Painel de Columbano Bordalo Pinheiro, retratando Mouzinho da Silveira, Duque de Palmela, Duque de Saldanha e José da Silva Carvalho, Miguel Saavedra, 2013.

A Ação Legislativa Sistemática de Mouzinho da Silveira: Uma Transformação Político-Social da História Portuguesa

Sobre a obra legislativa introduzida por Mouzinho da Silveira na primeira metade do século XIX, a depreender na estruturação do Liberalismo em Portugal, mas também os processos que marcam o devir histórico português neste contexto da senda liberal.

Texto de Hélio Ricardo dos Santos. Revisão de Sebastião N. Viana. Imagem: painel de Columbano Bordalo Pinheiro retratando Mouzinho da Silveira, o Duque de Palmela, o Duque de Saldanha e José da Silva Carvalho, fotografada por Miguel Saavedra, 2013.

O presente trabalho aprofundará a obra legislativa introduzida por Mouzinho da Silveira na primeira metade do século XIX, nomeadamente no ano de 1832, de forma a depreender não só o seu papel na efetiva estruturação jurídica e institucional do Liberalismo em Portugal, mas também todos os processos e dinamismos que marcam o devir histórico português neste contexto da senda liberal a partir dos decretos emitidos sob a pena reformadora desta figura.

No quadro da construção do governo liberal que se forma nos Açores, designadamente na ilha Terceira, a partir de 1829, e do qual faz parte Mouzinho da Silveira, importa salientar as influências que o liberalismo francês detém naconsciencialização da sociedade liberal para esta personalidade, de acordo com os modelos da época moderna, em particular aquele que experienciou de perto aquando do seu exílio em França. Portanto, é nos Açores, e depois ainda no Porto, que Mouzinho vai redigir um conjunto de decretos que serão o corpo principal da Constituição Liberal portuguesa para aplicar quando um dia expulsassem D. Miguel do trono em Lisboa, dotando o futuro governo liberal de um corpolegislativo e de um fundamento jurídico.

A explanação da temática em evidência será suportada não só pela análise da «Coleção de Decretos e Regulamentos mandados publicar por sua Majestade Imperial», uma fonte que se tornaabsolutamente fundamental, constituindo o cerne para compreendermos a importância dos decretos de Mouzinho, mastambém pelo tratamento de bibliografia coerente, credível e adequada à perspetiva interpretativa a adotar, e que será melhor desenvolvida nas linhas subsequentes. De resto, será o recurso a esta base bibliográfica que nos permitirá criarum panorama conciso daquilo que era o organograma do Estado liberal e do novo ordenamento político, social e económico que Mouzinho da Silveira ajuda a alicerçar. Trata-se, então, de perceber, a partir da publicação e divulgaçãodos sucessivos decretos emitidos a partir dos Açores e do Porto – “um dos conjuntos normativos mais importantes donosso século XIX”[i]– e depois com a efetiva vitória dos liberais em 1834, que esteve em curso a decomposição da constituição fundiária do Antigo Regime e a construção das novas bases para a edificação de uma sociedade portuguesa de feição liberal.

Figura carismática e incontornável do seu tempo, José Xavier Mouzinho da Silveira nascera no Alto Alentejo, emCastelo de Vide, em 1780. Formando-se em Direito no ano de 1802, era, portanto, um eminente pensador político que fora desenvolvendo alguns cargos de relevo, não só como magistrado em Marvão (1809), Setúbal (1813) e Portalegre, mas também no governo do Reino com a entrada da causa liberal na direção dos desígnios do país, nomeadamente a partir de 1821, como administrador-geral das Alfândegas e, depois, na Vilafrancada, enquanto ministro da Fazenda, de 28 de maio a 19 de junho de 1823. Com a promoção de D. Miguel a cabeça da contrarrevolução, chega inclusivamente a ser preso no episódio da Abrilada (1824), exilando-se em Paris durante o miguelismo[ii].

Ora, o pensamento do destacado jurista vai embeber muito precisamente deste contacto com a realidade política francesa e do liberalismo dos «doutrinários» franceses, como possivelmente F. Guizot, até porque era particular adepto do modelo político constitucional em vigor, modelo esse cujas características o influenciaram em muito na construção dos alicerces jurídicos do Portugal liberal. Além disso, também os ideais da economia política de Adam Smith haviamcooperado para a construção do seu pensamento crítico e da forma como tenderia a observar a cena política, económica e social[iii]. Combinavam-se, então, como atesta António Pedro Manique, “uma vasta experiência de magistrado e de alto funcionário com os ideais da «civilização europeia» oriundos da Revolução Francesa”[iv].

Desta forma, apesar da “exuberante velocidade e grande profusão”[v] relativamente à publicação dos decretos em Angra, note-se que existe aqui um período considerável de maturação e consolidação das ideias e dos fundamentos na cabeça de José Xavier, o período da emigração (1828-1831), que de certo contraria a ideia da promulgação com“imprudência e precipitação”[vi] destas reformas, juízo político retratado por Palmela no contexto da aprovação de tallegislação. Na verdade, o ponto da situação a que o Estado do Reino chegara exigia e quase que legitimava essa permanente e sistemática publicação dos escritos «mouzinianos», tratando-se, pois, da decomposição do Antigo Regime – ideia que, de resto, é protagonizada não só pelo próprio D. Pedro, mas pelos que o acompanhavam desejosos da mudança e detentores de uma aguçada perceção das alterações quedeviam ser introduzidas no país.

Tendo já sido ministro de D. João VI, que reinara até março de 1826, Mouzinho será um dos muitos adeptosliberais, exilados e presos, sobretudo retornados da Inglaterra e da França, que se deslocará até aos Açores na expetativa de aí formar um governo liberal, de oposição ao regime miguelista, que avançaria para o continente assim que sereunissem condições para tal. Para já, a ilha Terceira restava como a única porção do território da monarquiaportuguesa que não se subjugara à situação política liderada por D. Miguel. Assim, formar-se-á um Conselho de Regência em Angra, a 03 de março de 1832, no qual têm assento não sópróprio Palmela, mas também Agostinho José Freire, o Conde de Vila-Flor e José António Guerreiro. É sob a figura deJosé Xavier, encarregado da Pasta da Fazenda e da Justiça até dezembro do mesmo ano, que este governo vai levar a cabo a organização de um corpo legislativo.

Fruto daquilo que vivenciara no exílio e dos próprios ideais e conceções que formulou com própria experiênciapolítica, Mouzinho era partidário de governos vigorosos, concebendo que, num regime liberal, o exercício da autoridade acarretava o reforçar dos seus poderes, “ao mesmo tempo que se retirava do domínio da propriedade”[vii].Desta forma, era não só um acérrimo defensor da Carta Constitucional de 1826 outorgada por D. Pedro, duque de Bragança, mas, consequentemente, também do reforço do poder executivo que a carta lhe conferia, nomeadamenteatravés da introdução do poder moderador.

Os diplomas que foram elaborados por este reformador abriram espaço para a construção do Estado liberal, que naturalmente se pautou pela reorganização do seu aparelho administrativo, até então moldado por estruturas velhas ecaducas que espelhavam as conceções fundamentais das doutrinas políticas que lhes estavam inerentes nos fins do Antigo Regime[viii]. Para Mouzinho, este projeto legislativo visava concretizar os princípios contemplados na Carta de 1826,permitindo efetivar as garantias de liberdade do cidadão, libertando igualmente a Nação dos entraves feudais que colocavam Portugal para trás, impedindo-o de acompanhar a evolução europeia que se verificara desde as últimas décadas da centúria anterior, sobretudo em França e na Inglaterra, que eram tidas como o expoente maior do progresso.

Deste modo, a deterioração dos poderes senhoriais, de matriz e valores tradicionalistas, só vai ser evidente com o sistema chegado em 1832. Para José Xavier, o sistema administrativo em vigor era descabido, débil e, em suma, anacrónico, expondo no relatório que precede os marcantes decretos de 16 de maio de 1832 da reforma estrutural daadministração pública que seriam “inadmissíveis as sobreposições jurisdicionais existentes, a acumulação, numamesma pessoa, de jurisdições incompatíveis”[ix].

Neste sentido, e como, em rigor, expõe António Pedro Manique, as leis eram o suporte e a consequente materialização de um instrumento que conduziria à vontade coletiva de todos os cidadãos com vista a reformular e aperfeiçoar a civilização através da intervenção e regulamentação do funcionamento das instituições no contexto destanova sociedade que despoletava. Regida pelo ideário liberal, a intervenção reformista conduzia-se então pelas conceções em que acreditava, como o direito à propriedade, a liberdade natural do homem e a liberdade económica,esta última passando pela “revogação da legislação antieconómica e anticomercial em vigor, pela eliminação dassituações de monopólio e privilégio na organização das atividades económicas”[x]. Para tal, este era um tempo deafirmação de novos valores sociais, os da sociedade dita «burguesa», individual, numa disputa renhida para com os suportes jurídicos do poder da classe senhorial laica e eclesiástica, ou seja, dos valores tradicionais das velhas elites locais[xi].

Saída primeiramente do Paço em Angra, a legislação firmada pela assinatura de Mouzinho, que é precedida por relatórios através dos quais “o legislador justifica as medidas tomadas, expondo o vasto conjunto de princípios geraisque orientam a sua ação de estadista”[xii], começa a ver a luz do dia com o assumir de funções do governo de regência dos Açores, em março de 1832. Deste modo, da trintena de diplomas legais lançados, vinte e dois deles teriam sido logo promulgados no arquipélago, a partir de Angra e de Ponta Delgada, e os restantes no Porto, após odesembarque das tropas liberais em julho do referido ano.

Arredado do progresso material e civilizacional que se vivia na Europa, Portugal passava, a partir daqui, a disporde uma compilação jurídica que constituiria a trave mestra para este novo ordenamento político, económico e social, objeto de uma particular atenção mais adiante. A dissolução do aparelho de Estado do Antigo Regime e oestabelecimento e construção desta nova economia política implicara, então, uma nova reorganização que se opunha ao«velho» Portugal[xiii], abarcando – de entre as mais destacadas medidas legislativas – a abolição dos direitos de forais e bens da Coroa, a extinção dos dízimos, mas também das sisas, e a supressão dos pequenos vínculos, morgados e capelas.

De entre a legislação em evidência, sobretudo aquela que fora promulgada no primeiro semestre de 1832, existeum número considerável de diplomas que têm em vista medidas que se circunscrevem apenas aos Açores, até porque nesta altura, como já foi mencionado anteriormente, este seria o bastião e único território da causa liberal portuguesa. Salienta-se, a título de exemplo, a extinção do pagamento dos dízimos nas ilhas (a 16 de março de 1832), medida queterá uma aplicação mais abrangente posteriormente já no Porto, a 30 de julho; a libertação e amnistia dos presos civis que haviam cometido crimes políticos antes do estabelecimento desta regência e dos que não tinham culpa formada, na mesma data; bem como a redução dos emolumentos em uso nas Alfândegas dos Açores a uma tabela única que serviriade modelo para todos (a 20 de junho).

Precisamente, um dos primeiros decretos emitidos no princípio da ação governativa de Mouzinho teria sido aquele que abolia, daí por diante, os pequenos vínculos e as incorporações de bens livres aos vínculos que permaneceram (04 de abril de 1832). Era, portanto, um decreto revolucionário, ainda que moderado, com o objetivo maior de desenvolver a atividade agrícola, segundo o qual a propriedade devia ser um bem transacional ao contrapor-se aos inconvenientese problemas económicos relativos às disposições dos morgados e capelas, como a obstrução do aproveitamento das terras e de circulação de trabalho e a sua circunscrição a uma fação parasitária da sociedade.

Deste modo, pretendia-se libertar o pequeno morgadio, de rendimento inferior a duzentos mil réis, da tradição secular em Portugal que impedia as terras de serem alienadas, partidas e/ou vendidas, muitas vezes deixadas ao abandono ou com um uso pouco proveitoso na medida daquilo que seriam capazes de produzir. A conceção da «libertação da terra» encontrava aqui a sua expressão, expropriando-se, desta forma, os bens da Coroa a uma nobreza terratenente que vivia de aparências, devendo pertencer estes domínios a quem efetivamente os explorava[xiv]. A permanência dos vínculos cujo rendimento total atingia seis mil cruzados era a exceção à regra que, desse modo, protegiaa nobreza titulada das grandes Casas, cujos membros encontravam assento na Câmara dos Pares.

A 19 de abril, concretizar-se-ia o princípio da liberdade económica com a extinção do tributo das sisas, fonte de onde provinha a principal receita dos concelhos de Antigo Regime, já que existiria uma parte do valor do impostoaplicado a determinados produtos comerciais a pagar ao Estado que era recolhido pelas câmaras municipais, quereceberam a notícia com particular desagrado. No relatório que precede tal decreto, Mouzinho da Silveira tece profundas críticas aos inconvenientes que o imposto acarretava para o desenvolvimento comercial e agrícola do país, estagnando-o e impedindo não só o aumento das rendas do Tesouro, mas também das exportações, e tal explica os poucos proveitosretirados dos produtos das colónias e aplicados no interior do Reino. A abolição do imposto era, portanto, a única formade libertar Portugal das «amarras» que o impediam de progredir, fomentando o mercado nacional, a indústria e o trabalho e permitindo que se fortalecessem atividades económicas que o Reino não soube aproveitar anteriormente. Nas palavras do legislador, a contribuição das sisas eram a causa do “espírito anti mercantil de Portugal”[xv]. No mesmo decreto é extinto também o imposto sobre os bens móveis, sendo o tributo sobre a compra e venda de bens de raizuniformizado, agora em cinco por cento, a todo o Reino.

No seguimento da extinção deste imposto estaria o de 20 de abril, que regularizava os direitos de saída degéneros do Reino visando, assim, estabelecer a liberdade de exportação. Todas as mercadorias de produção, indústria ou manufatura nacional, passam a poder ser exportadas por qualquer porto seco ou molhado de Portugal, Algarves e seus domínios para países estrangeiros, pagando na alfândegapor onde se exportarem direitos de saída um por cento sobre o valor dos produtos nacionais.

Constituindo, sem sombra de dúvida, o ponto alto da organização e administração da Fazenda Pública, os trêsdecretos promulgados a 16 de maio revelam-se profundamente fundamentais para compreendermos as mutações porque passou o aparelho de Estado português, ao lançar as bases daquele que será o sistema de administrativo-judicial liberal em contraponto à manutenção das estruturas do «velho» Antigo Regime – “neste caos achou a Carta [de 1826] omalfadado Reino, (…) a confusão, a desordem, a faculdade de abusar invocando as Leis”[xvi]. Portanto, era necessário levar a cabo, recorrendo às palavras de Mouzinho, “a mais bela e útil descoberta moral do século passado, (…), adiferença entre administrar e julgar”[xvii].

De facto, o sistema administrativo existente em Portugal era reflexo de uma profunda relação para com os tipos depoder dominantes até à época, de velhos costumes e inclusivamente de uma fação social, os senhores locais, tradicionalmente encarregues da esfera da justiça e da administração e detentora de inúmeros direitos. De carizcentralizadora e de cunho napoleónico, a ação de Mouzinho passará, em matéria administrativa, pela divisão do país em províncias, comarcas e concelhos, ficando cada um desses níveis sob a dependência política de três agentes nomeados pelo governo – prefeitos, subprefeitos e provedores, respetivamente -, passando os atos administrativos, legislativos e políticos do poder eleito localmente, das câmaras municipais, sujeitos à sanção destes funcionários subordinados aosinteresses do governo liberal[xviii]. Naturalmente, esta era uma situação que não teve um impacto positivo no seio daspopulações, merecendo o seu desagrado já que esta interferência direta do governo de Lisboa significava, daí pordiante, um detrimento dos poderes das elites locais.

Quanto à aplicação da justiça, consistia na divisão judicial do território nacional em círculo, comarca e julgado, ouseja, tribunais de primeira e segunda instâncias e Supremo Tribunal, sendo a figura do Juiz da Paz eleita pelapopulação, devendo ser a primeira instância que determinaria se uma causa devia ser julgada ou não. As câmaras municipais, “um dos mais marcantes poderes da história portuguesa”[xix], perderá, então, a partir de agora, o poder judicial que deteve outrora como primeira instância face aos letrados dos tribunais de comarca. No que concerne à reorganização das finanças públicas, aextinção do Erário Régio e da Junta dos Reais Empréstimos conduzirá a que as competências antes confiadas a estas instâncias passem para o Ministério da Fazenda, Tribunal do Tesouro e Junta do Crédito Público[xx]. O Tribunal doTesouro Público determinava, assim, impostos que deveriam ser recolhidos por um corpo de funcionários que recolhiam os tributos em nome do Estado por cada província, sob ordem do prefeito.

Soma-se também a extinção dos dízimos, a 30 de julho de 1832, que compõe o conjunto das medidas legislativasde maior impacto na sociedade portuguesa, decisão esta tomada já no Porto visando, por um lado, combater o poder e influências do clero, e, por outro, desenvolver a agricultura, libertando-a do pesado tributo e permitindo aos lavradores aumentarem os seus rendimentos, importâncias essas que contribuíam para o crescimento do Tesouro Público através do pagamento de impostos ao Estado. Note-se que já haviam sido publicados dois outros decretos nos Açoresrelativamente ao poder do clero, a saber: a 16 de março, reduzindo os dízimos das ilhas a alguns géneros, e a 17 de maio,extinguindo conventos e colegiadas das mesmas ilhas e reorganizando as paróquias do arquipélago[xxi]. Deste modo, aabolição do pagamento do dízimo seria uma medida que ia ao encontro dos princípios financeiros do novo Estado liberal,que passava a reivindicar a “arrecadação centralizada dos dinheiros públicos” não compactuando com “um sistema tributário paralelo, que desviava para as corporações religiosas boa pare da riqueza”[xxii].

De entre os princípios perfilhados pelo destacado político e pensador, encontramos também presente a «lei dos forais», o decreto de 13 de agosto de 1832 que extingue os forais e bens da Coroa dentro da lógica de transformação da terra cultivável num bem económico útil, um diploma com um impacto significativo já que estas doações remontavamaos tempos da Idade Média e tinham permitido consolidar em Portugal uma classe senhorial – leiga e eclesiástica -, rica,poderosa e com alguma margem de manobra.

Assim, embora dependente do poder régio, estas classes beneficiárias mantinham alguns privilégios não só em termos de riqueza terratenente, mas também no acesso aos cargos da administração pública. O desmantelamento desta estruturavisava, em primeira instância, expropriar uma classe improdutiva, libertando o solo cultivável da «mão morta», oobstáculo à sua transação. Os forais, por sua vez, eram o entrave a essa mesma conceção de mobilidade da terra ao permitir a apropriação dos tributos neles inscritos, ficando o Estado sem um considerável viveiro de rendimentos[xxiii].

Dentro do programa do Portugal liberal delineado pelas reformas de Mouzinho da Silveira, destacam-se ainda alguns diplomas que dizem respeito à situação interina conhecida na cidade do Porto aquando da sua chegada, a 08 de julho, e que se inserem também neste novo ordenamento político, económico e social, como o decreto visando anomeação do presidente interino da Relação do Porto, logo a 10 de julho, e aquele que extinguiu o privilégio exclusivo concedido à Companhia da Agricultura das Vinhas do Alto-Douro de vender vinho e água-ardente aos habitantesportuenses e de fabricar ela só a água-ardente, emitido a 14 de julho.

Após os diplomas legais de Mouzinho da Silveira, no ano de 1832, e depois inclusivamente com as sucessivas medidas nos anos que se seguem com o governo liberal à cabeça da direção dos desígnios do Reino, como a nacionalização dos bens eclesiásticos, dois anos volvidos, em maio de 1834, a Igreja viu a sua expressão institucional alterada, não constituindo as medidas tomadas um efetivo «ataque» à religião, mas sim uma adaptação desta instituição ao «novo» Portugal, na tentativa de o afastar das débeis estruturas tradicionais e da interferência no poder público que ficara para trás, primando agora pelo monopólio estatal desse mesmo poder e confinando a Igreja ao domínio do poder espiritual[xxiv].

Segundo Nuno Gonçalo Monteiro, a supressão do dízimo teria sido uma das formas de libertar a propriedade “dos laços que a restringiam (…), aumentado a riqueza geral e, com ela, a massa tributável”[xxv], apesar desta situação ter acarretado, nos primeiros tempos, o sustentáculo das despensas intrínsecas ao sustento do corpo clerical[xxvi].

Por seu turno, a mudança política e institucional assinalada pelos manuscritos de Mouzinho da Silveira deixarapara sempre um legado profundo na construção do «novo» Portugal. Durante os nove meses em que esteve à frente daPasta da Fazenda e da Justiça em 1832, substituído depois por José da Silva Carvalho, muito foi dito e escrito sobre Mouzinho e este marco jurídico, a emissão destes diplomas legais e dos princípios que neles estavam inscritos. A favor ou contra a sua vontade, mesmo aqueles que estiveram por dentro das ondas de protestos de norte a sul relativamente ao sistema liberal que esta figura tentara alicerçar reconheciam que o país cruzava uma rutura institucional, política,económica e social marcante, sendo, portanto, este um momento de «viragem» a todos os níveis.

A título de exemplo, após os três decretos de 16 de maio saírem à rua pela pena de Mouzinho, indicando uma reforma estrutural da administração, gerou-se um clima de evidente desagrado, de contestação do novo sistema, que se transformou num polo de clivagens das fações liberais, agudizando-se o debate particularmente mais tarde na Câmara dos Deputados após a abertura das Cortes, em 15 de agosto de 1834. Recordemos que José Xavier tinha contado já com algumas críticas, nomeadamente por parte dos parceiros de ministério, como Palmela, discórdias que tinham sido atenuadas quando encabeçaram o mesmo propósito de travar o miguelismo. Inclusivamente, mais tarde, juntar-se-iamem torno da figura do duque de Palmela, numa clara crítica ao governo de

D. Pedro e a estas reformas de 1832, aqueles que tinham saído prejudicados pela legislação revolucionária, conhecidoscomo «oposição revolucionária»[xxvii].

Sujeito à crítica acesa daqueles que viam no conjunto de decretos os males que feriam o país, o governo contou posteriormente ainda com generalizadas reclamações oriundas dos concelhos, que se opunham à centralizaçãoadministrativa que havia passado a reger o aparelho de Estado, até porque a Coroa teria, agora explicitamente, aprerrogativa de proceder à denominação dos titulares aos cargos concelhios. Desta forma, as forças sociais tradicionais viam a sua ação limitada no exercício dos seus poderes de outrora, chegando inclusivamente a câmara de Lisboa aproceder ao envio de uma petição visando, com clareza, a «abolição ou reforma do Decreto de 16 de maio de 1832», como patenteia António Pedro Manique na sua obra Mouzinho da Silveira: Liberalismo e Administração Pública.

Para a posteridade ficara, nas palavras de Almeida Garrett, em 1849, “um grande monumento, (…) o termo ondeverdadeiramente acaba o velho Portugal e de onde começa o novo”[xxviii]. À luz do trabalho desempenhado por Maria de Fátima Brandão e Rui Graça Feijó no artigo “O discurso reformador de Mouzinho da Silveira”, datado da década deoitenta do século passado, Mouzinho da Silveira é genericamente visto tanto pelos seus contemporâneos, Garrett e Herculano, como por pensadores posteriores, como Oliveira Martins e Joel Serrão, como um homem queindubitavelmente assinala um traço distintivo na História da sociedade portuguesa e na estrutura do seu aparelho deEstado. Se, por um lado, Oliveira Martins, em 1881, atribui a Mouzinho “a honra de dar à revolução um caráter social mais profundo”[xxix], por outro, Herculano chega mesmo a afirmar, em 1856, a genialidade desta figura e a personificação de um grande propósito social.


Bibliografia Geral

  • MONTEIRO, Nuno Gonçalo (org.), PINTO, António Costa (org.), BRANCO, Rui, FERNANDES, Paulo Jorge, REIS, Bruno, História Política Contemporânea. Portugal 1808-2000, Lisboa, Objetiva, 2019.
  • RAMOS, Rui, A Segunda Fundação (1890-1926), Lisboa, Círculo de Leitores, 1994, Vol. VI da História de Portugal, MATTOSO, José (dir.), pp. 13-331.
  • BONIFÁCIO, Maria de Fátima, A Monarquia Constitucional, 1807-1910, Alfragide, Texto Editores, 2010.

Bibliografia Específica

  • “Coleção de Decretos e Regulamentos mandados publicar por sua Majestade Imperial desde que assumiu a regência em 3 de março de 1832 até à sua entrada em Lisboa em 28 de julho de 1833”, Segunda Série, Imprensa Nacional, Lisboa, 1836. Disponível em http://net.fd.ul.pt/legis/1832.htm (Instituto de História do Direito e do Pensamento,Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa) – consultado em outubro de 2020.
  • BRANDÃO, Maria de Fátima, FEIJÓ, Rui Graça, “O discurso reformador de Mouzinho da Silveira” in Análise Social,volume XVI, 1980, pp. 237-258. Disponível emhttp://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1223994865G2iFT1nv9Bo95CZ3.pdf (consultado em outubro de 2020).
  • MANIQUE, António Pedro, Mouzinho da Silveira – Liberalismo e Administração Pública, Lisboa, LivrosHorizonte, 1989.
  • MONTEIRO, Nuno Gonçalo, “Mouzinho da Silveira and the Political Culture of Portuguese Liberalism, 1820–1832” in History of European Ideas, volume 41, Edição 2, 2014, pp. 1-9. Disponível emhttps://repositorio.ul.pt/jspui/handle/10451/11084 (consultado em outubro de 2020).
  • PEREIRA, Miriam Halpern, “Del Antiguo Régimen al liberalismo (1807-1842)” in Portugal Y España Contemporáneos, Ayer, nº 37, 2000, pp. 39-64. Disponível em https://www.jstor.org/stable/41324926 (consultado emoutubro de 2020).
  • PEREIRA, Miriam Halpern, “Nación, ciudadanía y religión en Portugal en los siglos XIX-XX (1820-1910)” inEspaña y Alemania: historia de las relaciones culturales en el siglo       XX,       Ayer,       nº       69,       2008,       pp.       277-302.       Disponível       emhttps://www.jstor.org/stable/41325329 (consultado em outubro de 2020).
  • RIBEIRO, Maria Manuela Tavares, “Los Estados liberales (1834-1839/1890-1898)” in Portugal Y España Contemporáneos, Ayer, nº 47, 2000, pp. 65-95. Disponível em https://www.jstor.org/stable/41324927 (consultado emoutubro de 2020).

[i] MANIQUE, 1989, p. 48.

[ii] MONTEIRO, 2014, p. 5.

[iii] MONTEIRO, et. al., 2019, p. 6.

[iv] MANIQUE, 1989, p. 47.

[v] MONTEIRO, et. al., 2019, p. 75.

[vi] Ibidem. Veja-se também MONTEIRO, 2014, p. 9.

[vii] MONTEIRO, et. al., 2019, p. 76.

[viii] MANIQUE, 1989, p. 21.

[ix] «Coleção de Decretos e Regulamentos (…)», p. 59.

[x] MANIQUE, 1989, p. 52.

[xi] PEREIRA, 2000, p. 63.

[xii] MANIQUE, 1989, p. 48. Vejam-se os relatórios na «Coleção de Decretos e Regulamentos mandados publicar por sua Majestade Imperial desdeque assumiu a regência em 3 de março de 1832 até à sua entrada em Lisboa em 28 de julho de 1833», disponível em http://net.fd.ul.pt/legis/1832.htm.

[xiii] RIBEIRO, 2000, p. 78.

[xiv] MANIQUE, 1989, p. 55.

[xv] «Coleção de Decretos e Regulamentos (…)», p. 34.

[xvi]  «Coleção de Decretos e Regulamentos (…)», p. 59.

[xvii] Ibidem.

[xviii] MONTEIRO, 2014, p. 9.

[xix] MONTEIRO, et. al., 2019, p. 77.

[xx] Idem, p. 106.

[xxi] MANIQUE, 1989, p. 61.

[xxii] Idem, p. 62.

[xxiii] Idem, p. 67.

[xxiv] BRANDÃO & FEIJÓ, 1980, p. 255.

[xxv] MONTEIRO, 2014, p. 7.

[xxvi] MANIQUE, 1989, p. 61.

[xxvii] Idem, p. 101.

[xxviii] BRANDÃO & FEIJÓ, 1980, p. 238.

[xxix] Ibidem.