As universidades só se podem colocar do lado do tipo de sociedade onde as liberdades de pensamento e de expressão de facto existem, e não das sociedades onde essas liberdades tendencial ou absolutamente não existem.
Texto de Ricardo Fortunato. Imagem: selo duplo da Universidade de Halle-Wittenberg, na Alemanha, considerada a primeira universidade moderna (no sentido de ter sido a primeira a declarar assumida independência dos dogmas religiosos e a proclamar devoção objectiva aos princípios, precisamente, da objectividade científica). Os dois símbolos advêm da fusão das Universidades de Halle e de Wittenberg: o selo esquerdo representa o fundador da Universidade de Halle, Friedrich III de Brandemburgo; o selo direito mostra o fundador da Universidade de Wittenberg, Friedrich den Weisen. As cores por detrás são as cores da bandeira da Ucrânia, país e povo independente, actualmente sob ataque de uma ortodoxia ideológica.
Na nossa actividade, a actividade universitária, não padecemos daquela maleita que, inspirada em leituras imperfeitas do Aristóteles que afirmou o homem como animal político, pretende reduzir toda a interacção humana a uma questão, fundamentalmente, de política — leitura que pode ter, também, contornos advindos de leituras imperfeitas de Foucault, quando alguém se refere nesses termos ao conceito de “poder”, ou de leituras imperfeitas de Marx, no que diz respeito ao conceito de “classe”. Tal maleita, a de se ver tudo como política, é semelhante à de alguém que quisesse reduzir toda uma descrição da actividade humana à biologia — o que é possível fazer-se — ou à química, à física, etc. — também é possível —, visões reduzidas que só nos dariam uma visão parcial de qualquer problema.
Na universidade, para a actividade que lá se pratica, não é necessário sermos animais políticos nem possuirmos, à partida, disposições, opiniões ou potenciais acções políticas de qualquer espécie. Excepto num caso: quando o próprio material com que trabalhamos fica colocado em causa devido a decisões políticas. A nossa situação seria assim, hipoteticamente, como que a situação de um carpinteiro que nunca tivesse pensado em ter uma posição política propriamente dita mas, confrontado de súbito com um governo — talvez de partidos ecologistas e animalistas — que pretendesse proibir o abate de árvores, se veria na circunstância de ficar sem o material com que trabalha, a madeira: e, aí, e só aí nesse ponto, passaria a ganhar uma posição política — posição essa que já possuía em potência, mas que não era relevante nem estava activada. O mesmo assim se passa connosco na actividade universitária. O material com que trabalhamos são as ideias e a expressão das mesmas. E na tradição universitária ocidental — entre altos e baixos — foi e é a prática da liberdade de pensamento e de expressão que constituiu e que ainda constitui o âmago da nossa actividade. Sem essas liberdades, pura e simplesmente não existe universidade tal como a concebemos.
Vem isto a propósito de um conflito militar recentemente despontado na Ucrânia, conflito esse que, além de questões geopolíticas específicas e complexas que o envolvem, é uma boa e muito contrastante ilustração de dois tipos de sociedade: uma, a ocidental, onde regra geral, excluindo casos muito pontuais e aliás abertamente discutidos, vigora a liberdade de pensamento e de expressão; outra, a ex-comunista, ex-soviética e ex-maoísta — as actuais sociedades russa e chinesa, entre outras — onde vigoram regimes censórios de supressão de discurso e de pensamento. Onde são proibidas manifestações. Onde jornalistas e cidadãos, assim como opositores políticos, são presos e/ou assassinados. Onde a comunicação social é quase absolutamente unipolar e controlada pelo estado. Onde, actualmente, a menção de certas palavras (“guerra”, por exemplo) leva a punição. Em sociedades como estas, onde a diferença, em termos de opressão dos princípios da liberdade de pensamento e de expressão face às sociedades ocidentais, é uma diferença em espécie e não em grau, não é possível, no nosso entender, praticar a actividade universitária em plenitude. Nem nas ciências formais, nem nas ciências naturais, nem nas ciências sociais — e ainda, muito menos, nas artes e nas humanidades.
Entendemos este esclarecimento necessário por várias razões. Em primeiro lugar, avaliações morais específicas aplicadas às acções presentes e passadas de cada um dos lados do conflito podem e devem ser discutidas, mas há princípios basilares que, como já dissemos, constituem uma diferença de espécie e não de grau entre esses lados, ou, melhor, entre essas visões do mundo. É certo que qualquer entidade político-militar — já para não falar de blocos militares massivos, como a NATO ou a Federação Russa, neste caso — usa estratégias de guerra suja, guerra satélite, propaganda fundamentada em mentiras, operações secretas à margem da lei internacional, etc. Mas a seguinte distinção deve ser muito clara: geopolítica é uma coisa. Modelos de sociedades no seu todo, e respectivas validações morais, são outra coisa. Assumimos assim muito claramente que um desses tipos de sociedade — a autocrática, centralista e iliberal — favorece a distorção da verdade, a compulsão da mentira e até mesmo o delírio psicótico. O outro tipo de sociedade — a democracia liberal parlamentar representativa — não o favorece de nenhum modo que seja sequer comparável, embora também possa incorrer pontualmente em erros da mesma estirpe. Ou seja, parece-nos inegável que é neste agora citado tipo de sociedade que a actividade universitária pode vicejar na sua plenitude, e que a busca de aproximações à verdade só tem hipótese de acontecer estando presentes as condições basilares que enunciámos.
A situação face à liberdade de pensamento e de expressão de cada um destes tipos de sociedade de agora — tal como então, na época da chamada Guerra Fria — lembram-nos a famosa anedota, do rol daquelas popularizadas por Ronald Reagan, acerca do americano e do soviético que conversam sobre as liberdades existentes em cada um dos países. O americano alega que vive num país realmente livre, pois é possível plantar-se à porta da Casa Branca e dizer que o Presidente dos Estados Unidos é um assassino e um aldrabão, ao que o soviético responde que tem exactamente a mesma liberdade: pode perfeitamente plantar-se à porta do Kremlin e dizer que o Presidente dos Estados Unidos é um assassino e um aldrabão. Por muito anedótico que isto possa parecer, o argumentário — que de facto era, e ainda é, utilizado para justificar que no tipo de sociedade autocrática e illiberal existe não só tanta mas mesmo mais liberdade do que na outra — não anda longe desta chalaça que relatamos. A verdade é definida pelo estado; a liberdade só pode e deve levar à verdade; logo, dizer que o presidente da federação russa é um assassino e um aldrabão não pode ser liberdade, pois tal não é, de acordo com o estado, verdade. Assim se atinge a psicose institucional, da qual, nas nossas sociedades no Ocidente, só temos como exemplo alguns projectos de alucinados, felizmente com pouca expressão.
Permitam-nos agora enunciar vários argumentos que podem ter o seu quê de falacioso no que diz respeito a posições assumidas contra ou a favor deste conflito.
Em primeiro lugar, parece algo utópico afirmar-se, enquanto princípio geral, que não se apoia nenhuma guerra que seja. Como assim? Afinal, se a casa de cada um estivesse a ser atacada, não apoiariam a guerra que a defendesse? Há quem ache inclusive que a “desmilitarização” da Europa, por exemplo, seria algo preferível e que ajudaria a aliviar tensões — o que é, desde logo, um ponto político alicerçado na ideia de que a Rússia ou a China seriam inofensivas. Mas ainda no caso dos grandes conflitos mais recentes, os pacifistas a favor do apaziguamento Nazi não são os mesmos a favor da situação de deterrence da Guerra Fria — excepto no caso de alguns fanáticos religiosos, ou daqueles que, à semelhança da personagem dos Monty Python, responderiam à pergunta “é pacifista?” com “não, sou covarde!”. Ou seja, os primeiros padeceriam de ingenuidade e optimismo ilusório; os segundos entenderiam que o sistema de guerras-satélite, de guerra de espionagem e de guerra económica era preferível ao conflito aberto entre duas potências nucleares. Existem assim diferenças significativas entre vários tons do pacifismo, e não nos parece, pela própria natureza humana que conhecemos, que alguém seja inteiramente pacifista.
Em segundo lugar, várias leituras, todas aliás legítimas mas não propriamente acertadas, sobre a essência e razão de ser de um bloco militar ao qual pertencemos, a NATO, e sobre a essência e razões de ser de outras potências — como a Rússia ou a China, ambas vastas federações que dominam povos distintos entre si — parecem incorrer no seguinte erro: ficam-se pelo relativismo face às opções geopolíticas que já enunciámos acima, sem no entanto prestarem atenção às distinções fundamentais de valoração moral que compõem cada uma destes blocos. A expansão da NATO, ou seja, a adesão de outros estados à sua constituição, é feita em geral por livre vontade dos governos e dos povos dos países que entram para membros. Não é feita através de invasões e de repressão política. Podendo esta aliança militar ser descrita, desta maneira, como uma força fundamentalmente de defesa — sendo muito reduzidos os eventos em que esse princípio foi discutível — não parece claro existir um argumento válido contra a sua expansão, a menos que se entenda que existem factores –como determinadas fantasias imperialistas, realizáveis e substanciadas ou não, conforme patente na ideologia do presidente da federação russa — que têm valor moral superior ao princípio da livre determinação dos povos. Pegando nisto, devemos perguntar: todos os outros estados do bloco ex-soviético que aderiram à aliança, foram coagidos? Foram obrigados? Pior, foram invadidos? Tem a nato uma política expansionista que passe por cima da legítima auto-determinação dos povos? É essa aparentemente legítima auto-determinação dos povos um “valor ocidental”? Devemos rejeitá-lo? Outras questões ainda: a Rússia respeita a legítima auto determinação dos povos? A Indonésia de Raden Suharto respeitava? A China respeita? E o Ocidente, em geral, respeita? Há referendos no Ocidente quanto a autonomias regionais? Há. E a Rússia planeia fazer algum nesse grande território que o actual presidente imagina pertencer todo ao mesmo povo? E a China?
Em terceiro lugar, um outro argumento ainda mais movediço, que entra na linha da anedota que de início enunciámos, é achar que a didáctica tem mais hipóteses de levar à verdade do que a liberdade de pensamento: ou seja, que os povos não sabem bem o que querem. Este frágil argumento passa por explicar que, quando a maioria absolutamente numerosa dos indivíduos e povos do mundo escolhe, quando pode escolher, o modelo de democracia liberal parlamentar representativa, o faz ou fará motivado por vias de “coacção económica”, “propaganda”, chantagem psicológica/política, etc. É possível que assim fosse, mas não será antes completamente implausível que um modelo de sociedade seja tão eficaz, como de facto é, só à base de propaganda e de chantagem? Não é mais provável que seja realmente um modelo melhor e preferível?
Propomos então a seguinte descrição: a antiga Federação Russa, de regime comunista (URSS), e a actual Federação Russa, assim como a China, eram e são autocráticas e iliberais. A Alemanha era autocrática e iliberal antes da Segunda Grande Guerra, mas hoje já não é (mantendo, no entanto, uma tradição q.b. de líderes estáveis no poder durante algum tempo, alternando mesmo assim entre apenas dois ou três blocos políticos, como na maioria das democracias do mesmo tipo). É certo que, no regime democrático, nem tudo são liberdades; mas no regime autocrático muito pouco é liberdade. Há uma diferença abissal. É natural que as classes populares, tidas pelas vanguardas do proletariado como ignorantes e enganadas ou chantageadas pelos Estados Unidos, confundam comunismo com o regime autocrático; afinal de contas, nunca um e o outro, nas suas aplicações práticas, foram distintos. Quem pode culpá-las por fazerem essa confusão? Na verdade, as primeiras pessoas a culparem-se por isso deveriam ser aqueles que se afirmam como comunistas, ao invés de culparem sempre “o árbitro“ ou o adversário. É assim imperativo que quem mostra “dúvidas” quanto às culpas da NATO e das potências ocidentais nas tensões geopolíticas do mundo tenha obrigação de abordar as diferenças fundamentais entre sociedades que reprimem manifestações de qualquer tipo, e onde não existe liberdade política nem de imprensa, e as sociedades, as ocidentais, onde existem essas liberdades. E sejamos claros: a grande maioria dos “povos” não preferem a autocracia, preferem as ditas sociedades liberais. Temos muita pena que os saudosistas de certos regimes totalitários não entendam isso. Continuar a comparar adesões livres de estados e de povos a uma organização de defesa — dentro da qual em geral existe liberdade de expressão, política, e de imprensa — com políticas militares expansionistas de regimes completamente autocráticos — tanto na URSS como na actual Federação Russa — parece um princípio de conversa falacioso à partida. O “português comum”, tal como o polaco, o francês ou o russo “comum”, rejeitam em absoluto essas sociedades, pois são modelos falidos e continuarão a ser. Resta a todos perguntarem-se em que tipo de sociedade preferem viver. A maior parte das pessoas escolhe o primeiro tipo, de livre vontade (mas, já sabemos, alguns alegarão que é por via da “propaganda”, que eles não sabem o que fazem, etc). Estão dispostos a respeitar essas escolhas? Pela nossa parte, como revista universitária, necessitamos das ditas condições básicas anteriormente citadas, presentes atualmente nas sociedades ocidentais, que são não só profícuas mas praticamente essenciais para o trabalho intelectual: a já referida liberdade de expressão e de pensamento — sobre a qual se pode dizer genericamente que não está nem nunca esteve presente em toda e qualquer sociedade ou nação com a qual a NATO tenha entrado em conflito. Portanto para nós a escolha é muito clara, embora existam exercícios de análise importante ao nível de acções geopolíticas específica em relação a todos os lados do conflito. Repetimos então a pergunta: estão dispostos a respeitar as livres escolhas das pessoas?
É bem possível que tudo isto faça parte de uma tradição a que recentemente se convencionou chamar “oikofóbica”, tradição essa que diz “a culpa é do Ocidente” por tudo e mais alguma coisa. O Médio Oriente está mau? A culpa é do Ocidente. A América do Sul, África? É o Ocidente. A União Soviética faliu e implodiu? Foi o malvado do Ocidente. Situações do passado recente das ditas sociedades ocidentais, em que se entende que estas ficaram a ganhar e todas as outras sociedades a perder, são generalizadas como se fossem fenómenos exclusivamente ocidentais. É um erro histórico querer reduzir a figura do “colonialismo” (ou da escravatura, ou do imperialismo), por exemplo, ao Ocidente: são fenómenos universais. Aliás, comparar estados-nações com sociedades tribais pode muito bem constituir um erro categórico fundamental, sendo duvidoso que a nossa desginação de “povos” se possa aplicar a toda e qualquer agremiação material e geográfica de pessoas. Quando alguém, por exemplo, diz que “o Brasil foi colonizado”, está a cometer esse mesmo erro: antes do colono, não existia “Brasil”. O que existia, à semelhança do que noutras partes do mundo, Europa inclusive — embora com outro quadro moral muito superior dado pela linhagem cultural de onde deriva — eram sociedades tribais assoladas por conflitos regulares. Pintar este quadro como se uma série de inocentes indígenas vivessem em paz e de repente chegaram os colonizadores e arruinaram aquele Éden é algo absolutamente falacioso e não há disciplina histórica séria que ponha as coisas desse modo. Aliás, para os defensores destas teorias do Ocidente malvado e do tribalismo pacífico, já experimentaram ir perguntar aos terceiro-mundistas se pretendem voltar ao indigenato? Outro ponto de vista frequentemente levantado é que o Ocidente exerce algum tipo de domínio económico, espécie disfarçada de arte bélica, sobre o resto do mundo, mas isto não tem pernas para andar; a Índia, a China, o Japão, antigas colónias, são hoje potências. Também ficaram a fazer parte do Ocidente malvado, sendo assim? E foram obrigados a isso, ou foi porque quiseram? Ou melhor, dito de outra forma, para concluir: é culpa do Ocidente ter encontrado uma forma de sociedade — democracia liberal parlamentar representativa — que é imensamente superior a outras, de tal modo que é imitada, mais nuns aspectos ou noutros (liberalismo económico, liberdades cívicas, etc)? É culpa do Ocidente? Na verdade, dizer que o Ocidente descobriu isso porque é socialmente ou até mesmo etnicamente superior é que seria uma formulação quase racista com a qual não podemos compactuar. Mas se tem culpa? Tem, tem culpa de ter criado, desenvolvido e exportado esse modelo incomparavelmente mais bem sucedido de sociedade. Por último ainda, nesta conversa existem uma série de termos atirados à toa, sem critério nem definição precisa, que servem frequentemente como arma retórica e não como conceito robusto que parta de uma linha argumentativa honesta. Entre esses está a palavra “imperialismo” quando aplicada quer ao papel económico dos EUA, quer à actividade militar da NATO, quer ao Ocidente em geral, como se qualquer uma destas vertentes fosse comparável a um imperialismo ou proto-imperialismo feito de invasões bélicas e ocupações de território, como no actual caso da Federação Russa. É possível que, tal como outros termos, esta categorização possa parecer tão datada que a faça estar quase ao nível de falar de miguelistas novecentistas ou de cataristas medievais no século XXI, e oferece várias dúvidas; a Espanha actual é um império? A União Europeia? Portugal, com as suas regiões autónomas? Será possível definir esse termo com maior precisão, ou é apenas um chavão aplicado ao tipo de sociedade que é mais livremente preferida pela maior parte das pessoas em todo o mundo?
Convém ainda não passar um pano por cima das acções moralmente censuráveis da parte de potências ocidentais ao longo dos últimos setenta anos. Não passemos, pois: falemos delas. Quando se compara, por exemplo, as presentes agressões da Federação Russa com as intervenções da Arábia Saudita no Iémen, resta-nos perguntar: a Arábia Saudita tem uma agenda internacionalista de “espaço vital”? Não sabíamos. Com certeza que sanções seriam admissíveis no caso saudita: mas há uma diferença entre um estado não ter uma política de conquista militar, apesar de anti-democrático e muito duvidoso em termos de civismo, e a Rússia actual, cuja política expansionista está à vista. As acções de poucas potências Ocidentais no Iraque são outro exemplo: mas por acaso não vimos inúmeras manifestações contra as mesmas que, feliz ou infelizmente, não surtiram efeito? Alguém viu alguma repressão significativa contra as manifestações? Alguém observou proibição das mesmas e da notícia das mesmas e proibição de se referir ao conflito como “guerra”? Eis a diferença entre umas sociedades e outras. Outro exemplo: Hiroshima e Nagazaki. A acção do então presidente dos EUA Harry Truman, embora possa ser perfeitamente contestável, não foi de modo algum insana: partiu de um calculismo muito simples que teve em conta a disposição fanática dos japoneses em lutarem até à última gota de sangue por obediência cega a um regime autocrático. A bomba tomou as vidas que tomou mas poupou muitas mais: esta justificação é amplamente conhecida e não tem grande contestação para quem percebe do contexto na altura. Poderá parecer cínica, com certeza: mas aconselhamos a quem tenha um grande problema com a mesma que vá lá perguntar aos japoneses se querem voltar ao antigo “império” ou se preferem o extraordinário período de paz e prosperidade que se seguiu. Quanto a outro exemplo, Guantánamo e não só: com certeza que tácticas de guerra à margem da lei e da moral foram usadas pelos EUA; mas alguém quer mesmo comparar quantitativamente? Alguém quer comparar prisioneiros acusados de terrorismo sem direito a julgamento com massacres de populações inteiras? Massacres em larga escala, quer na URSS de então quer na presente incursão da Federação Russa, e não apenas em escala pontual. Alguém quer comparar honestamente os eventos de forma quantitativa? E se fossem os EUA um império assim tão tenebroso, colheriam a simpatia de todas as populações que mal se viram livres do jugo soviético correram para as liberdades ocidentais? Foi por propaganda que o fizeram? Ou há tipos de sociedades que são bem-sucedidas e outras que são falidas? A resposta a quase todas estas perguntas parece-nos evidente. Quanto a tópicos mais ligados à situação presente, parece também falacioso referir com ares de assunto arrumado o golpe de estado ucraniano de 2014, ainda pouco estudado e do qual temos pouco conhecimento — nomeadamente porque a Rússia não é, actualmente, um regime aberto, portanto não há consulta de arquivos que nos valha. Adicionalmente, comparar, em termos de “provocação”, mísseis nucleares soviéticos na crise de Cuba em 1964 — a milhares de quilómetros da URSS — com a adesão livre de estados do leste europeu à NATO parece quase uma piada saída da mesma linha de “raciocínio” da anedota que relatámos acima. Ainda neste capítulo de Cuba, é dito — não sabemos se é mito ou história — que a única pessoa maluca o suficiente para ter considerado a guerra nuclear nesse cenário foi Fidel Castro, mais papista que o papa: disse aos russos, em telefonema, que o “povo cubano estava preparado para o sacrifício final”, enquanto os russos segredavam entre si “este tipo é maluco”. Por último, lembrando as semelhanças entre o argumento usado pela federação russa actualmente e o argumento usado pela NATO para a intervenção na Jugoslávia em 1999 — a existência de um genocídio –, há só uma coisa que nos temos de perguntar para aferirmos a verdade de uma ou outra afirmação: onde é que existe imprensa livre? É mais plausível a palavra de uns ou de outros? Nomeadamente quando alguns especialistas ocidentais, onde se incluem generais da NATO e um ex-director da CiA afirmam que “ao longo de todo o espectro político da Rússia” a aversão à expansão da NATO é real. Está bem: mas será que podemos falar realmente de um “espectro político” num país que não é de todo uma democracia, que controla a comunicação social, que reprime — e assassina — jornalistas e opositores políticos? Estamos a brincar? Como é que se pode falar de um “espectro político” numa autocracia? É importante assim lembrar que dali saem números, pseudo-factos, leituras subjectivas de políticas e de interpretações da vontade do povo que partem de um regime absolutamente autocrático, repressivo, onde não há liberdade de imprensa nem de expressão política — tanto na Rússia de hoje como na URSS de então.
Somos assim universitários pluralistas: e esta pluralidade não é neutral na sua génese, ou seja, só é possível em certos contextos e conforme certos princípios que já enunciámos e voltamos agora a enunciar. Mas sermos plurais significa que conhecemos os argumentos de quem compreende a posição da Federação Russa ou culpa também o Ocidente pelos eventos actuais. Conhecemos esses argumentos e sabemos elencá-los na sua totalidade, pesá-los e medi-los, e colocá-los na equação do que estamos a dizer. Mas conhecemos também outras ideias — que talvez as tradições do pensamento autocrático, totalitário e illiberal não conheçam –as quais subscrevemos: nomeadamente, que a tradição universitária europeia — que aliás deu origem a quase todos os pensadores que hoje veneramos, inclusive os de outras paragens que se vieram educar na Europa — requer em absoluto os princípios que enumerámos — liberdade de pensamento e expressão — para funcionar. Que esses princípios passam por tradições greco-romanas, judaico-cristãs, etc, com maior ou menos intensidade, e que não temos qualquer problema em reconhecer a origem histórica e cultural disso. Portanto somos universitários, sim, no autêntico sentido da palavra. Achamos, enquanto revista de estudantes em absoluto comprometida com a democracia liberal parlamentar representativa — pois é o regime onde a nossa actividade, que passa pela liberdade de expressão e pela crença na verdade objectiva, pode vicejar — achamos que este conflito tem feito muitas pessoas feliz ou infelizmente “saírem da casca” em relação ao totalitarismo mental, político e anti-intelectual onde vivem. A NATO não se expande contra a vontade das populações, antes pelo contrário. A Rússia, como a URSS então, aparentemente sim. Pela nossa parte, não temos qualquer dúvida sobre o regime que preferimos, tal como pessoas devidamente esclarecidas há cinquenta anos atrás também não tinham.
Por último, continuamos assim a achar algo curioso e até suspeito que se insista em comparar sociedades onde ocasionalmente, em tempos de guerra ou de pré guerra, se excluem determinados autores, desportistas e civis em geral da atividade profissional, como tem acontecido, de várias maneiras, no Ocidente perante a situação actual, e outras sociedades onde quem disser a palavra “guerra“ ou quem protestar seja por que forma for na rua vai imediatamente preso. Assim, queremos deixar uma nota quanto a várias acções tomadas acabo por agentes privados e públicos, aqui, no Ocidente, quanto a repressão de expressões várias — artísticas, desportivas, etc. — de origem russa. Não parece, neste momento, a coisa mais adequada nem sequer eficaz a fazer. Somos irredutivelmente contra políticas de cancelamento em geral, mas somos também capazes de abrir uma excepção para situações de guerra, embora aí também com muitas dúvidas. No entanto, temos que admitir que essa tradição, a da repressão de cidadãos da parte com a qual se está em conflito, existe, que tem as suas razões, mais fracas ou mais fortes (podendo tais razões ser descritas, insipidamente, como uma série de medidas de distância higiénica face a uma parte inimiga com a qual nos encontramos em confronto mortal). No entanto, neste momento nem a NATO, nem União Europeia, nem Europa em sentido abstracto estão em guerra com a Rússia; portanto parece absolutamente escusado retirar-se Dostoievski ou Tolstoy das bancas das livrarias. No entanto, lembramos também que, ao contrário do que se tem passado em sociedades autocráticas como a Rússia atual, onde as imposições de controlo do discurso são gigantescamente totalitárias, chegando ao ponto de proibir a menção da palavra guerra e de qualquer manifestação contra o conflito ser imediatamente reprimida com penas de prisão, o que tem acontecido no Ocidente são, em geral, acções de agentes privados ou poderes públicos mais diminutos como municípios terem decisões aparentemente legítimas de mudança de programações culturais, desportivas, ou de alocação de fundos públicos. Não existem actualmente no Ocidente, pelo que saibamos, directivas gerais, advindas de poderes centrais, em grau significativo, que se imiscuam no terreno da livre expressão e da livre divulgação de actividades e de pensamentos de pessoas pertencentes a parte inimiga. Caso viesse a existir um conflito assumido, não é de descurar que tal pudesse acontecer e, como já dissemos, tais opções têm prós e contras e pertencem a períodos excepcionais.