Sobre como a Associação #NãoPartilhes é um Mau Exemplo, uma Falácia e Talvez um Logro

À primeira vista, a associação recentemente constituída que quero abordar nesta peça parece ser uma excelente iniciativa destinada à prevenção da circulação de conteúdos íntimos em suportes digitais nas redes contra a vontade dos retratados.

No entanto, tendo algumas interacções com a mesma quanto aos seus princípios e filosofia revelado óbvias confusões e falácias; o facto de, contraditoriamente ou não, os seus membros possuírem redes sociais pessoais altamente erotizadas; e o facto de, como infelizmente é tão comum nas individualidades ou colectividades contemporâneas, se mostrarem muito avessos ou mesmo ariscos à crítica, capazes de evidentes ordinarices e má-criações nas respostas; tudo isto, dizia, levou-me a investigar um pouco melhor qual o ethos que domina esta associação e o sentido de tudo o que fazem.

As conclusões a que cheguei são, infelizmente, decepcionantes, e levam-me mais uma vez a constatar que, por muito que determinadas causa possam parecer à partida meritórias, são os oportunistas e os aldrabões os primeiros a chegarem-se à frente para as defender — ou melhor, não para as defender, mas para as usarem em proveito próprio. Veremos a seguir como é que isso se processa.

Em primeiro lugar, descreverei qual o objectivo da colectividade. Pretende, através de acções de sensibilização e de propaganda, presenciais e online, sensibilizar para a indecência moral de partilhas de conteúdos privados de terceiros, em geral eróticos, captados inicialmente por meios lícitos ou ilícitos.

A expressão mais significativa deste fenómeno ocorre, segundo dizem, em grupos online, constituídos maioritariamente por rapazes e homens, que trocam entre si conteúdos que variam entre:

  • (1) fotografias e vídeos de raparigas e mulheres de conteúdo erótico mas sem nudez explícita livremente acessíveis em plataformas como redes sociais;
  • (2) fotografias e vídeos de conteúdo erótico com nudez e actividade sexual explícita captadas em privado, livremente enviadas a terceiros, e, mais tarde, partilhadas ilicitamente, em geral aquando do fim de relações amorosas (“revenge porn“);
  • (3) fotografias e vídeos do mesmo tipo que, por estarem em suporte electrónico, são hackeadas por desconhecidos e posteriormente divulgadas na internet com intuitos comerciais.

A estas categorias posso ainda acrescentar outras duas, talvez menos numerosas mas mesmo assim igualmente graves no ilícito que constituem:

  • (4) fotografias de conteúdo erótico com ou sem nudez e actividade sexual explícita divulgadas em redes como OnlyFans por livre iniciativa e mais tarde reproduzidas em circuito externo (“pirataria” de conteúdos visuais, portanto);
  • (5) fotografias e vídeos de conteúdo erótico ou não captados ilicitamente sem o conhecimento sequer da pessoa de que estaria a ser fotografada.

Aqui levanto a primeira dúvida quanto ao princípio que rege a associação, e que configura toda a sua linha: a ideia de que toda a mensagem preventiva quanto a acidentes deste tipo deve ser dirigida exclusivamente aos terceiros que expõem os conteúdos alheios e não aos próprios retratados, ou, mais frequentemente, às próprias, que se permitem serem captadas nessas condições em formato digital facilmente reprodutível.

Esta linha ética que a associação adopta — e que, em grande medida, se torna dogmática e obsessiva — faz parte de uma tendência mais ampla, contemporânea, juvenil e assustada: a de um foco obsessivo e judaico-cristão na questão da culpa como razão e não como causa. Não se pode, segundo esta mundivisão errada, culpar a vítima: o que quer dizer, em termos resumidos e até neuróticos, que não se pode sequer abordar o assunto de a vítima estar a colocar-se numa situação obviamente vulnerável, sob pena de a traumatizar e enfurecer, quando partilha conteúdos desse tipo em (1) suportes digitais de reprodução automatizada e (2) com pessoas com quem não terá absoluta razão de confiança.

Neste contexto, não é possível, por meras razões de tabu moral, colocar a questão na mesa sobre a óbvia imprudência em que a vítima poderá estar a incorrer ao deixar-se retratar nesses preparos — como se alguém que atravessasse um bairro de reputação duvidosa com um maço de notas de centenas de euros na mão não pudesse ser concebido como alguém que está a ter diminuta prudência na sua acção. Esta é uma visão de crianças, para crianças, e seria talvez conveniente que um juízo mais maduro, pragmático e extra-moral, fosse aqui levantado.

Isto permite-nos então desenhar o primeiro ponto desta crítica, que parece ser o principal problema de fundo: o slogan “não partilhes” dirige-se, e bem, a quem partilha fotografias de terceiros mas não se dirige — nem é permitido que se dirija, pela própria ética da associação — aos próprios que partilham fotografias suas de excessiva exposição íntima nas redes públicas. Esta é uma posição confortável quer para a associação quer para aqueles que dizem proteger: o sujeito inicial retratado na partilha fica escudado no seu papel social sob o estatuto de vítima e livre de qualquer crítica ou auto-crítica que apontasse a sua própria imprudência inerente à partilha de conteúdos íntimos próprios em formato digital, mesmo que dirigidos a namorados ou pessoas de muita confiança.

Toda esta questão é interessante e requer honestidade de carácter e frontalidade ao lidar com o mundo real: alguém que hipoteticamente partilha conteúdos privados seus com terceiros, num mundo digital em que a reprodução das mesmas é algo facílimo, poderá ficar muito surpreendido ao ver esses conteúdos circularem por outras vias? Certamente tal configura crime e não estará correcto a nível moral, mas alguém ficar de facto surpreendido com isso corresponde a esse alguém estar possivelmente a viver no mundo da lua. Por isso talvez seja importante reorientar o mote da associação: “não partilhes” deveria ser um imperativo dirigido primeiramente às pessoas, em geral jovens, em geral raparigas, que ingenuamente partilham com namorados, ou com clientes de plataformas de partilhas, tais conteúdos, e não concebem a possibilidade de, no mundo digital, não haver muita coisa a fazer caso infelizmente esses conteúdos vazem para o domínio público. A associação não o faz nem nunca o fará pois está em completa contradição com a sua ética de vitimismo moralista, ética essa que é contraditória, facilitista e que covardemente se esquiva a abordar todas as vertentes de um amplo problema.

O segundo ponto, que pode ser ou não contraditório, como já dissemos, refere-se à dimensão erótica das fotografias nas redes sociais de alguns dos seus membros, nomeadamente membros fundadores, e que é uma questão incontornável e que nenhuma censura moral me impedirá aqui de abordar.

O fenómeno de excessiva exposição, objectivação e sexualização do corpo nas redes sociais da parte de jovens raparigas, fenómeno que muito vezes começa na adolescência e se estende até à idade adulta inicial, é hoje uma situação indesmentível e que tem levantado preocupações não apenas da parte de pais e de psicólogos mas também da parte de adolescentes e jovens adultos que não se identificam com esse comércio carnal nas redes. É importante assim abordar a possível contradição e complexidade aqui presentes: pessoas que — pela palavra das próprias, expressas inclusive em entrevistas televisivas — se afirmam como pessoas de sexualidade frontal e explícita, que gostam de se vestir de forma sensual e atraente, e que, aliás, alimentaram, durante anos, páginas em redes sociais públicas onde esse conteúdo estava perfeitamente acessível a qualquer pessoa — algumas que ainda se mantém activas, tendo no entanto moderado a exposição e a linguagem devido provavelmente às consequências da maturidade —, pessoas que claramente aproveitaram esse potencial sexual, aliás mais acessível ao sexo feminino, para venderem o seu produto visual e se tornarem influencers — e cujo conforto com esse tipo de exposição se estendeu, como é lógico que se estenda, à captura de conteúdos íntimos mais pesados e à sua divulgação nas redes semi-privadas ou privadas — são pessoas que vêm agora fundar uma associação cujo mote é impedir terceiros de partilharem o tipo de conteúdos que passaram a vida a criar.

Esta dimensão não seria tão suspeita e potencialmente contraditória se a associação lidasse directamente com o fenómeno social da sobre-exposição de conteúdos eróticos nas redes sociais públicas e a sua ligação com as partilhas privadas; como não o faz, uma parte significativa da equação fica obliterada e toda a fórmula não convence.

O terceiro e último ponto resume-se a, ao serem confrontados publicamente, através de plataformas sociais, por alguns colaboradores da nossa publicação, com estes problemas e contradições, a reacção não ser a melhor. Tanto as dirigentes como os seus seguidores, quando inquiridas, presentearam-me e a várias pessoas com uma série de indignações pífias, insultos variados e inócuos, acusações ocas de “misoginia” que nada mais escudam do que a falta de argumentos, e um generalizado mal-estar e postura agressivamente defensiva perante aquela que é crítica legítima. Se não é positiva a reacção inicial às críticas e chamadas de atenção da parte das dirigentes, e não augura nada de bom, as outras respostas, de conteúdo malcriado e selvagem, da parte dos seus seguidores, são precisamente a típica reacção de quem se acha tão munido da superioridade moral que não aceita reparos nem críticas, e esperamos, com sinceridade, que sejam marginais à ética da associação e as reacções das primeiras, institucionalmente mais polidas, não representem uma versão truncada dessas outras, habituais nas multidões da internet, que por nós já eram esperadas.

A explicação para isto pode ser em parte biográfica. Efectivamente, depois de alguma investigação, cheguei a conclusões de princípio sobre a questão no seu todo e sobre o móbil da associação. Como já foi referido, algumas dirigentes da associação passaram anos e anos da adolescência e jovem idade adulta, como tantas outras pessoas, a produzir e partilhar on-line imagens de sexualização do próprio corpo, ou, nas palavras que uma das próprias usou em redes sociais, “aputalhadas”. Estas imagens foram divulgados tanto em fóruns públicos como em relações privadas. Um dia, a coisa correu mal. Como se constrói um arco redentor para este percurso tão comum, tão vulgar e tão irrelevante? Uma pessoa ambiciosa arranja sempre maneira: monta-se uma associação e assim dá-se continuidade às carreiras de “influencers”, associação essa que representa um admirável monumento falacioso de contradição. Repito: são pessoas que passaram a vida a ganhar notoriedade através da partilha de conteúdos erotizados, de modo público ou semi-público, nas redes sociais e na internet, e agora surgem como dirigentes de uma associação dirigida à proibição da partilha desses mesmos conteúdos por parte de terceiros. Creio que existem formas mais discretas de resolver traumas e de ser hipócrita.

O mais grave disto é a consequência para outros, principalmente pessoas mais jovens, que hoje se encontram a fazer exactamente o mesmo tipo de partilhas que estas pessoas faziam quando eram jovens. Tudo leva a crer que a mensagem da associação, meramente de pregação moral mas sem avisar seriamente quem incorre nessas produções do risco que está a correr, se encontra minada de ineficácia, irresponsabilidade e irrealismo e que, conforme a leitura biográfica que proponho, provavelmente serve mais para lavar a imagem das próprias do que para ter qualquer efeito concreto nesse fenómeno. Aceito, claro, reparos a esta posição, mas não se aceito de modo nenhum que este ângulo do debate esteja interdito.

Adicionalmente, dirigentes desta associação têm comportamentos públicos extremamente duvidosos e, alguns, objectivamente criminosos. Damos dois exemplos. Um, ter denunciado publicamente um suposto autor de um vazamento de fotografias privadas de uma actriz portuguesa, em redes, sem qualquer prova do mesmo — algo que foi negado pelo próprio e que desconhecemos em absoluto se corresponde ou não à verdade.

Outro, ter-se publicitado a si mesma, também em redes sociais públicas, num vídeo captado aliás sem consentimento dos visados, a responder a um suposto piropo que lhe teria sido dirigido, e que não está obviamente visível no registo, com um acto abjecto de escarrar para cima da pessoa, rindo-se de seguida. Ora a um crime — algo que hoje o piropo pode de facto constituir, quer se queira quer não — com outro crime não é algo que deva ser glorificado. As massas da internet responderam com a selvajaria do costume, aplaudindo o acto aberrante e covarde. Uma peça jornalística foi elaborada sobre o assunto, aqui. Posteriormente, publica noutra rede social um vídeo designado “tutorial sobre como mandar escarras para quando somos assediadas“, outra apologia da selvajaria inconsequente.

Estes são comportamentos que indiciam uma falta de seriedade de carácter e que dão toda a razão para quem quer que seja desconfiar de todo este panorama. De facto, fundar uma associação dedicada a dizer que a culpa não é de todo de quem se expõe dessa maneira no meio digital mas sim de toda a gente que partilhou ilicitamente duas ou três das trezentas mil fotos “aputalhadas”, nas palavras da própria, que tinha produzido, é evidentemente um argumento duvidoso e, principalmente, uma péssima mensagem de destesponsabilizacao vitimista para dirigir às milhares de raparigas que inocentemente fazem o mesmo. Com isto perdem principalmente essas jovens que continuarão sujeitas ao abuso das suas imagens, tanto daquelas que voluntariamente publicam em perfis públicos como daquelas que permitem capturar em momentos privados sem consciência de que o formato digital é de reprodutibilidade imediata. 

Por último, uma coda a toda esta série de argumentos, que se pretende franca, aberta e incisiva — e que aliás em nada objectam ao móbil terceiro da associação, o da prevenção de partilha de conteúdos sem consentimento.

Efectivamente há que distinguir os juízos analíticos, que simplesmente descrevem as situações tal como elas são, e os juízos morais, que estabelecem lógicas de “culpa” muitas vezes completamente empecilhos para a resolução dos problemas. Este é um vício não só de um certo estado mental de colapso das faculdades lógicas, um vício beato e fanático, mas também um vício bem português: achar que reconhecer frontalmente como as coisas são vincula os juízos morais vigentes em cada tempo, e de facto não é assim.

Por exemplo, alguém reconhecer, em 1950, que uma mulher não poderia viajar para fora do país sem autorização do marido, e que a que se propusesse a isso à revelia estaria a lamentavelmente violar a lei e teria problemas, não significa de modo algum que se concordasse moralmente com esse estado de coisas. O mesmo se aplica aqui: por afirmar, de forma completamente adulta e desempoeirada que algumas fotografias em questão, sejam das fundadoras da associação sejam de jovens mulheres em geral, devido à exposição suficientemente explícita do corpo, será interpretada de modo sexual por muita gente, particularmente homens mas não só, não significa que esteja a dizer que isso está “certo” ou “errado”, mas simplesmente que é irónico que a presidente de uma associação designada por “não partilhes” se apresente com fotos que convidará alguns a essa mesma partilha.

Por isso, se essa postura e outras configura uma mensagem que assume todos estes pontos adicionais que estou a levantar, é uma mensagem interessante; se simplesmente ignora essa dimensão, é ingenuidade. Parece que faltará aí alguma maturidade, dado que, com um critério cego ao potencial sexual do corpo de forma diferenciada, qualquer parte do corpo seria de valor neutro e de admissível exposição na esfera pública, e esse é um sonho que toda a história das culturas e das civilizações nos mostrou que não tem pernas para andar e cabe a quem acha o contrário perceber porquê.

Por último, sublinho mais uma vez: não tem a ver com culpa, tem a ver com análises sérias e adultas da questão, em primeiro lugar. Toda a gente tem direito à sua privacidade, mas não adianta partilhar imagens íntimas e esperar que nunca nada aconteça: isso é, pura e simplesmente, ingenuidade ou sonsice premeditada. No final de contas, é muito provável que a referida associação tenha um papel muitíssimo negativo, contraproducente e inerentemente contraditório no que diz respeito à prevenção, em sentido lato, destas situações, dado que uma mensagem objectiva que avisasse os jovens que é praticamente impossível, por vários factores, controlar a reprodução digital, seria provavelmente muito mais eficaz do que o foco ingénuo e beato em “não culpar a vítima”. Tal mensagem nunca será dada porque seria uma admissão da própria estupidez inicial das dirigentes, que nunca admitirão o próprio erro em deixarem-se captar nesses formatos perante pessoas com quem não tinham confiança. Assim, serve a referida associação mais para lavagem e justificação, sob uma lógica circular, dos próprios erros, do que para qualquer abordagem séria, abrangente e adulta dos problemas.