Escrevemos hoje, com tentativa de rigor, de forma atempada e tocando num ponto que cremos relevante na contemporaneidade, sobre diferenças objectivamente mensuráveis, conforme exemplos recentes, entre reacções de certos sectores políticos face ao perecimento dos seus opositores ou inimigos em comparação com sectores opostos, paralelos, díspares ou sem relação.
Vem isto a propósito do recém-desaparecido político, diplomata, estratega, ministro dos negócios estrangeiros, titã da geopolítica do século XX, Henry Kissinger. Como toda a gente de valor — bom ou mau — é odiado por muitos, admirado por outros tantos e amado por uns poucos menos. Na globalidade da sua actuação em concreto nos ramos da política internacional que escusamos aqui referir porque cremos conhecidos de toda a gente, Kissinger não foi propriamente uma personagem amante da carnificina, psicopata, lunática, genocida, ditatorial, anti-democrática, com pretensões totalitárias e inerentemente belicista, ao contrário de muitas outras alminhas com papéis importantes na governação de estados ao longo da história. Não era nenhum Pol Pot, nenhum Adolf Hitler, nenhum Saddam Hussein, nenhum Estaline, nenhum Fidel Castro, nenhum Joseph Mengele. Era, grosso modo, como alguns já apontaram, um descendente intelectual de Maquiavel, adepto da “política real”, pragmática, consequencialista, cujo cálculo moral escapava à imediatez e se focava na complexidade e imprevisibilidade da teia de acções e reacções a longo prazo que envolve não apenas qualquer acto concreto pessoal e particular mas ainda mais significativamente a geopolítica e a arte de produzir e gerir decisões colectivas. Nesse sentido, Kissinger é um intelectual da mesma craveira moral de qualquer secretário de estado/ministro dos negócios estrangeiros, não se compreendendo assim o ódio que suscita, excepto se esse ódio estiver de facto fundado não no seu quadro moral, sendo essa apenas uma desculpa, mas sim na sua genialidade, na sua inteligência superior, no estatuto titânico que possui na diplomacia do século XX.
Atentemos então, sem qualquer pudor, aos sectores políticos que tendem a comemorar efusivamente, quase abrindo champanhe e lançando foguetes, aquando dos desaparecimentos de figuras como Kissinger, Margaret Thatcher, Ronald Reagan. Estes sectores são os da esquerda e extrema-esquerda anti-capitalista, anti-democracia liberal, pró-colectivista, revolucionária e jacobina — foi curiosamente a até respeitável revista Jacobin que não escondeu um certo regozijo com o desaparecimento do diplomata americano, em relação ao qual alimentavam há anos, há décadas, o mesmo ódio que já referimos. Estes sectores seguramente farão a mesma festa quando personagens como Tony Blair ou Cavaco Silva nos deixarem, exibindo efusivamente satisfação que deveria ser reservada aos maiores psicopatas da história e não propriamente a figuras de forma objectiva apenas medianamente nocivas, na sua óptica, e certamente não responsáveis, de forma implícita ou explícita, por crimes aberrantes da dimensão de ditadores psicopatas, sendo que não faltaram muitos ao longo da história.
Não se pode dizer que comportamento análogo seja encontrado noutros sectores diferentes, como os conservadores, os liberais, os libertários, os nacionalistas, os sociais-democratas, mas talvez apenas nalgumas correntes mais hooliganizadas do etnocentrismo e do nacionalismo muito agressivo. Entre estas correntes políticas não é costume encontrar-se, se a memória não nos falha, festejos desbragados perante o desaparecimento de figuras como François Miterrand, Helmut Kohl, nem parece claro que o façam aquando da partida de Barack Obama ou de António Costa. Nem sequer no caso de putativos psicopatas como Saddam ou Khadaffi se registam significativos carnavais e manifestações sádicas e malcriadas de contentamento. Excepção pode ser aberta, claro, para os casos de Adolf Hitler ou, eventualmente, do actual presidente da Rússia, dado o demasiado evidente expansionismo militar, com elevado custo de vidas humanas, endossado por ambos. Assim, somos levados a perguntar o porquê de tais reacções disformes serem encontradas nos sectores políticos da esquerda revolucionária mas não noutros. Tentemos, então, listar as razões que podem presidir a isso.
Em primeiro lugar, a ética da revolução, conforme entendida por esses sectores — e podemos dizer que a revolução francesa e os seus excessos bárbaros são a encarnação mais palpável dos impulsos bélicos e sanguinários, primitivos e tribais, que estão latentes na vida social humana, mas que conheceu muitas outras encarnações — é uma ética em que o regresso ao barbarismo é temporariamente admitido em prol de um suposto estado futuro em que as injustiças presentes serão corrigidas. A fórmula mais conhecida desta moral é aquela que dita como os fins justificam os meios, e que foi popularizada pelas aventuras comunistas em larga escala do século XX, todas rotundamente falhadas. Significa isto então que a única moral que subjaz às acções destes actores políticos é a moral do cumprimento último dos objectivos, sem contemplações com a dignidade humana dos adversários e sem alimentar grandes dúvidas em relação à própria falibilidade das suas teorias e das suas disposições. Isto leva-nos ao segundo ponto.
Essa mesma incapacidade de ter em consideração a dignidade do outro, mesmo que inimigo político deriva precisamente da incapacidade de conceber ou admitir que se poderá estar errado, o que substancia, em ultima análise, uma forma de primitivismo irracional que se pode caracterizar como imberbe. O revolucionário de esquerda está tão convencido da bem-aventurança das suas causas e dos seus objectivos, tão juvenilmente inebriado pela força moral da sua posição, tão justificado para contemplar e cometer todo o tipo de atrocidades em prol do bem futuro, que nem sequer lhe passa pela cabeça a existência de eventuais falhas em parte ou no todo do seu esquema mental, o que poderia abrir a porta à concepção lógica do outro e das suas razões.
Isso traz-nos, por fim, à eventualidade desse estado fanático e amoral, pelo menos temporariamente, ver no inimigo que exibe um tipo semelhante de aparente e/ou superficial amoralidade — o caso de Kissinger, Maquiavel, ou de, enfim, qualquer génio — mas ao qual falta nível gémeo de fanatismo — dado que estas personagens são em geral regradas por um comprimento de onda cerebral e intelectual, não pela festa do vinho das ideias — acabando por ser, enfim, para o absoluto fanático que põe temporariamente a moral de parte, um animal estranho e que lhe desperta receios por razões particulares.
O consequencialista moral não põe a ética temporariamente de parte, antes pelo contrário: tem-na sempre em conta no esquema absoluto das coisas; e todas as formas que encontra para equilibrar a ética com um cálculo mais abrangente e inteligente da rede de acções e reacções, causas e efeitos, a que está ligada a mão humana, não se escusam a essa dimensão moral mas são em parte nela fundadas, dado que ele nunca se abandona ao barbarismo temporário em prol do objectivo futuro, antes pelo contrário: qualquer acção, ou inacção, aparentemente bárbara nada tem na realidade de selvagem, nem sequer de calculista no sentido linear de obtenção de ganho futuro, mas sim pertence à consideração de que princípios morais imanentes estão subjacentes a toda a rede de acções e reacções, e que frequentemente a descrição em primeiro grau da narrativa daí resultante não é uma descrição suficientemente válida em termos morais. Ou seja, qualquer descrição que atribui a Kissinger fomento de golpes de estado, instauração de regimes ditatoriais, favorecimento de políticas bélicas e bombardeamento de civis, etc., não é uma descrição completa se não incluir as acções presentes ou latentes das partes opostas — no caso, maioritariamente a URSS. Só na análise abrangente e consequencialista da rede destes cenários políticos é que um julgamento moral fundado poderá ser ensaiado.
O revolucionário de esquerda, por seu lado, opera num modo mental completamente diferente. Ele é capaz de interromper a moral vigente de modo quase absoluto — dado que, aliás, dado o seu carácter re-inventor, poderá até ver como um resquício de estruturas opressoras e injustas — abandonando-se assim ao total barbarismo e selvajaria de modo aparentemente temporário e controlado durante o período da revolução, deixando para mais mais tarde a instauração de um novo quadro a que se deixará obedecer em conformidade. Ou, pelo menos, é o que ele pensa. Na verdade, o que aparentemente acaba por acontecer, em larga medida, é que a selvajaria primitiva advém de impulsos muito fortes que dificilmente se conseguem mais tarde suprimir, explicando assim isto em parte porque é que os maravilhosos mundos imaginados pelos revolucionários do planeamento totalitário colectivista pós-iluminismo produziram alguns dos regimes mais aberrantes e sanguinários de sempre. É este estado mental que permite o ódio cego, irracional, baboso, imberbe e inumano, coalescido na fórmula dos fins e dos meios e conducente ao fenómeno presentemente analisado dos festejos imbecis perante o desaparecimento físico de meros inimigos políticos de alto gabarito.
Esta parece ser, enfim, a disposição mental e moral que permite ao animal de esquerda adoptar estes estados de espírito mais próprios de um semi-adolescente imbecil que ainda não sabe manejar a boa-educação moral de modo independente, e que é capaz de pontapear um animal ou trair um amigo por mera experimentação, brincadeira ou ingenuidade. Ele assim consegue descer à toca da falta de educação e de concepção da dignidade do outro — concepção essa que está ligada, como já vimos, à concepção de si próprio e da sua falibilidade —, independentemente das suas posições políticas ou até mesmo da totalidade do seu carácter moral, e festejar a partida de pessoas que estão muito, mas mesmo muito longe de serem diabos na terra. O ódio dirigido a elas tem, provavelmente, como já adiantámos, a estranheza do bicho que vê alguém capaz de ser inteira e amplamente moral de uma forma racional, coerente, consequencialista, fundada em ética, em teologia, e mesmo assim incluir na descrição simples das suas acções aparentes barbaridades, ao contrário do animal de esquerda, cujas expressões de barbaridade advém de licenças especiais para a demissão de toda a racionalidade, de toda a memória, de toda a faculdade intelectual, em prol de uma pré-estabelecida calendarização de ganhos futuros. Acresce a isto que o referido animal de esquerda não é apenas animal, pois de facto é uma pessoa humana que mimetiza temporariamente o comportamento de um animal, mas sabe-o secretamente, e o facto de o saber, e ter perante si uma criatura de tipo diferente que não abandona o raciocínio e a lógica de modo a praticar barbaridades com vista a um ganho futuro mas sim integra expressões que cabem nessas descrições na sua rede de consequências, suscita a esse animal de esquerda os sentimentos da inveja, da antagonia mais primitiva e mais infantil, e do ódio cego e irracional.
Estes tipos de criatura estarão sempre a anos-luz de distância uns dos outros, e enquanto que o animal de esquerda olha para o consequencialista lógico com o ódio do animal que olha para o homem, o consequencialista, por seu lado, olha para o barbarismo primário desse imberbe entusiasta político como um humano olha para a selvajaria de um animal. Ou seja, não propriamente com ódio, mas com condescendência. E estas são as suas diferenças, as diferenças de dois mundos mentais completamente diferentes.