas que, aliás, são universais: família, relações pais-filhos, amizades, privações económicas, percursos de vida, etc. É inconcebível que se tenha de pedir a quem quer que seja licença para falar sobre estes temas, e é também inconcebível que uma sociedade liberal que tende ou diz tender para privilegiar a curiosidade intelectual exija uma tão severa pré-determinação de papéis morais às personagens de uma história; e isto passa-se de uma maneira simplória e básica, aparentemente bastante mais preconceituosa do que a mentalidade dos labregos de província que são representados neste e noutros filmes. Há ainda uma terceira questão, além dessa carga sócio-política e dessa exigência de uma pré-determinação moral: é que pode dar-se aqui o caso de estarmos a assistir a um fenómeno de racismo contra a própria raça – isto, partindo do princípio de que a maioria da crítica é branca ou, pelo menos, muito pró-minorias étnicas. Isso explicaria como retratos da pobreza, da exclusão social e de individualismo semi-heróico deste género colham frequentemente elogios quando aplicados a quadros em que figuram minorias étnicas (como em Precious, de 2009, e Moonlight, de 2016), mas recolham toda esta tensão arrepiante e esquisita quando os protagonistas são saloios da raça branca.
Em suma, o filme enquanto filme – e sendo, aliás, uma sólida entrada na obra do realizador, em nada destoando do seu registo habitual e satisfatório – é um excelente filme e merece ser visto por qualquer pessoa com interesse na representação da América rural, feita pelo tradicionalismo de uma Hollywood em registo sóbrio e acessível, sem que se tenha de pôr os óculos da política cultural.