Existem dois tipos de comportamentos geralmente abrangidos pelo termo coloquial e conceito legal de “assédio”. O primeiro é o assédio moral, inequivocamente mais comum em qualquer ambiente profissional. No caso da academia, basta que qualquer professor, em público ou privado, manifeste uma atitude de reiterada diminuição e/ou humilhação de subalterno (aluno) ou colega para que a categoria se verifique. O segundo, menos comum, devido à própria natureza das coisas, requer um comportamento reiterado de avanço e importunação de conotação erótico/sexual com vista à obtenção de usufruto nessa área ou não, e passa-se, de modo geral, em privado.
Estes comportamentos, no mundo académico, estão sujeitos a mediação pela parte de duas autoridades. Primeiro, o estado de direito. Ambos são criminalizados em Portugal (embora apenas desde 2015), sujeitos a definições legais suficientemente flexíveis que permitam jurisprudência sensata e aplicam-se a qualquer comportamento desse género tido em qualquer desses ambientes. Segundo, as universidades, através de regras internas e códigos de conduta dos docentes; neste campo, podem aplicar-se normas diferentes, possivelmente mais específicas, quanto a interacções específicas entre professores, investigadores e alunos, e, caso exista violação de alguma delas que justifique suspensão ou cessação do contrato do profissional, trata-se de uma questão do direito do trabalho, que também se resolve em tribunais próprios.
Fora destes reinos, temos outra espécie de coisa: a opinião pública, a imprensa, e o mundo da discussão política. É aqui que cabem denúncias públicas feitas através de manifestos, artigos científicos, artigos de jornal, redes sociais, e tudo o resto. Estas denúncias, a priori, não configuram crime e só o configurariam se os denunciantes optassem por apresentar queixa judicial — dado que nenhuma das tipologias de assédio é um crime público. Ou seja, meramente publicar um artigo ou um manifesto não leva a qualquer investigação judicial. Neste campo, estamos completamente fora do âmbito do crime.
Porém, no campo das universidades, no que diz respeito às suas normas e códigos de conduta, denúncias públicas deste tipo podem levar à constituição de inquéritos internos, que podem tomar várias formas, e consequentemente a medidas disciplinares.
A primeira destas entidades, o estado de direito, está habilitada e tem vasta experiência na determinação do que constitui “assédio”. Aplica-se, como é natural, a presunção de inocência do acusado e o dever do acusador de apresentar prova. No inquérito policial — e, mais tarde, judicial, caso chegue à barra do tribunal — recolhem-se depoimentos de ambas as partes e afere-se a credibilidade de ambos, procurando contradições, verificando a coerência conforme outros comportamentos e testemunhos e contra-testemunhos, etc. No final, emerge uma sentença, sujeita a devidos recursos, e a questão transita em julgado para um juízo final, por muito imperfeito que seja.
As segundas destas entidades, as universidades e os seus procedimentos internos, não estão habilitadas de forma robusta a determinar as categorias de “assédio” acima referidas; e todo o procedimento é, apesar de inspirado e derivado do policial e judicial, claro e necessariamente muito mais arbitrário — dado que as universidades podem ter critérios completamente diferentes para aferir e podem nem sequer considerar que essa categoria é da sua responsabilidade — apesar de poderem existir, em particular para universidades que tenham fundos públicos, ou mesmo para todas, normas ministeriais que imponham obrigações nesta matéria. Em Portugal, a situação é de alheamento em geral nas universidades, x) e ausência de norma ministerial não só quanto a relações pessoais mas também de parentesco, enquanto que noutros países se passam situações diversas. Seja como for, qualquer litigioso entre docentes e investigadores e a universidade pode acabar no mesmo sítio já acima referido: no estado de direito, mais precisamente nos tribunais do trabalho.
Dito isto, os dois comportamentos referidos, assédio moral e assédio sexual, ocorrem tanto nas universidades como em qualquer ambiente profissional em específico ou social em geral. O primeiro é muito mais comum, como já afirmámos, e merece seguramente mecanismos mais claros de denúncia da parte das universidades. O segundo, felizmente mais raro, de igual modo os merece. Mas ambos não são práticas cuja descrição seja necessariamente inequívoca e que não abarque ambiguidades. No primeiro caso, determinado trato lectivo ou avaliativo mais exigente da parte de um docente pode ser confundido com assédio moral. No segundo caso, este entrecruza-se com dimensões das relações humanas de elevada complexidade. Com efeito, relações de amizade, amor ou mero erotismo, constituídas de modo geral pelo elemento fundamental do consentimento tácito ou explícito, podem ser confundidas, no mundo dos desentendimentos e desencontros que constitui o mundo das relações sociais humanas entre adultos, com comportamentos de avanço não solicitado e/ou não desejado de vertente erótico/amorosa, quer estejamos a falar de mero apetite ou de situações em que este se confunda com a relação profissional entre os participantes, no caso existindo um quid pro quo implícito ou explícito.
Explicadas que estão as complexidades destas situações, existem dois pontos centrais que convém clarificar. Um é se existe algum problema de princípio em que pessoas de diferentes hierarquias no mundo académico — ou em ambientes laborais em geral — tenham relações de amizade, amor ou erotismo, e, consequentemente, se é lícito existirem avanços explícitos ou sinais implícitos que pertençam a este reino. Outro ponto é se as definições de “assédio” que possuímos são suficientemente robustas, ou seja, se exigem reiteração de comportamento entre os mesmos participantes, avanços físicos ou meramente verbais, expressões explícitas ou implícitas de quid pro quo, ou se para a validade dessas mesmas definições é suficiente a mera sensação de desconforto de um dos participantes na situação.
Certamente os inquéritos policiais, os inquéritos judiciais e os inquéritos internos das universidades têm já arquivado material suficiente para ajudar a esclarecer estas questões e outras — tal como, estatisticamente, (1) quais e quantas situações denunciadas tinham viabilidade; (2) se não tinham, porque é que não tinham; (3) quantas surgem de desentendimentos; (4) quantas surgem de comportamentos inequivocamente autoritários; (5) qual a tipologia em termos de sexo, idade e posição hierárquica aplicável a cada um dos tipos de alegações de assédio; etc. É este material que nos pode ajudar a estabelecer quadros concretos e reais quanto à prevalência desse comportamento nas universidades em particular, já para não falar da sociedade em geral, como resolver e atenuar o problema, e se o quadro daí resultante nos deve levar a pensar sobre considerações subjectivas e colectivas que possamos ter na sociedade civil sobre a adequação ou não de figuras de diferentes hierarquias poderem entrar em relações de amizade, amor e erotismo, ou se a mera possibilidade de isso suceder está completamente posta de parte.
É nestes trâmites que a presente discussão sobre assédio nas universidades deve ser tida, e possivelmente em mais nenhuns outros.