Um Trecho: A Vida do Condestável Nuno Álvares Pereira

“De velha nobreza do Reino, transmontana e cruzada de nobre sangue leonês, era filho ilegítimo de D. Frei Álvaro Gonçalves Pereira, prior da Ordem Militar do Hospital, de monjes cavaleiros, regrantes de Santo Agostinho, e duma donzela da corte, Iria Gonçalves do Carvalhal, também de boa linhagem. Nascido, pelo S. João de 1360, em pleno coração do país, numa abadia militar da Ordem, a de Cernache de Bonjardim, na Beira Baixa, ali foi criado e medrando junto do pai, pelos vaticínios do horóscopo dum Mestre Tomás, astrólogo, que à nascença lhe prediziam um glorioso destino de cavaleiro invencível. Seus quietos anos de infância, os viveu a ‘gran viço’, longe do mundo e do seu tumulto, adestrando-se no exercício das armas, na equitação, em ardis de guerra, e enlevado nos mistérios litúrgicos dos ofícios divinos e em suas leituras de maravilhosas lendas do ciclo do rei Artur, pois, segundo a crónica, ‘muito usava ouvir e ler livros de histórias e especialmente a história de Galaaz em que se continha a suma da Távola Redonda’. O cavaleiro puro, de assombrosas façanhas, fizera o seu modelo ideal de regra de vida cavaleiresca; e, no silêncio da sua alma, fizera como ele o voto íntimo de virgindade, castidade perfeita, para que, por essa virtude, viesse a realizar grandes feitos de armas. Seu pai o levaria, por vezes, ainda mesmo, ao poderoso mosteiro-fortaleza da Flor da Rosa, no Crato, grande Comenda da Ordem, na fronteira do Alto Alentejo. Tudo isto, num tenro espírito de criança e de precocidade ardente, lhe elaboraria, ao alvor da adolescência, visões e ambições de indefinível riqueza espiritual e moral. E aos treze anos o levou a apresentá-lo na corte, então a coberto dos muros de Santarén, onde o rei D. Fernando, na sua ‘covardice de corazon’, se refugiara da invasão castelhana de 1372, com a rainha adúltera D. Leonor Teles, sem esboçar sequer um gesto de resistência; e logo ali despontava o génio militar do moço Nun’ Álvares, num reconhecimento a que seu pai mandou, com alguns cavaleiros e escudeiros da Ordem, a observar a passagem, perto de Santarém, do exército invasor sobre o seu objetivo estratégico – Lisboa. Entusiasmada com as lúcidas informações do moço, a rainha o tomou então para seu serviço na corte, instigando o rei a armá-lo cavaleiro, servindo-se das armas e do reduzido arnês doutro moço, apenas um ano mais velho do que ele, o bastardo real D. João, já Mestre de Avis. Singular presságio dum deslumbrante destino de indefectíveis irmãos de armas! Aos 17 anos, e a despeito da sua desesperada resistência pelo voto íntimo de castidade, via-se casado, em cumprimento da firme resolução paterna, com uma rica-dona, D. Leonor d’ Alvim, da mesma idade e viúva-donzela dum poderoso cavaleiro de Riba-Douro, cujas terras e honras, como segundo marido, o condenavam irremissivelmente a uma folgada mas amorfa existência de grande senhor rural, apenas ocupado a cobrar foros e rendas, e se desenfadar em caça de altanaria ou a montear cervos e porcos monteses. Desse casamento, entre outros filhos que não vingaram, Beatriz viria afinal a ser-lhe de grande consolo moral; mas, amargamente, Nun’Álvares via frustarem-se-lhe todas as altas ambições duma vocação ardente de grande cavaleiro, ao serviço duma casa sagrada. Em 1381, nos seus vinte e um anos, um primeiro apelo à guerra contra Castela o tomou de imoderado alvoroço, apressando-o a apresentar-se com seu contingente de escudeiros e peonagem na fronteira do Caia; mas a ofensiva cedo se gorou pela poltronaria dos capitães fronteiriços do Alentejo. No ano seguinte, pela primeira vinda dos ingleses do Conde de Cambridge ao Reino, como aliados, para nova campanha contra Castela, voltou o moço cavaleiro à fronteira do Caia, galopando de Lisboa, contra expressas ordens do rei, para estar também na batalha que se lhe antolhava iminente. De novo se lhe gorou o intento pela felonia do rei, num conchavo de pazes com o Castelhano, a ocultas dos aliados ingleses e a troco do ajuste de casamento da infantil herdeira de Portugal, D. Beatriz, com o infante herdeiro de Castela, prelúdio da entrega de Portugal à coroa de Castela. Seguiram-se-lhe, para consumação da perda da independência do Reino, a ignominia maior do casamento da mesma infanta, em Elvas (1383) com o próprio rei, já viúvo; e de todo esse acervo de torpezas políticas apenas ficou ressoando na História o escândalo de protesto violento de Nun’Álvares, em face da adúltera rainha D. Leonor, e nas próprias barbas do rei Castelhano, ao atirar a terra, com uma joelhada, uma das mesas do banquete de gala que devia celebrar o impudente entremês daquelas bodas principescas. Mais amargurado voltava Nuno Álvares às suas terras de Riba-Douro; mas de grande proveito, decisivo para a fulgurante glória do futuro Condestável, lhe tinha sido, imprevisivelmente, o estreito convívio de três meses com os aliados ingleses, então mestres na arte da guerra, cujos bons capitães, na camaradagem e longas conversas de acampamentos, o iniciavam nas profundas inovações de tática e arte da guerra que na Europa central se iam processando, não tanto pelo incipiente emprego da pólvora, como sobretudo por um novo fator, decisivo da vitória em grandes batalhas: o nascente predomínio da peonagem, infantaria da época, sobre o da orgulhosa cavalaria medieval, couraçada de ferro, cujas galopadas de carga eram detidas de longe, impedidas de chegar ao choque e alcance das lanças, e destroçadas, abatidas por armas de arremesso, sob saraivadas em massa de virotões, flechas, dardos de bons arqueiros e besteiros, a coberto de cavas, abatizes, covas de lobo, abertas no terreno. Foi uma verdadeira escola prática de guerra que ele aprendeu com os ingleses. Depois da morte de D. Fernando, em fins de 1383, a revolução de Lisboa, que abria novos horizontes aos destinos da Nação, propiciava enfim ao ardente paladino da independência o ensejo providencial de para sempre se consagrar a essa causa sagrada, como a sonhada empresa de grande cavaleiro, a exemplo de Galaaz. No quadrado dos Atoleiros (1384), a primeira batalha que em Portugal se fez pé em terra, e depois dessa radiosa manhã de vitória, do malogrado cerco castelhano a Lisboa e das célebres Cortes de Coimbra (1385) para aclamação do Mestre de Avis, D. João, Rei de Portugal começava já o Condestável do Reino, desde a tarde fulgurante de Aljubarrota (1385), a sua epopeia de Capitão Invencível, numa infatigável cavalgada heróica, de lés a lés no país ou por terras de Castela, de vitória em vitória. Ainda nesse ano, depois de Aljubarrota, entrou em Castela pelo Alentejo, e sobre o Guadiana infligiu aos catelhanos, em Valverde, uma derrota quase incrível. (…) Em todos os atos de guerra entre 1386 e 1411, ano do tratado de paz provisório, o Condestável tivera sempre intervenção decisiva, mesmo quando por insubordinações heróicas, inabalável nas suas concepções táticas ou estratégicas, como no Conselho Real de Abrantes, antes de Aljubarrota, e no cerco de Cória com os ingleses, em 1391. Suas entradas e correrias na raia castelhana do Alentejo valeram-lhe do inimigo o apodo de ‘Nuno Madruga, que tanto madrugas, por nos dañares’; e nas próprias deliberações políticas em assuntos de guerra, afirmara a sua autoridade de Condestável, acedendo às reformas militares de 1391, por injunção de ordem económica. Culminara o seu génio militar nas vitórias fulminantes de Atoleiros, Aljubarrota e Valverde, do que lhe proviera grande riqueza, com as sucessivas doações de terras e vilas, que o rei em prémio de tanto heroísmo e lealdade lhe fora fazendo – os condados de Ourém, de Barcelos e de Arraiolos; vastos reguengos em todo o Alentejo e no Algarve, terras e castelo de Vila Viçosa; os Castelos de Silves e de Loulé, e no Minho, os de Neiva e Guimarães; quase metade do Reino, que não cobiçara nem pedira, e de que o melhor dos rendimentos se lhe escoava em soldos e mantença dos seus homens de armas. Tudo dádivas espontâneas do Rei, o que não obstara à solerte calúnia, forjada por invejosos e detractores, dum pacto secreto entre ele e D. João, a quando da Revolução de Lisboa, para dividirem entre si o Reino, em caso de vitória. (…) Tantas foram as promessas e tentativas do rei castelhano para se bandear com o seu valor e a sua espada, como tantos fidalgos portugueses, inclusive seus irmãos, que na véspera dos Atoleiros, na própria manhã de Aljubarrota, como parlamentares o foram aliciar, com promessas do Castelhano, de ‘tantas mercês de que seria contente’. Que não teria ele podido então extorquir a rei tão magnânimo, para se tornar um dos mais poderosos ricos homens dum Portugal avassalado? E quanto à sua revolta de cólera, em 1396, ante a ameaça de anulação das doações e restituição das terras à Coroa – muitas delas já repartidas por seus mais fiéis companheiros de armas – de nenhum modo se tratava duma avara defesa de bens mal adquiridos, mas do que ele entendia na sua isenção ser uma injustiça e felonia indigna do rei. Bem patente viria, aliás, a tornar-se o seu ‘Nuno Madruga, que tanto madrugas, por nos dañares’; e nas próprias deliberações políticas em assuntos de guerra, afirmara a sua autoridade de Condestável, acedendo às reformas militares de 1391, por injunção de ordem económica. Culminara o seu génio militar nas vitórias fulminantes de Atoleiros, Aljubarrota e Valverde, do que lhe proviera grande riqueza, com as sucessivas doações de terras e vilas, que o rei em prémio de tanto heroísmo e lealdade lhe fora fazendo – os condados de Ourém, de Barcelos e de Arraiolos; vastos reguengos em todo o Alentejo e no Algarve, terras e castelo de Vila Viçosa; os Castelos de Silves e de Loulé, e no Minho, os de Neiva e Guimarães; quase metade do Reino, que não cobiçara nem pedira, e de que o melhor dos rendimentos se lhe escoava em soldos e mantença dos seus homens de armas. Tudo dádivas espontâneas do Rei, o que não obstara à solerte calúnia, forjada por invejosos e detractores, dum pacto secreto entre ele e D. João, a quando da Revolução de Lisboa, para dividirem entre si o Reino, em caso de vitória. (…) Tantas foram as promessas e tentativas do rei castelhano para se bandear com o seu valor e a sua espada, como tantos fidalgos portugueses, inclusive seus irmãos, que na véspera dos Atoleiros, na própria manhã de Aljubarrota, como parlamentares o foram aliciar, com promessas do Castelhano, de ‘tantas mercês de que seria contente’. Que não teria ele podido então extorquir a rei tão magnânimo, para se tornar um dos mais poderosos ricos homens dum Portugal avassalado? E quanto à sua revolta de cólera, em 1396, ante a ameaça de anulação das doações e restituição das terras à Coroa – muitas delas já repartidas por seus mais fiéis companheiros de armas – de nenhum modo se tratava duma avara defesa de bens mal adquiridos, mas do que ele entendia na sua isenção ser uma injustiça e felonia indigna do rei. Bem patente viria, aliás, a tornar-se o seu absoluto desdém dos bens terrenos, ao despojar-se, por fim, de tudo e, mísero como um mendigo, ingressar humildemente no seu mosteiro do Carmo como irmão-donato. (…) Ainda voltou ao serviço da guerra, quando em 1414, convocado para Torres Vedras, pelo rei com outros veteranos das batalhas da independência, aprovava também no alegre brado de ‘Ruços, além’, a grande empresa de Ceuta, a que ainda por fim acorreu, Capitão duma Nau, com gente sua, ‘a meter uma lança em África’. Era aos cinquenta e cinco anos, simbolicamente, o seu último feito de armas. Sob a sua égide e benção, de criador duma verdadeira Pátria, se iniciava como um símbolo, ligando o passado ao futuro, a expansão de Portugal além dos mares. Foi depois do seu regresso que, ao cabo de mais sete anos de grande lavrador, em 1422, num ato de renúncia total, repartiu em vida, pelos netos, o que lhe restava da sua imensa fortuna; distribuiu pelos escudeiros e fiéis servidores da lavoura os seus haveres pessoais – armas, cavalos, jóias, roupas, mobília. Ficava pobre como Job, o que fora o poderoso conde de Ourém, Barcelos e Arraiolos e glorioso Condestável de Portugal, e entrava em religião  por humildade e misticismo ardente no seu convento do Carmo, como frei Nuno de Santa Maria, sob uma grosseira samarra de estamenha, que mal o resguardava do frio. Em penitência dos seus pecados a remir, actos de violência, de agressão, de orgulho, de mortandades de guerra, os seus últimos anos andou esmolando pela cidade para os pobres, a quem na cozinha do convento ele próprio servia, de grandes caldeirões, a sopa que à sua custa mandava fazer. Assim viveu ainda mais nove anos, até 1431, um ano antes da morte do Rei, seu irmão de armas, a quem consolidara no trono, fundador da dinastia que faria a glória maior de sua Pátria. Morria com 71 anos, glorificado como herói pelo rei, pelos príncipes, pelos grandes do Reino e, como santo, pelo povo humilde, pelos pobres, pela legião de maltrapilhos, a quem socorrera com cristianíssima caridade, como lealmente servira a sua Pátria. Ficou sepultado em campa rasa, na crasta da igreja do seu convento.”