ÀS COISAS QUE NOS FAZEM FELIZES (Gabriele Muccino, 2020)
O cinema italiano não precisa de grandes produções nem de tecnologia de última geração para fazer bons filmes. Não se trata de defeito, mas de virtude. Um bom argumento, bons atores, realização e edição eficientes e, praticamente, está feito.
Dito assim, até parece fácil, porque é essa a ideia com que ficamos, quando assistimos a filmes como ÀS COISAS QUE NOS FAZEM FELIZES (Gabriele Muccino, 2020). Durante cerca de duas horas, acompanhamos 40 anos na vida de quatro amigos, Giulio, Paolo, Ricardo e Gemma, marcada por muitos desencontros e outros tantos encontros. Os episódios da vida íntima surgem enquadrados no contexto social e político que foi modelando a Itália nas últimas quatro décadas, acrescentando valor ao filme.
Mas o que prende mesmo a nossa atenção é a imitação da vida tal como ela é, com conquistas e desilusões; dificuldades e sucessos; expetativas que mudam ao sabor da realidade; encontro com a esperança perdida; questionamento e procura incessante da felicidade, que, mesmo inconsciente, está sempre latente. Se há quadra propícia à reflexão sobre o que nos faz felizes é a natalícia.
Com efeito, o maior mérito da história que nos é apresentada é tornar evidente que o sucesso pode não se traduzir em obter grandes lucros ou posições de destaque, que a felicidade não se contabiliza em valores monetários, que aquilo que é conquistado com persistência e esforço tem mais sabor, que as coisas que nos fazem felizes são, realmente, as mais simples (ainda que seja um lugar-comum) e que é nelas que nos devemos focar, sob pena de vermos a vida passar sem que a tenhamos tornado nossa. E como tudo é cíclico, a última sequência mostra um casal de adolescentes que, à semelhança de tantos outros antes deles, estão a iniciar a sua jornada, para, no final, provavelmente, chegarem à mesma conclusão, ainda que com experiências de vida sempre diferentes.
AS IRMÃS MACALUSO (Emma Dante, 2020)
Não há muitos filmes que provoquem uma comoção tão profunda, tão forte, que perturbem de tal forma o nosso coração, que nos deixam, ao longo de quase todo o filme, num alvoroço de sensações difíceis de domar, como AS IRMÃS MACALUSO (Emma Dante, 2020). Claro que quando o filme termina, ele permanece connosco, reclama a nossa atenção, assombra os nossos pensamentos e faz-nos refletir. Por isso, enquanto escrevo estas singelas linhas, é difícil não me comover novamente. Trata-se, pois, de uma história emocionalmente intensa e exigente e a forma como nos é apresentada revela delicadeza nos pormenores e um cuidado artístico próprios de uma obra de nível superior.
O filme é realizado por Emma Dante, a partir da sua própria encenação para teatro. Como o título nos indica, a história acompanha as cinco irmãs Macaluso na infância, idade adulta e velhice. Até aqui, nada de novo. No entanto, a tragédia que as irá ensombrar confere ao filme uma dimensão humana poderosíssima, numa mescla de culpa, remorso e penitência.
Sonhos desfeitos, vidas desperdiçadas, aprisionadas naquela casa que parece impedi-las de seguir em frente e tentar fazer algo que as realize, ser feliz. Uma casa onde o mais perto que há do paraíso é um quadro na parede e uma pintura no aparador da sala. Aqui também é guardado o serviço de jantar para as ocasiões especiais. Sempre me incomodou este hábito, pelos vistos tão italiano quanto português (ou talvez não se restrinja a nenhuma nacionalidade, talvez seja simplesmente humano), de se guardar as melhores loiças, os melhores talheres, as melhores toalhas, enquanto vemos a vida passar. E esta será umas das principais mensagens do filme, aproveitar tudo, não guardar nada, não esperar pelo que não sabemos que vai acontecer.
Quando vemos Maria, a mais velha das irmãs, no regresso para casa do emprego, executando os mesmos passos de dança de quando era jovem, com a diferença de que, em jovem, permitia-se sonhar, percebemos que a sua vida não foi, de facto, vivida, a mesma dança torna-se num grito de desespero, de libertação. E, por isso, perante a notícia da sua morte anunciada, come vorazmente alguns bolos, como se esse gesto representasse tudo o que não viveu, numa espécie de vingança.
No fim, assistimos ao desmantelamento da casa das irmãs, após a morte da única que nunca a abandonou. Móveis e caixão descem pela mesma janela, a carrinha das mudanças de um lado, o carro funerário do outro, tudo é descartável, incluindo o ser humano.
TRÊS ANDARES (Nanni Moretti, 2021)
Tem-se verificado, no panorama cinematográfico deste dois últimos anos, uma tendência crescente de filmes alavancados por um certo tipo de introspeção que se consubstancia numa reflexão sobre escolhas que se fazem, caminhos que se seguem e de que forma estes influenciam, indelével e irreparavelmente, a vida das personagens.
O novo e comovente filme de Nanni Moretti, TRÊS ANDARES (2021), parece seguir esta tendência (não é por acaso que a expressão “la nostra strada” é repetida no filme, provavelmente para mostrar que “la nostra strada” nem sempre é a mais indicada, que todos nos devemos pôr em causa, pois todos falhamos), e as personagens terão de lidar com as consequências das suas opções, algumas delas marcadas até por uma certa leviandade, acabando por culminar em situações trágicas.
A história segue, ao longo de dez anos, o quotidiano de quatro famílias que habitam o mesmo prédio em Roma, cada uma representando uma diferente fase da vida, facto a que não será alheia a circunstância de haver um adolescente, uma criança e uma bebé recém-nascida no centro de cada uma destas histórias, cada um deles encerrando em si mesmo, todas as possibilidades do mundo.
A realização de Moretti é de uma sensibilidade irrepreensível, deixando o melodrama fluir sem pausas desnecessárias e o devir do tempo é transmitido com naturalidade, como se todas aquelas personagens estivessem realmente a crescer, a envelhecer, a transformar-se diante dos nossos olhos. Apesar de, em alguns momentos, sermos tentados a julgar as suas atitudes, torna-se claro, à medida que o filme avança para o seu desfecho, que aqui não há bons nem maus, apenas seres humanos que erram, que tentam melhorar, que se arrependem, que aprendem com os seus erros, e que, de certo modo, alcançam a redenção, exceção feita à figura do juiz interpretado por Nanni Moretti, cuja rigidez de princípios nunca abandona, mas que acaba por se extinguir com ele.
É, pois, na dicotomia entre justiça / relações humanas que este filme assenta. A lei, enquanto reguladora, dissuasora e castigadora dos comportamentos humanos, deve, tem de ser, igual para todos. Porém, a lei das relações humanas é volátil e depende sempre de uma boa dose de compreensão, tolerância e aceitação, para que se abra espaço à esperança e à mudança. Delas se alimenta a condição humana.
O REI DO RISO (Mario Martone, 2021)
QUI RIDO IO, ou, no título português, O REI DO RISO (2021), filme do realizador italiano Mario Martone, pode resumir-se em duas palavras: Toni Servillo. A genialidade do ator permite incorporar as diferentes facetas, nem sempre agradáveis, muitas vezes contraditórias e até imorais, de Eduardo Scarpetta (1853-1925), ator e encenador que marcou a comédia napolitana em finais do século XIX e princípios do XX, em grande parte devido à personagem cómica que criou, Felice Sciosciammocca. Aliás, a primeira cena do filme é uma longa sequência que culmina com a aparição desta personagem em palco, levando a plateia ao rubro.
No entanto, à medida que avançamos na história, percebemos que este filme biográfico pretende direcionar a nossa atenção para um episódio muito concreto da vida de Scarpetta. Ao parodiar a tragédia “La Figlia di lorio”, da autoria de Gabriele D’Annunzio, um dos mais importantes poetas italianos da época, Scarpetta é acusado de plágio, vendo-se envolvido num complexo processo legal, famoso por ter sido a primeira ação judicial sobre direitos autorais em Itália, que coloca em causa o êxito granjeado até então.
As cenas em tribunal são uma delícia para o espetador, com destaque para a inteligente argumentação de Scarpetta, levantando questões bastante atuais, relacionadas com as noções de plágio e paródia, como se fossem duas faces opostas da intertextualidade. Tratando-se do “Rei do Riso”, não é de estranhar que o filme culmine com uma atuação cómica de Eduardo Scarpetta, que transforma a sala de tribunal num palco de teatro.
INTERDITO A CÃES E ITALIANOS (Alain Ughetto, 2022)
Nem todas as grandes histórias que chegam ao cinema são protagonizadas por atores de carne e osso. INTERDITO A CÃES E ITALIANOS (2022), uma coprodução de França, Itália, Suíça, Bélgica e Portugal, escrita e dirigida por Alain Ughetto, é disso exemplo. Além de acumular a escrita e a realização, Alain Ughetto também constrói, com as suas mãos, as personagens/familiares, imortalizando, no título, a discriminação a que italianos estavam sujeitos num país que eles próprios ajudaram a modernizar.
Trata-se de uma obra cinematográfica filmada em slow motion, que se destaca por uma narrativa pessoal e comovente, ao mesmo tempo em que lança um olhar profundo sobre eventos históricos que moldaram o século XX. O filme é, como se tem referido frequentemente, uma carta de amor do realizador aos seus antepassados italianos (avós), Luigi e Cesira Ughetto, que enfrentaram a difícil jornada da emigração da região de Piemonte, na Itália, para França. Uma história de fome, miséria, guerras e doenças, intercalada, ocasionalmente, com momentos de esperança e felicidade.
Um dos aspectos notáveis deste filme é a forma como ele equilibra habilmente a história da família Ughetto com os acontecimentos históricos que lhe servem como pano de fundo e lhe conferem uma ordem cronológica, em particular a guerra italo-turca e as duas guerras mundiais, conectando as experiências pessoais dos Ughetto com os tumultos e mudanças significativas que ocorreram no mundo durante esse período. Essa abordagem dá ao filme uma dimensão universal e faz com que a história da família se torne um microcosmo das lutas e desafios enfrentados pela humanidade ao longo dos tempos.
Entre os bonecos animados surge, em algumas sequências, uma mão humana que vai dialogando com a narradora da história, a avó, e que pode simbolizar quer o talento e a habilidade de Luigi, quer a importância do trabalho manual, que é passado de uma geração para outra, quer ainda a jornada empreendida pelos avós de Alain Ughetto na senda de construírem uma vida melhor para os seus filhos e netos.