Texto de Guilherme Limas Machado.
A eutanásia é um daqueles raros assuntos cuja preponderância no discurso público é responsabilidade da esfera política – ao contrário de outros, como a habitação e a educação, que tanto dano causam no quotidiano mas que perante tabelamentos do défice e investimentos milimétricos na banca pouco alarido fazem nos corredores em São Bento. Com a aprovação da lei, a prática da eutanásia torna-se legal, depois de um veto e uma dissolução da Assembleia, para o alívio de… bem, algumas pessoas.
Eu tenho alguma dificuldade em colocar a eutanásia no mesmo nível que as outras questões fraturantes relacionadas com os direitos civis, como o aborto ou o acesso à saúde. Não considero a prática de matar um paciente um “direito” ou a “salvaguarda da responsabilidade individual”, mas sim a reconfiguração jurídica do espaço que a morte ocupa no nosso imaginário social, e a forma como a sociedade ocidental lida com a mesma. A verdade é que para mim, a própria existência da discussão ao redor da eutanásia parece demonstrar algo de muito particular sobre a Europa e a América do Norte – uma espécie de individualismo hiperbolizado ou uma decisão pessoal radicalizada. Não obstante o facto de que a eutanásia já é praticada nos hospitais pelo mundo fora há já muitas décadas de uma forma ou outra – lembro-me de uma história que uma amiga enfermeira me contou sobre um paciente oncológico que foi deixado a morrer numa sexta-feira para libertar a cama para segunda-feira – o seu debate representa algo mais do que meros direitos civis ou uma prática discursiva judicial. Acho que isto é um símbolo sobre uma dessacralização da morte, de um mundo que no seu medo judaico-cristão do julgamento final, deixou de saber morrer em paz e com dignidade. Acho que a eutanásia é muito mais do que um direito pelo qual temos de lutar, sendo que esta assemelha-se mais a uma consequência radical da intensa vontade do nosso sistema económico de prolongar a permanência dos corpos até ao final, seja pela produtividade capitalista ou pelo próprio discurso biopolítico que desrespeita a morte como o caminho natural e a única certeza que temos à nascença.
Ao estudar a História das Mentalidades do período medieval, deparei-me com o conceito de “boa morte”. Esta morte não é o que parece: não estamos a falar de um indivíduo que está felicíssimo pela sua vida que cessa. Mas esta pessoa, imbuída de uma mentalidade medieval que aceita o seu julgamento como parte tão natural da vida como o nascimento[1], reúne-se com os seus familiares no leito de morte, divide os bens, escreve um testamento e deixa indicações finais para serem cumpridas após o seu falecimento: pais-nossos, umas missas e talvez algumas esmolas e doações aos frades e mendigos da região. A morte não é a tragédia romântica de Camilo Castelo Branco, mas sim a tradição heróica clássica de quem morre orgulhoso e concretizado com o mero conhecimento de que percorre o curso natural da existência. A “boa morte” é um conceito que pode ser aplicado à maioria do tempo que a Humanidade existiu: desde os ritos funerários paleolíticos, às tumbas egípcias e até ao cuidado familiar do corpo do defunto durante o Período Clássico. A morte foi, durante grande parte da História da humanidade, muito mais do que o fim abrupto de uma vida, foi também quotidiano, ritual e continuidade das relações e ligações estabelecidas em vida com pessoas e objetos.
O que aconteceu então, ao mundo Ocidental e a sua morte? Passámos da morte como prerrogativa absoluta do soberano, como sina inexorável do tempo para hospitais frios e mórbidos, valas comuns e esquadrões de fuzilamento que matam moços de venda nos olhos. Para isto, gostava de trazer à tona um caso que fica como contrapartida à morte medieval. Na década de 80, no pico da epidemia de HIV nos Estados Unidos, a ilha de Hart em Nova Iorque foi o epicentro do que eu considero ser um dos principais exemplos da visão sanitária e biopolítica da morte: nesta ilha os mortos pela doença foram enterrados, sem família, sem ritual e sem “morte boa” em valas comuns, tudo sob o pretexto do controlo epidemiológico. Morte dessacralizada? Talvez. Mas eu iria mais longe e diria que a própria vida perdeu o seu caráter divino que com a beleza da existência acarreta a necessidade de morrer, para dar lugar à abordagem matemática e científica de controlo dos corpos, das doenças e das sensações. O mundo ocidental trocou os rituais que permitiam morrer pelas folhas de tabelas com números e com as práticas de controlo não apenas do indivíduo, mas da própria massa dos humanos. Regular, proteger e manter vivo ao máximo: são os pilares de uma política de morte que se relaciona tanto com a necessidade de manter uma força de trabalho regulada em número e intensidade como com o desaparecimento do ritual da vida privada e pública, para dar lugar à morte fria e anónima. Nietzsche avisou-nos que tínhamos morto Deus, mas a nossa maneira de morrer deixa parecer que matámos também o que havia de mais humano e natural em nós.
A eutanásia não pode, portanto, ser vista como uma continuação de um direito natural que permite ao indivíduo escolher o dia e a sua forma de morrer. Não, a eutanásia é uma imposição no sentido em que já não permitimos como sociedade a morte digna e natural, para dar lugar aos corredores frios de Hospitais assustadores e cuidados paliativos que retiram ao processo de deixar a vida a sua honra e natureza outrora divinizada. É uma continuação, um corolário de uma prática que retira ao corpo humano a sua prerrogativa de deixar de funcionar e ao espírito a possibilidade de com isto lidar de forma saudável. Se devemos permitir que uma pessoa decida morrer? Esta questão não se coloca pois é indiferente perante o que a Eutanásia representa no contexto da nossa mentalidade e imaginário social. Não faz sentido recusar a um paciente às portas da morte a possibilidade de decidir morrer. Mas tampouco é aceitável que não sejamos críticos perante o que a eutanásia significa no contexto do discurso que a nossa sociedade tem sobre a morte e a vida. Mais do que um direito, é uma consequência do desrespeito ao indivíduo durante a hora da morte – o corpo deixa de ser um templo para ser uma máquina que precisa de estímulos para manter a sua vida.
O que devemos realmente questionar é se como sociedade temos ainda as ferramentas e as práticas que nos permitam ver a morte como continuação da vida em vez de uma miserável ocorrência. O luto, o choro, a expressão descontrolada de emoções: o ritual é fundamental e torna-nos humanos, e na sociedade neoliberal parece que a convivência com a morte, a sua existência no nosso quotidiano, foi relegada para um segundo plano em prol de um aparato de segurança. Não apenas esquecemo-nos como se morre: esquecemo-nos como se vive em ritual e em comunhão, numa comunidade de entreajuda e de apoio mútuo, na qual a morte, tal como o nascimento, o casamento e a reprodução, é um aspeto essencial.
Guilherme Limas Machado
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Ver História da Morte no Ocidente de Philippe Ariès, e o belíssimo ensaio de Maria de Lurdes Rosa, A Morte e o Além, em História da Vida Privada em Portugal, Bernardo Vasconcelos e Sousa (coord.) ↑