Edição: Abril 2023

A nossa edição deste mês: seis artigos inéditos, submissões abertas, uma colecção de frases escritas nas paredes de Lisboa, assédio e romance na academia, colonialismo, desenvolvimento, circuncisão e mutilação, vegetarianos famosos, e filmes sobre comida.

Primeiro, um ensaio sobre a Iniciativa de Cidadania Europeia enquanto instrumento de participação cidadã nos mecanismos democráticos da União, de Dora Resende Alves e Mário Simões Barata, e um outro sobre como o conceito de teatralidade à luz de Stanislavski, Zola, Pirandello e Chekhov, desenha a sua evolução na transição que estes autores operam dentro do contexto de mudança do século XIX para o século XX, de Anastasiya Komarova.

Uma análise de um filme de Masaki Kobayashi tendo em conta os conceitos de “visualidade” propostos por Nicholas Mirzoeff, de João Pedro Soares, e uma nova rubrica da autoria de Cláudia Zafre com foco em itens discográficos raros e exóticos.

Uma breve crónica sobre o papel contemporâneo do treinador na identidade física e moral do desportista e outra de Rui Caria com uma breve reflexão sobre mudanças extremas de temperatura corporal e correspondentes efeitos na mente e na saúde.

Submissões Abertas (sempre!)

Temos já cerca de um ano de existência e mais de cento e cinquenta artigos publicados, a maior parte dos quais advinda das contribuições espontâneas de leitores e interessados. Voltamos a convidar assim todos os estudantes, investigadores e professores de todas as unidades académicas do país a submeterem as vossas propostas. Aceitamos ensaios, crónica e crítica. As condições são simples: deve ser material de âmbito académico disponível para ser lido pelo público em geral. Podem enviar as propostas para geral@revistaminerva.pt. Sugestões de tópicos para escrever aqui. Normas para submissão? São poucas, mas podem encontrá-las aqui.

Vegetarianos Famosos

Deixámos um apontamento sobre vegetarianismo e a ligação inerente dessa prática e ética à dimensão humana da crença — religiosa, política, cultural. Com efeito, foi sempre uma prescrição de adopção minoritária ligada à purificação e/ou qualificação do sujeito para certa disposição ou função especial, como as de místico, padre ou filósofo, segundo a enciclopédia Britânica. Apenas em particular no hinduísmo e no budismo, ou, pelo menos, nas versões depuradas a que temos acesso, é indicado como prática adequada para as pessoas em geral. Porém, preside a parte do fundamento dessa ética um critério grosseiro, popularucho e pouco científico a que chamamos o da “senciência” dos seres vivos (tornado equivalente, nas versões seculares correntes, meramente àqueles que possuem sistema nervoso, ou seja, que sentem dor), deixando de fora a quantidade enorme de organismos vivos de pequena e até microscópica dimensão. É caso para dizer: longe da vista, longe do coração. Por isso lembramos quatro figuras cuja vivência das suas crenças fanáticas, com mais razão ou com menos razão, integra de modo quase indissociável o vegetarianismo. Um, pela obsessão da pureza racial que chega até a considerar outros seres humanos como espécies inferiores, ao mesmo tempo que muito apreciava animais como a cadela Blondi; outra, pela purificação ambiental, que almeja retirar o ser humano não só da cadeia alimentar conforme existe mas mesmo de qualquer influência no meio-ambiente, na natureza, ou seja, da criação no sentido bíblico; outro, pelo despojamento, pela pobreza, pela vida mendicante e monástica extrema; e um último, uma versão bonacheironamente falhada disso, já que a reencarnação presente do Bodhisattva da compaixão pertence à categoria de pessoas que gostaria de ser vegetariana mas não consegue pois o organismo não se aguenta sem soçobrar na anemia, tendo assim de ingerir quantidades frugais de carne.

Colonialismo e Desenvolvimento e: Circuncisão ou Mutilação?

Retomámos um enunciado que pontualmente partilhamos em redes e que levantou tanto instintivas e emocionais reacções como bons pontos de partida para debates: a hipótese de que o período conhecido como descobrimentos foi um passo necessário para civilizações sub-desenvolvidas como as ameríndias e sub- saharianas tribais chegarem a um nível moral e tecnológico comparável com o resto do mundo. Tal hipótese requer que nos lembremos de como a ocupação militar, territorial e cultural é um fenómeno transversal à história humana, e como, ao contrário do que muito maniqueísticamente por vezes pensamos, resultam não apenas em explorações unipolares mas sim em trocas maioritariamente culturais que beneficiam ambas as partes — seguramente é o caso com as ocupações romanas, visigóticas e árabes da península ibérica, e pode ser o caso com as colonizações europeias das culturas sub-saharianas e ameríndias, populações que, aliás, já existiam em regimes de ocupações e sobre-ocupações culturais e militares, como em toda a parte. Para além do romantismo de algumas grandes civilizações de éticas pouco robustas e desenvolvimento tecnológico limitado, estas sociedades eram maioritariamente tribais, com sistemas de leis arcaicos, tecnologias inferiores e as experiências civilizacionais de larga escala eram de pouco sucesso. Deixamos assim o já largamente conhecido artigo de Bruce Gilley e toda a biografia associada, assim como uma obra algo política em contradição com esta tese, que alega, no caso africano, como a colonização teria subdesenvolvido o continente, partindo porém de suposições não-falsificáveis.

Abordámos um paralelo muito descartado por visões pouco lógicas e objectivas mas que, à luz de uma análise cuidada, deve ser colocado a par: a dualidade das práticas da circuncisão masculina e da mutilação genital feminina, à falta de melhores nomes científicos. Ambas ancestrais, de fundamentos religiosos, e em geral efectuadas ainda quando a pessoa é recém-nascida. A primeira é comum nas comunidades judaicas, inclusive no ocidente, sem significativa objecção social, e consiste no corte da pele de uma parte do sexo masculino designada por prepúcio. A segunda recolhe muito mais objeção de movimentos sociais, existe pouco no ocidente mas subsiste nas sociedades rurais africanas, e consiste em cortar a secção do sexo feminino designada por clitóris. É possível que existam aqui aspectos de medo de antissemitismo e de medo — ou não tanto medo — de respeito pelas tradições locais africanas aqui envoltos. E temos também o quadro de valores liberais ocidentais sob o qual estas consideração se fazem — e que inclui também grandes relativismos quanto à autodeterminação das crianças. De uma perspectiva filosófica, da história das ideias ou, para quem preferir, semiótica, deixamos aqui a única explicação transversal e inteligível sobre estes dois assuntos: ambos se destinam a amputar a sobra ou a sombra do sexo contrário presente em cada um dos sexos. No feminino, o clitóris, o resto mais semelhante a um apêndice fálico; no masculino, a deformidade flácida do prepúcio, semelhante a uma vulva e aos lábios vaginais. Aqueles trechos cujas remoções definem a mulher como menos fálica e o homem como menos vaginal. Aparte isso, muitas outras considerações são possíveis e o debate está ainda muito em aberto: o certo é que o paralelo parece inteiramente válido, e deve ser estudado de cabeça fria, com curiosidade intelectual perante práticas sanguinárias e chocantes da história da cultura humana.

Colecção de Frases Escritas nas Paredes de Lisboa

Têm sido raras as nossas publicações constituídas exclusivamente por arte visual, embora desejássemos que fossem mais frequentes. Tivemos o prazer de apresentar uma delas: uma amostra da extensa coleção de Jorge Almeida de fotografias de frases escritas nas paredes de Lisboa. A amostra é breve mas poderão encontrar muitos mais exemplares na página de Instagram do Jorge, em https://instagram.com/jorge.ms.almeida. Desde declarações de amor e ódio, frases revolucionárias, ou simplesmente enunciados absurdos possivelmente influenciados pelos espíritos de Dionísio, podem achar um pouco de tudo. Agradecemos ao Jorge ter aceite a proposta e convidamo-vos a visitarem a sua página.

Romance e Assédio na Academia

Por muito que as considerações da filósofa Agnes Callard sobre o amor e as relações amorosas, muito influenciadas pela sua própria experiência, possam parecer, para alguns, extraordinariamente aborrecidas e banais ou, para outros, imbuídas de fundamentos teóricos aristotélicos e de um espírito filosófico no sentido clássico absolutamente louváveis, trazemos aqui esta longa peça da New Yorker sobre a autora a propósito de alegações em relação a professores, estudantes e investigadores do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. E trazemos Callard para lembrar simplesmente isto: a filósofa, sendo ainda casada, iniciou um romance, a princípio do tipo “platónico“ mas depois concretizado em casamento com um estudante de doutoramento de uma faixa etária significativamente mais jovem. Isto não levantou nenhum tipo de problema para ninguém, e bem, por duas razões (1) o superior hierárquico é uma mulher e não um homem e (2) tratam-se de pessoas adultas. Este é um lembrete para aqueles que querem infantilizar em absoluto a sociedade e as relações humanas achando que superiores e inferiores hierárquicos, assim como colegas de trabalho porventura, não devem contrair relações de amizade, amorosas ou meramente eróticas. Enquanto membros inseridos em várias unidades académicas em Portugal, rejeitamos em absoluto essa visão totalizante, moralmente ortodoxa e tendencialmente infantil das coisas. Existem seguramente casos, talvez até numerosos, de assédio moral, e casos possivelmente não tão numerosos de assédio sexual entre professores, alunos e investigadores e as várias posições hierárquicas aí existentes— e, nesse ponto, queremos lembrar também o princípio basilar moral e judicial absolutamente indispensável que é o da presunção de inocência; mas isso não inviabiliza de modo algum que pessoas adultas sejam infantilizadas em absoluto ao ponto de se achar que relações de amizade, amor ou erotismo entre “hierarquias” diferentes devem ser em absoluto excluídas da sociedade. Lembramos, por fim, que em Portugal a maioridade civil atinge-se aos 18 anos.

Cinema: Comida (e Before Sunrise)

E pensando num filme ainda actualmente em cartaz nalgumas salas, O Menu (2022), sobre um jantar envenenado preparado por um chef como castigo para várias figuras da elite, revolvemos destacar quatro filmes históricos, todos mais ou menos recentes, sobre comida. Menções honrosas para o famosíssimo Ratatouille à parte, elencamos assim Delicatessen, de 1991, a fantasia de Jean-Pierre Jeunet sobre um romance num mundo apocalíptico e canibal, O Cozinheiro, o Ladrão, a sua Mulher e o Amante Dela, de Peter Greenway, 1989, sobre um triângulo amoroso num restaurante com muita violência gráfica e canibalismo, A Festa de Babette, filme dinamarquês de 1987, sobre um magnífico festim para comemorar um aniversário de nascimento do fundador de uma congregação religiosa, e o também conhecido Chocolat, de 2000, com Juliette Binoche e Johnny Depp, sobre a luxúria de uma loja de chocolate numa comunidade rural.

Por fim, no fim-de-semana festivo da Páscoa, destacámos um conteúdo cinematográfico suave: a trilogia de filmes americanos indie, protagonizados por Ethan Hawke e Julie Delpy, iniciada em 1995 com Before Sunset: misturando o romantismo do Erasmus europeu, a reflexão filosófica de médio nível sobre relações humanas e o amor, e, mais tarde, nas sequelas, reflexões putativamente mais aborrecidas e não ao alcance do projecto inicial sobre as relações duradouras e a vida em casal. Existe com certeza uma história dos filmes sobre encontros e romances despontados de contextos de pessoas em viagens, e estas entradas fazem seguramente parte da mesma.

Submissões

Terminamos desejando a todos um bom trabalho e um feliz mês de Abril muito primaveril e já bastante lançado para os terrenos dos verões. Voltamos a endereçar o convite para nos enviarem propostas de artigos, em fase já concluída ou enquanto versão incompleta, mero esboço ou mesmo apenas ideia. Aceitamos todos os temas de relevo, mas podem consultar sugestões de tópicos aqui. Até breve!

Retrato de Katherine Sophie Dreier (1877 –1952), uma abastada americana e patrona das artes do início do século XX, tendo-se associado com Marcel Duchamp, Man Ray, entre outros.