De “Strange Fruit” a “God Bless the Child”: recordamos uma das vozes mais marcantes e inconfundíveis do jazz, Billie Holiday (1915-1959). Texto de Sofia Alexandra Carvalho, em parceria com jazz.pt.

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

Carlos Drummond de Andrade

O grau de lirismo oblíquo que percorre o título é acentuado pela força trágica que envolve uma das vozes mais marcantes e inconfundíveis do jazz: Billie Holiday (1915-1959), nome artístico de Eleanora Fagan Gough, também conhecida por Lady Day, tal como cunhado pelo saxofonista Lester Young, um dos seus mais próximos amigos, talvez o único, segundo Richard Havers.

A sua autobiografia cantada, intitulada “Lady Sings The Blues” (1956), ampliando o perfil magnético “desses que vivem na sombra”, torna-se o testemunho inequívoco de uma “Trav’lin Light”, segunda canção-poema que compõe este álbum singular ao combinar, com soul, as fronteiras entre a vida e a arte.

Os contornos da passagem de Billie Holiday pelo “mundo mundo vasto mundo”, como cantado por Drummond, por muito acidentados e adversos (com uma infância e adolescência superlativamente violentas – abusos, vagabundagem e prostituição – e uma fase adulta perturbante), não são mais vastos do que a voz imponente que a imortalizou.

Simultaneamente forte e murmurante, esta elegante e glamorosa vagabunda, no sentido literal, surge na cena jazzística em clubes noturnos de Harlem, tentando emular a sua heroína Bessie Smith. Aqui, é ainda um anjo que se desconhece, como diria o poeta Teixeira de Pascoaes. Graças à intervenção de John Hammond (1910-1987), crítico e produtor de música, a futura Lady Day grava, em 1933, com a orquestra de Benny Goodman, sem deixar nenhum indício sobre a intensidade da sua luz.

Passado um ano, Hammond consegue persuadir a Brunswick Records a gravar uma colaboração entre Holiday e a orquestra de Teddy Wilson: “Miss Brown To You”, “What a Little Moonlight Can do”, “I Wished Upon the Moon” e “A Sunbonnet Blue” marcam, de modo inextinguível, a história do jazz.

No entanto, só a partir de 1936, Billie Holiday consegue deixar a sua marca de artista individual, como cantora e compositora. Em 1937, colabora com a Count Basie Orchestra e, em 1938, com Artie Shaw, tornando-se a primeira cantora negra a acompanhar uma orquestra. A atmosfera de segregação que toldava esses tempos, agudizara o desencanto de Billie Holiday por este mundo e, no mesmo ano, abandona a orquestra de Shaw, depois de ter sido compelida a usar a porta da cozinha do Hotel Lincoln, em Nova Iorque, ao invés da porta principal.

A partir daqui, Lady Day começa a encantar e a assombrar o público do Café Society, em Greenwich Village, com as suas performancesde “I Cover The Waterfront”, entre tantas outras. Um dos seus devotos auditores, Lewis Allan, pseudónimo de Abel Meeropol (1903-1986), poeta e professor judeu de uma escola pública de Nova Iorque, foi responsável pela extraordinária e pungente composição do poema “Strange Fruit”. Numa dessas noites míticas em Greenwich Village, Allan perguntara a Barney Josephson (1902-1988), dono do Café Society, se a cantora não se importaria de interpretar uma música escrita por si. A edição deste poema-protesto, escrito como um manifesto portentoso contra o linchamento de afro-americanos, foi recusada pela Columbia Records, tendo saído a lume pela Commodore Records, uma editora mais modesta.

Enquanto a vida pessoal de Lady Day é marcada por sucessivas desilusões (relações amorosas instáveis e casamentos tóxicos e abusivos, como por exemplo com Jimmy Monroe e John Levy), a sua vida artística começa a desenhar-se com a luz rara de um anjo torto, enfeitado com gardénias nos cabelos e luvas charmosas a esconder os braços macerados pelo vício da toxicodependência.

Em 1944, Lady Day assina contrato com a Decca Records, editando o álbum “Lover Man”. Em 1945, participa no “Jazz at the Philharmonic Auditorium”, ou JATP, uma série de concertos, tours e gravações de jazz ideados e produzidos por Norman Granz (1918-2001). Em 1947, interpreta Endie no filme “New Orleans” (1947), dirigido por Arthur Lubin, encarnando o papel de uma serviçal negra, cuja voz comporta uma mudança na história da música. Em contracena perfeita irrompe o seu par: Louis Armstrong ou Satchmo, como ficou conhecido, um saxofonista de sorriso e sons irradiantes, com a sua Happy Dixie Band.

Em Maio de 1947, Billie Holiday é presa por posse de estupefacientes. Após cumprir a pena de um ano de prisão, sobe aos palcos e arrebata o auditório de Carnegie Hall, esgotadíssimo, com um repertório extenso (perto de trinta canções), que incluía “All of Me”, “Fine and Mellow” e, como não poderia deixar de ser, “Strange Fruit”. Em 1954, encontra um novo amor, Louis McKay, que a afastou da dependência das drogas, tendo, nesse mesmo ano, realizado uma tour pela Europa. Em 1957, casa com Mckay, mas a felicidade matrimonial é abalada quando a artista descobre que o marido apostara e perdera o seu dinheiro em especulações financeiras.

Lady Day regressa aos velhos hábitos, aliando-os ao excesso de bebida. Depois da morte de sua mãe, o golpe fatal deu-se com a morte de Lester Young. Dois meses depois, Billie Holiday é internada no Hospital Metropolitano de Nova Iorque (tendo a sua entrada sido recusada num primeiro hospital), fruto do agravamento da cirrose hepática, que lhe houvera sido diagnosticada. Morre acorrentada à cama, presa por um polícia que a enfermeira responsável chamara ao encontrar drogas na sua cabeceira.

O quadro da vida e da arte desta sombra luminosa, simultaneamente trágico e sublime, foi interpretado por Diana Ross em “Lady Sings The Blues”, filme datado de 1972. Em 2021, Andra Day assume com brilho o mesmo desafio em “Estados Unidos vs. Billie Holiday”.

Um anjo torto irrompe, assim, como uma expressão metonímica para demónio, reforçando o étimo: o daimon da música habitou Billie Holiday, enquanto o mundo a consumiu. Ante a gravidade e a dureza biográfica do “mundo mundo vasto mundo”, a rima de Drummond de Andrade lembra que “mais vasto é o meu coração”: “gauche” ou desastradana vida, mas grácil e inesquecível na Arte. “God Bless the Child” or the Crooked Angel.