A corporalidade do trabalho, ou do trabalhador, tem sido substituída pela imagem digital. Os empregados modernos sofrem um processo de despersonalização que forma “indivíduos indefinidamente mutáveis, desprovidos de qualquer rigidez intelectual ou emocional” e disponíveis para ocuparem o seu lugar num sistema de transacções generalizadas, no seio do qual se tornou possível atribuir-lhe, de maneira unívoca e sem qualquer ambiguidade, um valor de troca. Sendo assim, o neo-trabalhador limita-se a viver como um prisioneiro em cela, “sem contacto físico com os seus semelhantes, [..] [fazendo] trocas por computador e sem vivacidade” presente.Para isso muito contribuiu a pandemia do coronavírus, que parece ter acelerado estamutação. Já o conjunto das evoluções tecnológicas, desde as menores (o streaming de vídeo, o pagamento sem contacto) às maiores (o teletrabalho, as compras online, as redes sociais), teve como consequência (ou principal objectivo?) diminuir os contactos materiais e, sobretudo, os contactos humanos. A pandemia, na realidade, ofereceu uma boa razão de ser para a tendência de “uma certa obsolescência que parece afectar as relações humanas”.
De um ponto de vista legal, político e existencial, o neo-trabalhador parece estar abdicando do conceito lockiano de propriedade ao entregar legalmente o seu corpo e disponibilidade totais ao Estado ou à entidade empregadora, condição que evoca George Orwell e a sua proposta de um processo de nacionalização cujo princípio regulador assenta na entrega formal das grandes indústrias ao Estado, em representação do cidadão comum. “Uma vez concluído esse processo, torna-se possível eliminar a classe de meros proprietários que vivem não em virtude de algo que possam produzir, mas sim da posse de títulos de propriedade e de certificados de acções. A propriedade estatal implica assim que ninguém poderá viver sem trabalhar. […] A partir do momento em que todos os bens produtivos forem declarados propriedade do Estado, os cidadãos comuns irão sentir […] que o Estado são eles próprios”. Desta forma, “a ênfase será transferida do direito de propriedade para a administração de propriedade, do privilégio para a competência”. Ora, esta visão socialista e equitativa de Orwell não contempla a hipótese de um Estado dotado de funções venais para além da gestão de recursos públicos que lhe compete, ou seja, de um Estado habilitado a explorar, como qualquer empresa produtora, comercial e empresarial, o trabalho activo e privado dos cidadãos que é seu dever representar, passando o cidadão a ser objecto e produto dessa exploração. Não obstante, Orwellatribui ao futuro o desmantelamento do capitalismo laissez-faire e da cultura liberal-cristã, do mesmo modo que desmente a crença de o socialismo preservar, e até ampliar, a atmosfera do liberalismo. Esta falsa crença, diz Orwell, sugere o avanço civilizacional para uma era de ditaduras totalitárias — era em que “a liberdade de pensamento começará por se converter num pecado mortal, e posteriormente numa abstracção esvaziada de sentido”, onde “o indivíduo autónomo será esmagado e destruído”. Esta destruição, à luz da actualidade, recai na passividade sugerida pelos processos de trabalho modernos, em que o trabalhador se torna passivo ora no círculo estreito da vida doméstica, ora no círculo sindical ou de política local. A sua autonomia é aparente porque continua indefeso ante os elementos que o ultrapassam, entre os quais se contam a regência e a vigília constantes, mas sem a dominação e a mediação aparentes das chefias laborais e do Estado. O neo-trabalhador assume um papel apático no que respeita aos acontecimentos físicos da vida social, e qualquer tentativa de influenciar os eventos futuros é infrutífera, mercê da crescente “restrição radical dos espaços de acção comum. […] [Assim,] a solidariedade desaparece. A privatização impõe-se”.
Deste modo, a actual libertação do trabalho, ou o aumento dos tempos livresou de qualidade de vida, não é uma libertação do trabalho nem de um mundo moldado por este trabalho. O sistema económico que daí resulta é uma “produção circular do isolamento”, onde este funda a técnica e, por sua vez, esta isola aquele. Do mesmo modo, os produtos e bens elegidos por esse sistema são armas e ferramentas que reforçam constante e comummente as condições de isolamento das “multidões solitárias” de trabalhadores, o que reforça a ideia de uma sociedade medida pela “fabricação concreta da sua alienação [e em] que a expansão económica é principalmente a expansão desta produção precisa [e individualmente massificada]. Por esta via, “o imperativo de aceleração próprio das circulações globais de capital” e “a comunicação digital, enquanto nova forma de produção, eliminam a distância em proveito da aceleração.” Em consequência disso, o neo-trabalhador não pode ser descrito com “o auxílio da teoria marxista da alienação”, já que a relação que mantém com o produto do seu trabalho é de completa estranheza e não se reconhece quer no produto produzido, quer na convicção da sua actividade produtora. Assim sendo, oneo-trabalhador “empobrece tanto mais quanto mais riqueza produz” e desrealiza-se constantemente, pois, nesta época pós-marxista de cariz neoliberal e exploratório, eleproduz como forma de liberdade e liberta-se voluntariamente através da exploração de si mesmo, em nome próprio ou de outrem, acreditando estar assim a realizar-se. Por trás desta liberdade ilusória esconde-se uma dominação neoliberal que desvanece no momento em que coincide com a liberdade individual e se torna trágica aoimpossibilitar qualquer resistência ou revolução. O neo-trabalhador, para além da sua passividade, vive preso na alienação, que não é mais que uma auto-alienação destrutiva do próprio corpo como objecto funcional e passível de uma optimização necessária e “que se exprime patologicamente como transtorno da percepção neuro-psicológica do organismo” — ou seja, vive preso na alienação de si mesmo. Por sua vez, as novas classes trabalhadoras dão forma à classe única da multidão, pois todos os que a ela pertencem participam no sistema capitalista, sendo cada indivíduo, por se explorar a si próprio e imaginar-se em liberdade, um sujeito competitivo que é, ao mesmo tempo, sujeito e vítima.
Emil Cioran afirma que o excesso de trabalho, “maldição que o homem transformou em volúpia”, impede os homens de serem eles mesmos. Com efeito, otrabalho, quando contínuo e intenso, embrutece, banaliza e impessoaliza o indivíduo. A partir do instante em que o centro de interesse laboral do homem se desloca do seu meio subjectivo para uma “enfadonha objectividade”, o trabalho em si passa a designar “uma actividade puramente exterior”, logo, “o homem não se realiza — ele realiza”. No teletrabalho, p. ex., o frenesim laboral, antes gregário e colectivo, pode, quando associado a um estado de alienação e isolamento profundos e continuados,conduzir a estados de imbecilidade e de ruptura mental ou de transtorno psíquico;inclusive, pode atenuar ou suprimir o ócio como estado necessário ao bom funcionamento psicofísico do ser humano. O neo-trabalhador, limitado ao clicar do botão ou do teclado, incapacita-se de agir, visto que “tanto o manejar como o trabalhar pressupõem uma resistência, [logo], a acção tem de superar uma resistência; […] o seu pró é ao mesmo tempo um contra”. Por outras palavras, “o digital não põe em jogo qualquer resistência material que seja necessário superar por meio do trabalho”. O tempo do ócio, neste caso, é outro tempo, não começa quando o trabalho acaba, mas é todo ele tempo de trabalho, sendo a pausa uma fase do tempo de trabalho. Assim, a actual sociedade laboral, como integração disseminada na esfera privada, obedece cada vez mais ao rendimento, ao numérico, isolando os indivíduos como cativos em células (ou celas?) de auto-exploração. Já na proporção em que a máquina é melhorada e executa o trabalho do homem com uma rapidez e exactidão cada vez maiores, o operário, em vez de prolongar os tempos livres ou de descanso, redobra o seu ardor, como se quisesse rivalizar com a máquina, a qual, em virtude do progresso técnico, permite que o lazer, dentro de certos limites, deixe de ser uma regalia de minorias privilegiadas e se torne um direito a ser distribuído equitativamente pelas colectividades.
O neo-trabalhador é, portanto, um ser abstracto, imediato e automatizado enquanto mero “acessório da maquinaria” que ele manipula e regula, e a sua força produtiva reside na sua aptidão científica ou noética, ou seja, o que “está em causa não é a forma de actividade humana enquanto tal, […] o processo de metabolismo com a natureza, [mas sim] […] o “trabalho abstracto” da forma do valor ou da mercadoria, o “dispêndio de força de trabalho humana” como fim-em-si, nas condições materiais estabelecidas pela concorrência dos sujeitos no mercado”. O trabalho abstracto, que, para Robert Kurz, reincide no “dispêndio de trabalho como fim-em-si”, passa a ser “um processo tautológico fechado sobre si mesmo”, ou seja, o que esse trabalho “produz” é novamente “trabalho” ou “é o fetichismo do trabalho como fim-em-si tautológico”, o que relembra, convenhamos, a repetição absurda e mecânica do dia-a-dia de um prisioneiro em determinado sistema prisional. Se aooperário adirmos a redução espacial do seu campo de acção via digital, facilmente se entende que as paredes da sua clausura se estreitam gradual e imperceptivelmente. Com o advento do trabalho digital, o dispêndio de trabalho individual e a sua massa total deixam de ser importantes e dão lugar ao planeamento e à gestão do contexto funcional material de uma reprodução tornada imediatamente social. Quer isto dizer que importam menos as horas de trabalho individual que o sentido dos elementos postos em movimento respeitantes ao conteúdo material e aos processos materiais subsequentes; ou seja, cada um é parte de um agregado reprodutivo que abrange o todo social, e cujo processo de movimento material tem de ser gerido e controlado entre todos.
Numa época em que o trabalho se tornou supostamente fácil e redundante, nunca como agora a sociedade se organizou tanto em redor do trabalho e este confinou o pensamento e o comportamento humanos. Quem hoje não conseguir vender a sua força de trabalho torna-se irremediavelmente “supérfluo” e é tido como “lixo social”. Tanto mais que a não-adaptação incondicional e sem reservas ao “curso cego da concorrência total” é punida pela “lógica da rentabilidade”, enquanto a desgraça dos excluídos na corrida à “terra prometida da sociedade do trabalho” serve de exemplo dissuasor, além de que mantém em movimento febril a “multidão de perdedores” de modo a não se revoltarem contra as “exigências desavergonhadas do sistema”. Para isso, o fanatismo burocrático do trabalho não lhes permite viver em paz, pois “são arrastados por assistentes sociais e por funcionários dos serviços de emprego para a sala de interrogatórios do Estado e obrigados a ajoelhar-se publicamente” ante o trono estatal como um detido prestes a ser encarcerado. Os excluídos, como ex-presidiários em liberdade condicional, devem aceitar qualquer tipo de trabalho ou “programa de recuperação” por mais absurdo que seja, demonstrando disponibilidade total ao trabalho e à necessidade que o Estado impõe de estarem em constante movimento, “para que nunca esqueçam a lei a que a sua existência tem de obedecer”. O trabalho obrigatório imposto pelo Estado, “os subsídios ao salário e o chamado “trabalho cívico” reduzem cada vez mais os custos com a mão-de-obra [e] fomenta em grande escala todo o próspero sector que vive dos baixos salários e do trabalho de miséria.
Na esfera moderna do trabalho, tempo é dinheiro, e cada “crime contra a finalidade autonomizada da produção — uma ida à casa-de-banho, uma conversa — no local de trabalho mostra que, como numa prisão, “a vida fica lá fora ou porventura em parte nenhuma, porque a cadência do trabalho rege interiormente as coisas” em nome da sacrossanta eficiência. Na esfera do trabalho importa que o fazer seja feito e não aquilo que se faz, visto o trabalho, como vimos, ser fim em si mesmo, “na medida em que traz consigo a valorização do capital-dinheiro — a infinita multiplicação [autotélica] do dinheiro por intermédio do dinheiro. […] Nisto consiste o mecanismo da engrenagem social autonomizada em que se mantém aprisionada a humanidade moderna”. Nietzsche afirmou que o homem moderno, além de ter vergonha do ócio e culpa em meditar, vive constantemente com medo de “falhar” alguma coisa. O frenesim do trabalho torna a vida numa “caça ao lucro e obriga o espírito a esgotar-se sem repouso no jogo de dissimular, de iludir, ou de prevenir o adversário; a verdadeira virtude consiste em fazer uma coisa mais depressa do que um outro”. A própria palavra “trabalho”, na sua origem etimológica, designa uma actividade privada de autodeterminação, uma fatalidade social infeliz que resulta hoje numa forma de dependência social, numa “conexão abstracta interna do sistema”, algo absoluto e, por isso mesmo, incompreensível na sua totalidade, uma máquina social de valorização e de transformação do material humano em movimento contínuo e em prol autotélico do capital. O sistema actual da sociedade do trabalho, da sua administração burocrática e da integração estatal de seres humanos nas democracias industriais, deve o que é às suas origens absolutistas e coloniais, que progrediram ao longo da históriae se estabeleceram em todos os domínios vitais como um sistema socialmente aceitável de coerção e comprovável, p. ex., na administração económica do Fundo Monetário Internacional, que se impõe amiúde a países periféricos.
Chegados a este ponto, é legítimo dizer-se que a nova revolução industrial — instigada sobretudo pelo digital, pela inteligência artificial, pela microelectrónica e pela robótica — tornou dispensável o elemento e potencial humanos. Como sintoma disso: a perda por inteiro ou em larga escala de certos sectores e áreas profissionais, cujas estruturas não conseguem acompanhar os novos meios de produção e de modernização do mercado de trabalho e a passagem geral para a redução do tempo de trabalho. Em boa verdade, não há política mundial capaz de inverter esta tendência, já que a política, na sua essência, é referente ao Estado, logo, a desestatização e o pressuposto axiomático da democracia política como finalidade autotélica da sociedade do trabalho inviabilizam a regulação político-democrática à crise moderna do trabalho. Por outras palavras: “o fim do trabalho é o fim da política”.
Outro traço central da crise capitalista é a simulação da verdadeira situação da sociedade do trabalho, o que também vale para a economia. Através da excomunhão ideológica a regiões em colapso, de estatísticas manipuladas e falsificadas e formas de pauperização dissimuladas pelos media, a consciência social rege-se pela aparência de que o capital, fruto de um processo de simulação nos mercados financeiros, pode ser acumulado sem trabalho e que “a forma pura do dinheiro sem substância pode garantir o contínuo crescimento do valor. À imagem e semelhança da simulação do trabalho através das medidas coercivas da administração democrática do trabalho, formou-se uma simulação da valorização do capital através da desarticulação especulativa entre o sistema de crédito e os mercados bolsistas da economia real”.Este erro, diz Karl Polanyi, consistiu “em igualar a economia humana em geral com a sua forma de mercado”. A evidência desta falácia deve-se ao facto de à condição humana corresponder a fisicalidade das suas necessidades, ou seja, a sociedade só pode existir se possuir uma economia substantiva. A redução específica do âmbito económico aos fenómenos do mercado elimina grande, senão a maior, parte da história humana. Em contrapartida, “ampliar o conceito de mercado para fazê-lo abarcar todos os fenómenos económicos é atribuir a todas as questões económicas as características peculiares que acompanham um fenómeno específico”. De resto, o medo da fome no trabalhador e a atracção do lucro no empregador mantêm em funcionamento o vasto mecanismo de imposição desta prática utilitarista que desvirtuou fatalmente a compreensão que o homem ocidental tem de si mesmo e da sua sociedade. “Já não é o aumento especulativo das cotações a antecipar a expansão da economia real, mas, pelo contrário, é a criação fictícia de valor, sempre em alta, que simula uma acumulação real que simplesmente deixou de existir”.
Em relação ao “tempo livre” — que, à letra, é um conceito prisional —, esteserve há muito para renovar o stock de mercadorias e de garantia à venda necessária das mesmas. O domínio do trabalho estende-se muito para lá do dever interiorizado de consumo mercantil como finalidade autotélica. O mero agir ou fazer transforma-se numa espécie de trabalho, numa quantificação e qualificação laboral da acção individual. O neo-trabalhador, ao equiparar todas as coisas pelo padrão do trabalho, não entende que com isso retira delas a sua singularidade e peculiaridade, tornando o fazer indiferente. Pelo contrário, ele só confere sentido, justificação e significado social a uma actividade através dessa equiparação à indiferença do mundo das mercadorias, onde tudo o que se faz com “seriedade” e com um determinado objectivo obedece ao trabalho renumerado segundo critérios de mercado, portanto, a riqueza verdadeira reside apenas naquilo que pode ser representado sob a égide da monetarização, isto é, da evolução das estruturas monetárias. Desta forma, todas as esferas da vida que não se regem pela produção de mercadorias submetem-se necessariamente a esta, pois, mesmo que necessárias, não participam da “lógica abstracta empresarial da economização do tempo”. Como tal, as instituições públicas abandonam os seus compromissos de ordem social e substituem-nos por apelos a uma mobilização de teor voluntário, altruísta, simpático e sem custos, apontada a “nós todos” e a cada um em particular no combate às privações sociais. Esta “manipulação acrobática do sacrossanto conceito do trabalho, apresentada enquanto programa emancipatório”, permite que o Estado tente suprimir o trabalho assalariado pela eliminação do vencimento, provando-se com isto que “a emancipação social só pode ter como conteúdo, não a revalorização do trabalho, mas a sua desvalorização crescente”. Sob esta medida, “o Estado não é senão a associação coerciva exterior ou a universalidade abstracta dos produtores de mercadorias socialmente atomizados; em consequência disso, a propriedade estatal mais não é do que uma forma derivada da propriedade privada”, independentemente de se lhe associar ou não o atributosocialista.
De qualquer das formas, a “ditadura do trabalho” separa o sujeito económico do cidadão, o trabalhador do ocioso, opondo aos indivíduos isolados o seu próprio contexto social como um poder que lhes é estranho e dominante, quanto mais numa sociedade sujeita ao desenvolvimento das estruturas tecnológicas. Em compensação, avente-se a hipótese positiva de as actividades do trabalho passarem antes a obedecer ao ritmo particular, variável e integrado em contextos de vida e formas de organização do indivíduo, o qual passa a determinar o seu próprio ritmo “em vez de se submeter às determinações da ditadura da valorização do capital na lógica da economia empresarial”. Por mais positiva que esta hipótese possa parecer, a realidade é outra e torna praticamente impossível a rebelião do indivíduo contra a expropriação das suas potencialidades sociais sem entrar em confronto com o Estado, dado que este gereuma parte considerável da riqueza social e serve de garante “à subordinação coerciva de todas as potencialidades sociais ao princípio da valorização do capital”.
Mais ainda: a proliferação de trabalhos inúteis ou de merda parece justificar a atribuição de salários baixos à população activa e, se a isso juntarmos a crescente robotização do trabalho, a mudança radical dos modelos económicos e laborais e a exclusão de regimes de propriedade, aumentam, assim, a riqueza e o poder dos que compõem o 1% mais rico e poderoso do mundo. Daí resulta um retrocesso social por meio de um “tecno-feudalismo”, que, na sua essência e com as devidas distânciashistórica e temporal, se assemelha ao feudalismo medieval. Destarte, a eliminação progressiva do número de operários da esfera do trabalho conduz os interesses dos agentes produtivos e económicos para profissões mais liberais e relacionadas com a educação, a medicina, a política sanitária, etc., produzindo-se, com isso, uma especialização hegemónica das carreiras profissionais, a limitação da escolha profissional e o condicionamento dos princípios morais, valores e ideologias do trabalhador.
Em conclusão, a política e o aparelho burocrático estatais, em vez de resolverem os dilemas supracitados, parecem procurar, sem medirem as repercussões dos seus objectivos, a conquista ideológica e partidária do aparelho de Estado como continuação da sociedade do trabalho e da sociedade em geral. Nas palavras adequadas de Robert Kurz:
“O marxismo do movimento operário não é superado “virado para a frente”, sob a forma de uma crítica mais consequente da economia política; pelo contrário, continua a vegetar na forma de redução o mais diminuta possível, como “componente social” e “referência sindical”; o positivismo, despido de qualquer fundamentação teórica, é integrado sob a forma de um “novo realismo” pragmatista, e de reconhecimento do “mercado”, ou de “motivação do lucro”, como imprescindível e incontornável; o pessimismo cultural, por fim, ganha entrada e aceitação sob a forma de “consciência ecológica”, de exaltação da natureza e de enunciados da filosofia da vida que inconscientemente se vão infiltrando no balbuceio dos políticos. Esta papa perfeitamente intragável, mais uma vez diluída e remexida, já se tornou o alimento “espiritual” de todo o espectro académico, ideológico e político de uma sociedade que, na iminência do seu colapso económico e ecológico, se encontra em agonia intelectual”.
Referências Bibliográficas:
Cioran, Emil. Nos Cumes do Desespero. Edições 70, Lisboa, 2020.
Debord, Guy. A Sociedade do Espectáculo. Antígona, Lisboa, 2012.
Grupo Krisis. Manifesto Contra o Trabalho. Antígona, Lisboa, 2003.
Han, Byung-Chul. A Expulsão do Outro: Sociedade, Percepção e Comunicação Hoje. Relógio d’Água, Lisboa, 2018.
Han, Byung-Chul. No Enxame: Reflexões sobre o Digital. Relógio d’Água, Lisboa, 2016.
Houellebecq, Michel. Intervenções. Alfaguara, Lisboa, 2021.
Kurz, Robert. A Honra Perdida do Trabalho: o Socialismo dos Produtores como Impossibilidade Lógica. Antígona, Lisboa, 2018.
Lafargue, Paul. The Right to be Lazy and Other Studies. Kerr & Company, Chicago, 1907.
Nietzsche, Friedrich. A Gaia Ciência. Guimarães Editores, Lisboa, 2000.
Orwell, George. Os Ensaios. Relógio d’Água, Lisboa, 2021.
Polanyi, Karl. A Subsistência do Homem e Ensaios Correlatos. Contraponto, Rio de Janeiro, 2012.
Russell, Bertrand. O Elogio ao Ócio. Sextante, Rio de Janeiro, 2002.