A polémica quanto a denúncias de comportamentos abusivos (do foro profissional, moral e/ou sexual) da parte de alguns docentes universitários face a alunos alargou-se para fora da Faculdade de Direito, em direcção a outras faculdades da universidade de Lisboa, e não só. Este artigo recomenda frontalmente precauções e cepticismo quanto baste no que diz respeito a movimentos de denúncia colectiva e à histeria jornalística e de multidões face a tipos de coisas que devem ser analisadas ao pormenor e com objectividade, longe do clamor. Texto de Ricardo Fortunato.
A situação que se tem desenrolado nas últimas semanas, não só na Faculdade de Direito mas também em várias outras faculdades da Universidade de Lisboa, quanto a denúncias de comportamentos abusivos por parte de docentes face a alunos, impele-nos a fazer o seguinte comentário, que se trata, em parte, de uma posição editorial que queremos assumir.
Coloquemo-la do seguinte modo: frequentemente, as pessoas de determinadas tendências intelectuais e/ou ideológicas vêem à partida com grande confiança, ou até mesmo bonomia (e sem praticamente nenhum grau de cepticismo), a ocorrência de movimentos sociais de “denúncia colectiva“. Por outro lado, outras pessoas de outras tendências intelectuais e/ou ideológicas usam — e até abusam — de muito maiores doses de cepticismo no que diz respeito às acusações feitas no campo, por exemplo, do assédio sexual nas universidades (com reacções que partem desde “é preciso apurar os factos“ e vão até “elas puseram-se de jeito porque queriam que lhes subissem a nota“).
Gostaríamos assim de salientar que, mais pelas características de mau jornalismo apresentado nas peças veiculadas nos média sobre o assunto, do que por conhecermos em particular este ou aquele docente ou este ou aquele aluno, gostaríamos de salientar, dizíamos, porque é que pessoas do segundo grupo, no qual alguns de nós se incluem, alimentam uma descrença tão grande nesse tipo de movimentos de denúncia colectiva: é porque nos parece que são excepcionais veículos para a mentira, para a distorção e para a histeria. Por isso somos tendencialmente partidários de que certas coisas sejam resolvidas nas instâncias próprias e não na praça pública.
Por isso, infelizmente, muita gente desse segundo grupo, quando hoje assiste a esse tipo de movimentos, atribui-lhes descrédito imediato — e isso é, como é óbvio, imensamente nocivo para as pessoas com denúncias genuínas que estejam a falar a verdade quanto ao relato dos factos que avançam.
Podemos lembrar também os movimentos, de características semelhantes, MeToo e Black Lives Matter, inicialmente alimentados por factualidade e sensatez, mas mais tarde degenerando em fábricas de generalizações acéfalas e de fenómenos de caça às bruxas — à semelhança do famoso McCarthyismo dos anos cinquenta do passado século, nos Estados Unidos..
Esperamos assim que as pessoas do primeiro grupo — aquele que acredita à partida em qualquer denúncia e vê certos comportamentos massificados como absolutamente benignos — um dia tenham também coletivamente o juízo de ver que estas plataformas são, potencialmente, péssimas maneiras de resolver as coisas, assemelhando-se mais a variantes do populismo — que todos selectivamente criticamos — e aos apelos à justiça de rua, justiça essa que é tendencialmente selvagem e sem critério.
Deixem-nos no entanto dizer claramente que concordamos com o seguinte: existem situações que legitimam a denúncia colectiva como único veículo possível para que a efectivação de algo que entendamos como denúncia — pública, jurídica e efectivamente válida — possa realmente funcionar. Funcionar não como condenação à partida, mas como único método possível, em determinado contexto, de trazer à mesa do tribuno determinado assunto em consideração. Concebemos perfeitamente que tal seja uma realidade presente. Mas a descrição que fizemos quer do BLM quer do MeToo baseia-se tanto em análises tentativamente objectivas da panorâmica das propostas desses movimentos — por vezes orgânicos, por vezes inorgânicos —, como também em constatações estatísticas do apoio que esses movimentos recolhem pela população em geral, facilmente aferíveis pelos numerosos estudos de opinião existentes nos EUA, de onde se originam — estudos que mostram claramente, para quem não sabe, que o apoio generalizado da população a esses movimentos decresceu imenso, devido às razões que apontámos.
Da nossa parte, construímos o paralelo que foi proposto, no caso primeiro referido do BLM, assumidamente a partir de uma análise cuidada da primeira vaga de cobertura mediática — que não correspondeu a nenhum acréscimo estatístico relevantes, mas que simplesmente decorreu da atenção dada pelos média a determinados eventos de violência racial envolvendo polícia e cidadãos negros — ocorrida em 2014, antes de vaga principal e mais histérica animada pelo ennui burguês dos confinamentos, em 2020. Dessa análise, da nossa parte — que voltamos a dizer que foi cuidada, e desafiamos qualquer leitor com dúvidas a efectuar análise melhor — foi claro que, de modo geral, oito em cada dez casos abordados no frenesim dessa indignação sensacionalista eram casos de força policial justificada — por muito que isso custe tanto aos advogados do argumento da brutalidade policial sistemática como também aqueles que advogam uma existência nula ou quase nula de brutalidade policial. Portanto não podemos admitir que um movimento que transforma tais estatísticas — em que apenas dois em cada dez casos abordados nos média eram de facto abusos de direitos civis — no seu inverso — numa descrição alarmista e contra-factual da interacção entre polícia e cidadãos negros como minada por problemas “estruturais” — seja um movimento inteiramente sério. O jornalismo torna-se, como tantas vezes se torna, um aliado diabólico, muito conveniente para justiceiros sociais que ocasionalmente se redundam em exploradores da desgraça alheia. Em suma, esta é a nossa avaliação — fundamentada — sobre o BLM: e isto para não dizer que a distorção de dados objectivos que referimos transforma o movimento num movimento basicamente racista; ou, pelo menos, de uma exploração abusiva e desonesta do conceito de raça.
Quanto ao MeToo, o segundo movimento de denúncia colectiva que referimos, é um movimento cujas falhas são mais evidentes para os europeus do que no caso do BLM, já que estes não possuem trauma racial tão evidente como nos EUA, e ainda mais para os portugueses. Não existem, nem no continente nem em Portugal, significativas tensões raciais comparáveis à situação dos Estados Unidos, onde as memórias ainda recentes — quer da escravatura quer da situação vergonhosa de direitos civis básicos da população negra no sul do país — configuram um problema completamente diferente. Portanto a capacidade da população europeia entender, à partida, a interacção entre sexos que está na base das denúncias do MeToo, é muito superior, e assim existiu uma afinidade automática com as questões levantadas pelo movimento. Este teve talvez a mais europeia e/ou adulta das respostas na carta colectiva (colectivismo com colectivismo se paga) de uma série de libertárias personalidades francesas do sexo feminino, pertencentes a várias gerações, clamando pela cessação da infantilização da interacção sexual. É evidente que este movimento — com as suas qualidades e as suas falhas — é o mais similar ao que se passa actualmente na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e é junto dele, dos antecedentes que já levantou, que devem ser procuradas as cautelas necessárias para lidar com o tipo de situações sociais em causa — nomeadamente com a diferença abissal entre denúncias legítimas de assédio (moral ou sexual) de origem pedagógica, ou fenómenos parecidos, e denúncias confusas e vagas como “o professor convidou-me para beber café e senti-me desconfortável”, que revelam uma espécie de infantilização das relações humanas.
Esclareceremos novamente que não se podem liquidar à partida este ou aquele ou todos os movimentos de denúncia colectiva como errados. Mas é absolutamente imperativo avisar os participantes, amigos e simpatizantes destes movimentos que existe um sector numeroso da sociedade — mais dado a precauções quanto a impulsos sensitivos em excesso, individuais ou colectivos, do que amigo de grande narrativas de justiça social trazida à tona pela massa jacobina — que, actualmente, reserva uma gigantesca dose de descrédito para tais movimentos; e tal cepticismo pode ser tanto um exercício de bom-senso como pode advir também de um quadro de preconceito, não o negamos. Ou seja, para metade da sociedade (mais ou menos), esses movimentos não têm credibilidade à partida, e vão tendo cada vez menos credibilidade à medida que os factos levantados pelo clamor são analisados passo a passo.
Parece-nos que aqui o populismo de rua (e também populismo jornalístico; curiosamente, ou não, muito amigos um do outro) da indignação com narrativas de poder é tão intelectualmente reles como o populismo menos jornalístico, e mais subterrâneo, que atribui culpas dos males do mundo ao lobby gay, à teoria da substituição racial, etc. Há casos curiosos de casamento ideológico aqui se encontram, casos esses que em nada surpreendem quem ande atento às contradições básicas da psyche, mas surpreenderão quem engula conversas baratas, fundamentadas em narrativas primitivas de estirpe ideológico/políticas, autênticas novelas de cordel tidas como grandes e nobres histórias de emancipação social.
Por último, tentando substanciar a matéria fundamental deste artigo, importante é também salientar que a denúncia colectiva não deve ser utilizada como primeira opção, mas sim como último recurso, caso os canais normais facultados às denúncias em nome individual não resultem. Talvez as escolhas dentro deste tópico acabem por tocar em pontos mais vastos e universais, que dizem respeito a mundivisões tendencialmente colectivistas ou tendencialmente individualistas quanto à actividade humana, mas esse é um ponto que não tem aqui lugar no espaço suficiente para ser desenvolvido.
Esperamos assim que a nossa posição fique clara. Por isso deixamos esta chamada de atenção, que é uma assumida posição, quanto à resolução justa destes assuntos, a favor da racionalidade, objectivamente céptica quanto ao papel de certas emoções primárias (indignação furiosa, atribuição de culpas, caça ao homem, etc.) e também quanto a certos ecossistemas intelectuais, como o caldo das multidões, das turbas, do colectivismo, onde tais impulsos, tão naturais mas tão animalescos e tão nocivos, podem vicejar.
Ricardo Fortunato