“Desde que os Argonautas da Terceira decretaram a Monarquia Constitucional, que não passava de uma cobarde ficção republicana, a liberdade que os enrouquecia deixou de ser apenas palavras, para se tornar castigo, cada novo dia mais duro. É que, na voz candente de José Agostinho de Macedo, o Despotismo, ao sair por uma porta, entrou por cento e tantas! E então se chegou ao extremo de liberdade de imprensa – ser liberdade de apreensão; liberdade de cultos – ser perseguição religiosa; liberdade de ensino – proibição de ensinar a moral católica; liberdade de associação – impedimento de formar associações, tanto na ordem religiosa como económica. Quer dizer: liberdade é a supressão das liberdades. (…) A gente operária foi a que mais diretamente sentiu o que nesta doutrina havia de funesto. Os artistas medievos conheceram uma era de segurança e honesto bem-estar como os de nossos dias não encontraram ainda. Verdadeiramente não havia então classes pobres; só os indivíduos o podiam ser, por virtude de circunstâncias excepcionais e fortuitas, – incêndios, pestes, as grandes fomes, as doenças longas. Mas esses tinham nos mosteiros hospitalidade generosa e tenra. No Convento de Alcobaça (e só falo deste por ser o que mais andou ligado à vida e fortuna de Portugal) davam gratuitamente todos os remédios da botica a todos os pobres, não só dos seus coutos, que compreendiam treze vilas e três portos de mar, mas a quem quer que lhe fosse pedir auxílio. Sabe-se até que um dos cargos de maior consideração no mosteiro era o de mestre ou diretor da enfermaria dos pobres. Diariamente coziam ali 24 alqueires de pão para quem o não tivesse noutra parte e o fosse receber à Portaria. Em Quinta-feira-maior distribuíam aquele frades 4.000 pães e repartiam 25 moios de trigo pelos pobres de fora da vila. E a todos quantos pediam agasalho se dava hospedagem gratuita nesse mosteiro. James Murphy, viajando por Portugal por 1789, escreveu: ‘Aqueles que declamam contra os Frades e contra a sua opulência faziam bem se examinassem se por acaso há na Europa um fidalgo ou um cavalheiro possuidor de uma fortuna igual à que detêm os Frades de Alcobaça, e que faça tanto bem ao seu próximo como fazem os Frades deste Mosteiro’. Nada há na assistência pública de hoje que mereça comparar-se à liberalidade santa dos Conventos. O que modernamente se chama pauperismo não existia então, como também nada havia que se assemelhasse ao proletariado de agora. A ninguém faltava uma pedra redonda para erguer o lume, nem havia quem não tivesse onde abrigar-se à noite. As matas da Coroa davam lenha a uns, a outros madeira para rabiças de arados e para caibros; podiam estes tirar dali pranchas e vigamentos para fabricar suas embarcações, aqueles a cortiça para encortiçarem as redes. Nas Cortes de Lisboa de 1427 foi dito que nas Comarcas da Beira e Entre-Douro-e-Minho não se encontravam cavões nem jornaleiros, o que parece indicar, na autorizada opinião de Gama Barros, que todos tinham cultura própria de que se ocupassem. Viollet le Duc afirmou algures que as casas da gente mais miúda da Idade Média eram bem melhores do que essas em que moram os pobres dos nossos dias. E Tocqueville, apesar de ter vivido sempre enleado nos fabulosos encantos do que se lhe afigurava o progresso da civilização, reconhece também, desconsolado e amargo, que a situação dos trabalhadores do seu tempo era muito inferior à que tinham os obscuros obreiros do século XIII. A fome chega à porta do Oficial, mas não pode lá entrar, – era sabido ditado (..) Em 1227, Fernão Martins, ferreiro, doou com sua mulher Águeda, no Mosteiro de Salzedas, umas vinhas em Armamar, com obrigação de os tomarem por seus familiares e os fazerem participantes de todas as boas obras daquela Abadia e de serem conduzidos a ela depois de defuntos, pelos mesmos religiosos, para ali os sepultarem. Enquanto vivos, os doadores entregariam anualmente, por dia de S. Martinho, uma pitança de 17 teigas de pão cozido, 20 pescadas e 2 módios de vinho. E que, além de ser assim abastado, não era desprezível o ofício de ferreiro, vê-se ainda de uma sentença de El Rei D. Duarte, de 1436, dispensando os ferreiros do concelho de Felgueiras de servir os encargos da República. Por Outubro de 1431, comprava o Infante D. Henrique a João Anes, armeiro, por 400 coroas de ouro ‘das velhas, de bom ouro e justo peso do cunho de El Rei de França’, uns paços e assentamentos de casas, com 6 pardeeiros e chãos, na freguesia de S. Tomé, de Lisboa, para nelas estabelecer a Universidade. E o valor e o destino das casas não precisa de ser enfeitado com palavras para mostrar a importância e a riqueza de um operário humilde. O costume de andar descalço, tão vulgar agora no povo das nossas aldeias*, parece não ter existido na Idade Média. As iluminuras do livro do Apocalipse do Mosteiro de Lorvão, que representam cenas da vida agrícola, mostram-nos todos os trabalhadores calçados Nas miniaturas que adornam o manuscrito da Parte I da Crónica de D. João, da Biblioteca Nacional de Madrid, o rapaz que guarda ovelhas calça sapatos pretos; a mulher que aparece a fiar na roca também está calçada e calçados estão, uns com sapatos, outros com botas, os rudes campónios. A lei de preços de Afonso III, de 26 de Dezembro de 1253, fixando os salários da gente da lavoura, na província de Entre-Douro-e-Minho, ordena que se deêm aos serviçais, qualquer que seja a categoria, do alfeireiro ao moço pequeno e à rapariga do gado, 2 pares de sapatos por ano. Não se perdeu logo a boa moda. Nas Cortes de 1481 e 1482, ao procurar impedir os desregramentos do vestuário luxuoso, os procuradores do povo diziam: ‘Parece também a vossos povos que lavradores, criados e gente dessa sorte, conquanto aos dias santos possam trajar bristol e calçar sapatos brancos ou pretos, aos dias de trabalho devem vestir burel e fustão, trazer calções e botas’. Os mesteirais, esses, usariam bristol e sapatos pretos. Na feira que se fazia no Rossio, no ano de 1551, contavam-se 15 a 20 sapateiros que vendiam calçado velho, ‘os quais – informa um escrito da época – vendem muito mais do que os do novo, porque com este velho levam calçado grosso de trabalhadores’. No livro de orações de D. Manuel, iluminado com representação de assuntos campestres, também estão calçados os camponeses que lidam na eira. O criado de um beneficiado da Igreja do Salvador, em 1558, tinha de soldada, além de 4 cruzados e certas peças de roupa, um par de botas, ‘como he uzo e costume’. Pela escritura que o venerável Nun’Álvares fez com os Mestres e Oficiais que pelos anos de 1389 trabalharam na grande obra do Convento do Carmo, sabemos que aos mestres se devia dar por dia 30 reais, aos Oficiais 13 reais, e aos serventuários 10 reais, ‘que era muito abondo para comprar dois alqueires de teigo, que naquele tempo custava a 5 reais o alqueire’, esclarece o cronista dos Carmelitas descalços, Fr. José Pereira de Santana. Ao redor do ano de 1470, cada mestre carpinteiro e pedreiro do Município de Lisboa ganhava tanto como o cirurgião e o médico do partido, e quase tanto como os juízes. Os salários dos mestres de ofício regulavam, em 1480, entre 25 reais, jornal de um alfaiate, e 40 reais, que ganhavam o sapateiro, o ferreiro e o correeiro. Para saber que não era mesquinho o salário, basta lembrar que um viajante gastava então 15 reais para comer nas estalagens e que os Procuradores do Povo às Cortes de 1490 puderam dizer que um Chefe de Família governava até ali a sua casa com 3 e 4 mil reais por ano. Em 1494, o lente de véspera de Medicina na Universidade, percebia 8.640 reais, e João Crespim, mestre de carpintaria e artilharia real, tinha de ordenado 9.195 reais. João Afonso, mestre da Fundição, ganhava por aquele tempo 15.000 reais anualmente, enquanto a cada um dos membros da Casa dos Contos, em que se concentrava toda a contabilidade da Fazenda Pública, se assinavam apenas 10.000 reais, e 5.000 reais aos escrivães. (…) Em 1531 os pedreiros venciam de jornal, desde Março até Setembro, 12 reais por dia, e 10 reais de Outubro até Fevereiro; os carpinteiros 25 reais, e 20 reais; os alfaiates ganhavam 25 reais por dia; 40 reais os correeiros; 10 reais os sapateiros. Ora, um operário podia então comprar um arrátel de vaca por 2 ou 3 reais; uma galinha custava-lhe 7 reais e por 2 reais já conseguia 5 ovos. Em Guimarães, no ano de 1552, um carro de lenha não custava mais de 20 reais, e um carpinteiro ou pedreiro ganhava por dia 30 reais, dando-lhe..
..de comer, e 50 reais sendo a seco. Por 10 reais comprava quem quer um arrátel de toucinho seco, por 8 reais um coelho, e um cabrito por 30 reais. Um leitão valia 30 reais e uma lebre 15. Uns sapatos de bom cordovão pagavam-se com 50 reais, e os de vaca valiam 45. Praticamente o dinheiro do pobre tinha valir superior ao do rico. A satisfação das primeiras necessidades de vida – albergue, comida, vestido – era baratíssima, mas em compensação os objetos de luxo atingiam preços altíssimos. Desde que a lei impunha aos municípios o dever de taxar os salários dos mesteirais, os salários correspondiam exatamente ao custo de vida. A féria do operário não diferia sensivelmente dos ganhos do mestre. Em 1507, João Cordeiro, mestre de carpintaria, que trabalhou no Paço de Sintra, tinha de jorna 60 reais, e os carpinteiros Fernando Anes, João André e Álvaro Fernandes 50 reais cada um; João Rodrigues, mestre pedreiro, ganhava 60 reais e 50 reais os oficiais Pedro de Carnide e Afonso Fernandes; Gonçalo Gomes, pintor, recebia 60 reais e João, seu criado, 40 reais. (…) Nas Cortes de Coimbra de 1394 queixava-se o concelho de Santarém de ter de dar pousada e cama gratuita aos pedreiros, carpinteiros e outros mesteirais que trabalhavam nas obras ali mandadas fazer pelo Rei, visto que ‘recebiam jornais grandes e bons’. João de Guimarães, o celebrado alfageme que em Santarém consertou a espada de Nuno Álvares era, no dizer da Crónica anónima do Condestável, rico e feliz. Diogo Fernandes, latoeiro em Lisboa no tempo de D. João III, dava dinheiro a juro. Diogo Raçola, armeiro, vestia luxuosamente roupas de seda. Em socorro da praça de Mazagão, que o xerife Muley Abdala, Rei de Marrocos, sitiava, 1.000 homens enviavam à sua custa os oficiais mecânicos. (…) Ao descrever a Ribeira, no livro das grandezas de Lisboa, Fr. Nicolau de Oliveira observava: ‘Há aqui à parte do Rio 54 escamadeiras de peixe, que ganham mui bem de comer a este ofício, e muitas delas são mui ricas’. Ah! Como se compreende o orgulhoso gruto daquele grande curtidor de Basileia, ao receber em sua casa o imperador Rodolfo de Habsburgo: ‘C’est le métier qui fait maintenant la richesse!’ Mas se os lucros do ofício não bastassem, concediam então os Monarcas amplos privilégios, porque ‘huma das cousas que mais ennobrece e honra a cidade assy som os bõos oficiais’. (…)”
[o excerto corresponde a uma boa fatia de um extenso capítulo, o II da obra ‘Paixão e Graça da Terra, de Luís de Almeida Braga – obra de muito primor e honra].