Sobre Sociedades Abertas e Sociedades Fechadas

Sobre que tipo de sociedade é que permite o trabalho universitário e que tipo de sociedade é que não o permite — e consequentemente que posição é que a universidade deve tomar em certos conflitos. Texto de Ana de Oliveira Sérgio.

A posição das universidades, no nosso entender do que são universidades, quanto a conflitos militares não tem necessariamente de ser partidária de um ou outro dos lados por meras questões morais não fundacionais, por meras contingências circunstanciais, ou por políticas de modo geral. O único critério que pode coerentemente alicerçar tais posições é o critério da determinação do que é necessário para o trabalho universitário. Tal como tivemos oportunidade de apontar no dealbar do conflito entre a Rússia e a Ucrânia, é preciso deixar muito e bem claro qual é o tipo de sociedade em que as condições basilares para o trabalho universitário estão presentes — nomeadamente a liberdade de associação, de expressão e de pensamento — e aqueles tipos de sociedades onde não estão.

Antes disso, porém, talvez outros aspectos de cultura e de ética possam ser levantados como fundamentais e talvez apriorísticos às noções de liberdades básicas que entendemos necessárias para o trabalho universitário. Por exemplo, a dignidade basilar do indivíduo e o valor da vida humana parecem ser condições que de certo modo prefiguram e são necessárias para as ideias de “liberdade” e de “pensamento”. Não é possível, portanto, a existência do trabalho universitário tal como o entendemos numa sociedade em que essas noções estejam completamente deturpadas em relação à sua leitura nas culturas em que as universidades nasceram — e que não diferem muito daqueles que são os enunciados básicos comuns e quase universais conducentes à coerência lógica e moral do pensamento humano em todas ou quase todas as sociedades civilizadas de relevo, entre as quais a China e a Índia milenares, por exemplo, assim como o Japão, etc. Distingamos pois claramente essas amplas construções sociais chamadas e consideradas civilizações de relevo de pequenas experiências bárbaras que podem até substituir em durabilidade durante tempo significativo mas cujo contributo para a cultura e o conhecimento universal não é significativo.

Não é em qualquer aglomeração de vários indivíduos conducente à substanciação de algum tipo de conhecimento que encontramos aquilo que entendemos por universidade. Uma catequese não é uma universidade. Uma madrassa não é uma universidade. Uma assembleia tribal não é uma universidade. Um grupo de amigos em lazer urbano ou rural não é uma universidade. Um parlamento político não é uma universidade. Um fórum grego ou um senado romano não são universidades. Em nenhuma destas situações que constituem agregados de pessoas à volta de si mesmas ou de um objecto de culto — o altar, o maioral, o charro — existe a necessidade de pré-condições específicas que reportam à lógica dos argumentos e à busca desinteressada do conhecimento, que é tanto um descomprometimento — no sentido dessa busca ser desinteressada — como um comprometimento — no sentido de se acreditar em algo como “conhecimento”, por muito dúbio que o termo e o conceito sejam (até hoje ninguém sabe ao certo o que é “conhecimento” e qual a sua forma última e como se aloja). Exercícios radicais e ainda mais descomprometidos da imaginação podem até encontrar condições noutros teatros — como o do grupo de amigos a beber ou a assembleia tribal — para construções mentais aventurosas muito mais expansivas. A universidade não é assim: alicerça-se na tradição da lógica e da objectividade. Há quem diga que reporta, em primeiro lugar, ao filósofo grego Sócrates, o inaugurador dessa tradição já não experimentalista, como na anterior filosofia grega, mas determinada pelos contornos difíceis mas inegáveis do argumento lógico.

Há tipos de sociedade que favorecem estas tradições e há tipos de sociedade que não favorecem. Apesar da Grécia antiga não considerar todas as pessoas universalmente como pessoas com os mesmos direitos, conseguia dentro desse arranjo longe ainda da cristandade — essa mesma que dá alicerce a muitos que hoje se consideram “humanistas”, como se tal consideração sobre o valor universal de cada pessoa humana tivesse nascido do nada — um certo arranjo de condições que preludiava um entendimento da pessoa humana e do entendimento humano como minimamente coerente e sistematizável — conjunto de valores que mais tarde desaguou no imago dei da tradição judaico-cristã já inteiramente maturada. É aqui que as universidades existem. O que está fora disto não é universidade. Pode ser muitas outras coisas, mas não é universidade.

Vestígios arqueológicos no local da Academia de Platão

Certas sociedades, então, alicerçadas no e expandidas através do barbarismo mais amplo, não são sociedades nem sequer conducentes à ideia de universidade conforme a entendemos de origem e verdade, nem sociedades onde seja possível a supremacia moral ou institucional dos valores anteriormente enunciados — primado do indivíduo, local ou universal; primado de certos princípios da lógica e do valor próprio do conhecimento daí derivado; primado da liberdade de expressão e pensamento necessárias para aí chegar. É o caso, tememos dizê-lo, das sociedades hoje dominadas por variações de barbarismo primitivo entre as quais se contam aquelas inclinadas para o islamismo radical. Não é preciso qualquer conhecimento aprofundado de religiões para perceber que algumas são mais dotadas de condições para o aparecimento daquelas características que enunciámos do que outras. Mas, se alguém quiser mergulhar nessa pesquisa, provavelmente encontrará razões de fundo para as coisas serem assim.

No presente confronto entre dois povos perfeitamente estabelecidos desde há milénios num território, independentemente de a “identidade cultural” de um — os árabes palestinianos — ser bastante mais duvidosa que a “identidade cultural” de outros — os israelitas —, e independentemente de sectores religiosos fanáticos nos segundos, existem diferenças claras na ética e disposição básicas das duas. A primeira alicerça-se na teocracia; a segunda na democracia, ou, na medida do possível, e este é um apontamento para os “relativistas”, na imitação mais aproximada possível da democracia — caracterização que seguramente não caberia bem em qualquer sociedade dominada pelo absolutismo islâmico e por atavismos culturais bárbaros hoje ainda inteiramente presentes em culturas árabes e não só (é proibido dizer isto claramente?). A primeira alicerça-se num culto de morte e de ódio instigado fortemente pelos radicalismo islâmicos, onde o “martírio” até mesmo de crianças é glorificado, e o ódio ao inimigo, com ou sem razão, suplanta largamente qualquer apreço à vida dos próprios, enquanto que a segunda tem como participantes efectivamente cultos rácicos e religiosos supremacistas mas perfeitamente enquadrados numa sociedade de equilíbrio de poderes de raiz democrática, à semelhança da maior parte das sociedades ocidentais. Por último, a primeira tem um grau de desprezo institucional e estrutural pelas liberdades básicas do indivíduo conforme hoje o entendemos, o que inclui mulheres e homossexuais, enquanto que a segunda é capital de festivais gays e já teve uma mulher como primeira-ministra. Que fiquem assim bem claras, além do romantismos de bandeiras, lenços e muita conversa da “independência” e da “libertação”, sobre que sociedades são estas e como é que estas sociedades podem albergar universidades — e consequentemente que posição é que as universidades devem tomar perante elas, se é que as mesmas tem qualquer interesse na existência e na auto-preservação. Vamos supor que sim.

A criação das universidades não surgiu do nada: tem uma base cultural, histórica, e uma ligação clara ao fio grego-romano primeiro e judaico-cristão depois, e o da cultura europeia primeiro, ocidental depois. Experiências de centros de conhecimento noutra paragens e noutras culturas ao longo da história constituem ou podem ter constituído bons ensaios de coisas parecidas, mas a universidade conforme a entendemos, e conforme a instituição de raiz europeia que foi exportada para todo o mundo, está culturalmente modelada e não representa uma instituição humana universal — como os berçários sob qualquer forma ou a refeição em comunidade — mas sim uma construção específica, naturalmente frágil mas igualmente dona de uma subsistência e de um sucesso notável.

Isto leva-nos ao título desta breve peça: a sociedade aberta. Termo hoje muito popular, usado não com inteira certeza do que se está a falar, mas com relativa noção de que existe algo, em termos de organização social, mais respirável do que tribalismos primários ou colectivismos acéfalos, a sociedade aberta é um conceito que deriva dos liberalismos setecentistas e que fizeram o seu caminho até hoje com notável vinculação crescente e taxa de sucesso muitíssimo alta. Sendo identificada por alguns como tendo a sua primeira manifestação mais rigorosa na Grécia antiga, a sociedade aberta distingue-se da sociedade fechada — onde impera um dogma fixo de leis, moral e religião — pelo exercício crítico e consciente da razão na constituição de equilíbrios de poder e mecanismos pacíficos e não bélicos de adaptação e regulação das relações sociais através daquilo a que resumidamente chamamos de democracia — ou, numa formulação não essencialista, de sistemas democráticos propriamente ditos. É nestas sociedades que é possível a existência e que foi possível a emergência daquilo a que chamamos de universidade, e não só da sua instituição em concreto mas do primado de uma série de condições sem as quais não podem existir: a liberdade de expressão e pensamento, o reconhecimento da razão e da lógica como tipos especiais de pensamento humano, e a aceitação do método crítico socrático como instrumento chave da verificação e falsificação a que hoje chamamos de científica.

É lamentável portanto que algumas franjas de chicos-espertos “activistas”, frequentemente ligados à extrema-esquerda política, embora também advenham do campo contrário algumas teorias da conspiração por vezes já demasiado caricatas, subsistam em posições relevantes nas universidades, seja no campo da investigação, da docência ou mesmo a direcção, de onde têm partido as mais escandalosas posições, tomando de princípio a obscena posição de defesa daquele que vêem como um povo “oprimido” imediatamente na sequência de um atentado terrorista absolutamente bárbaro, fora de qualquer nexo de guerra normal ou mesmo de acções de resistência com vista a alvos militares ou de relevância civil estrutural para o regime, ao invés de saberem separar as águas e saberem que o que se passou não se assemelha minimamente a qualquer passo inteligível de uma “luta de libertação” (fosse lá o que isso fosse na situação presente) mas sim a um acto de barbarismo obsceno de violência gratuita e doente aplicada indiscriminadamente sobre civis completamente alheios ao conflito, acto esse só possibilitado por uma mundivisão alicerçada em cultos de morte suicidas e totalitários que estão completamente no avesso das culturas em que vivemos livremente e que permitem a que esses “iluminados” possam vomitar as suas larachas “anti-sistema” sem serem importunados.

Tal como na invasão da autocrática, expansionista e imperialista Rússia à não tão autocrática, mais democrática, nada expansionista nem imperialista Ucrânia — e agradeceríamos que alguns iluminados geoestrategas fossem chatear outra com as conversas da “NATO”, instituição à qual aderiram voluntariamente todos os seus membros e cuja predominância do modelo democrático é comparativamente inegável — a situação presente no ponto de vista das universidades parece clara em termos de se saber em que tipo de sociedade é que estas podem existir e em que tipo de sociedade é que não só é inconcebível a sua existência mas em que é inconcebível a existência comum e civil da vida e dos valores primários conforme os entendemos, e que seriam seguramente inviáveis para a vida desses referidos “iluminados” — tal como na segunda metade do século XX muita da academia torcia aberta ou secretamente pelo “paraíso na terra” chamado URSS mas nunca na vida levantaram o traseiro da cadeira e foram para lá viver, nem jamais o fariam ou conseguiriam fazê-lo (a menos que fosse a convite do partido).

Queremos então deixar aqui bem claro que há culturas onde este tipo de instituição simplesmente não pode existir e há culturas em que, mesmo com pontuais limitações, o nexo ético e a inclinação cultural em geral acolhem e permitem a sua existência em plena liberdade. No presente conflito, é óbvio de que lado é que as universidades devem estar, pela própria natureza das coisas: é do lado em que vigora não apenas na prática a efectivação mais básica daquilo que entendemos por liberdade de expressão e de pensamento, mas também onde vigoram as pré-condições morais basilares e civilizadas — respeito pela vida humana dos próprios, respeito pelo indivíduo, respeito pelas crianças — que permitem a essa mesma liberdade de expressão e pensamento existir e sem as quais nada do que se concebe como trabalho universitário é possível.


Como coda deste texto, que representa uma posição editorial, queríamos, por último, de forma muito sucinta, e notando com alguma preocupação alguma cobertura noticiosa recente, de tendência “activista”, não só passar por cima com notória leviandade de factos culturais e históricos básicos, mas também engolir facilmente e transmitir histericamente clara propaganda de guerra, particularmente de grupos terroristas sem qualquer credibilidade, fizemos questão de assinalar alguns esclarecimentos sobre o conflito entre judeus e árabes na zona da Palestina, a partir dos quais se pode ter uma conversa séria:

  1. existe guerra civil há mais de 100 anos ou há mais de 2500 anos (recomendamos a primeira leitura), entre árabes e judeus naquela região, mas também entre etnias dentro dos próprios árabes;
  2. não existe nenhuma caracterização sólida de “genocídio” aplicável a expressões dessa guerra civil; a classificação de “apartheid” é dúbia, dado os direitos cívicos dos árabes no estado de Israel e os controles fronteiriços naturalmente resultantes da situação de segurança resultante da guerra civil;
  3. não existia nenhum estado árabe nem nenhum estado judeu antes da fundação de Israel, durante o mandado britânico daquela região;
  4. existia uma unidade cultural judaica mas não existia, nunca existiu e possivelmente ainda hoje não existe nenhuma unidade cultural dos árabes residentes na região, sendo que a lógica tribal própria das culturas locais impera;
  5. Israel é a única democracia consolidada e credível da região, com eleições livres — para todos os cidadãos, incluindo árabes, que têm representação política —, com pesos e contrapesos (partidos de oposição, ramos do estadotribunais, etc.); todos os regimes em redor, de etnia árabe e religião muçulmana dominantes, são imitações de democracias, com quadros políticos e legais restritivos de direitos humanos (religiosos, sexuais, políticos, artísticos, etc.);
  6. Israel não tem um plano de “judaização” do mundo; muitos ramos do Islão radical têm planos de conversão do mundo à força e quadros morais de desumanização do não-crente;
  7. ética de guerra de parte da cultura de árabes palestinianos e do islão mais radical envolve a glorificação do martírio, inclusive de crianças, um quadro moral em que o valor da vida dos próprios é mais diminuto do que é para os ocidentais, e uma cultura de ódio e de morte que nos é estranha; estatísticas de vítimas devem ter isto em conta;
  8. ambos os lados cometem crimes de guerra, como infelizmente é invariável acontecer em teatros de conflito prolongados e complexos.

Qualquer destes pontos é superficialmente discutível, mas incontornável, numa conversa sobre o assunto.