A caminho do conforto do Inverno: 10 inéditos, cavalos, discoteca Lux, política na universidade, TOC, fobias, genocídio, freelancers intelectuais, teses improváveis, computadores da antiguidade, diários esquecidos, filmes de terror e mulheres.
Começamos com um excelente trabalho de Ana Vieira Vicente, que, directamente do mundo rural, ensina às universidades e seus participantes algo que escapa ao conhecimento da maioria das criaturas urbanas: como é e como ter e criar um cavalo. Quanto custa adquirir, quanto custa manter, o que precisa e não precisa, como se compara com um automóvel ou com um cão em todos esses aspectos, quão acessível é a nível económico, quão comum é a nível social, e muitas mais coisas que tais sobre a sua vida e personalidade. Leiam e aprendam!
Depois, Ricardo Fortunato aborda, numa crónica, a actualidade de micro- protestos no campus universitário ou de jovens em idade universitária, analisando várias proposições falaciosas: sobre como ser-se jovem não implica pugnar por transformação social; quem está na universidade não deve ser necessariamente jovem; e como o pensamento crítico não deve levar por si só e necessariamente a transformação social.
A propósito dos 25 anos da famosa e muito badalada discoteca lisboeta Lux-Frágil, um dueto de intervenções, de Ricardo Fortunato e do músico e etnomusicólogo Vítor Rua, ambas de um ponto de vista semelhante: o primeiro sobre quem, apesar de residir em Lisboa, apreciar música electrónica e gostar de sair à noite, está-se nas tintas para a icónica e badalada discoteca; e o segundo sobre a destrinça possível entre a feira de vaidades superficiais da elite e o espaço da vanguarda cultural que representa, não esquecendo toda a história por detrás.
Depois, mais um artigo de Luís Filipe Coelho com perspectivas filosóficas significativas aplicadas desta vez ao tópico da fisioterapia, pegando de modo concreto no método de Pilates e na sua aplicação à condição da raquialgia.
De seguida, Itélio Muchisse, directamente de Moçambique, dá-nos uma análise sobre as mudanças nas sociedades africanas e em Moçambique em particular quanto à crescente dependência material e conceptual dos ofícios intelectuais, nomeadamente na academia.
Eurico de Carvalho traz-nos um breve texto sobre o decréscimo de qualidade operativa, de estatuto económico e de reputação social da carreira de professor do ensino público, desde há cinquenta anos para cá.
E João Miguel Santos dá-nos uma breve apresentação da escritora contemporânea Seomara da Veiga Ferreira, autora de romances históricos, a que acresce um corpo teórico à respectiva obra.
Ainda, a costumeira e bem-vinda incursão de Cláudia Zafre por itens musicais raros e exóticos, pegando numa peculiar e onírica cantora folk dos anos setenta, uma banda new wave dos oitenta, e uma obscura banda de rock tuareg hipnótico.
Por último, Sofia Alexandra Carvalho, publicando em paralelo em jazz.pt, fala-nos de uma famosa cantora. De “Strange Fruit” a “God Bless the Child”: recordamos uma das vozes mais marcantes e inconfundíveis do jazz, Billie Holiday (1915-1959).
O Distúrbio Obsessivo-Compulsivo, a Criatividade e o Direito à Fobia
Destacámos com prazer um dos distúrbios neuróticos mais associados à criatividade, mais bizarros, mais lúcidos, cujo carácter simples esconde tanto características de raciocínio complexo como de profunda agonia para o seu portador. Trata-se do transtorno da obsessão-compulsão, com incidência sobre cerca de 2,5% da população no ocidente, caracterizado de modo geral pela necessidade imperativa de efectuar pequenas repetições de actos físicos e de actos mentais, particularmente mas não só de rituais de higiene (uma das formas mais comuns e mais estereotipadas), rituais quotidianos, gestos e acções importantes, etc. Alguns exemplos são encontrados em figuras históricas da criatividade artística e científica, como Samuel Johnson, viciado em repetir gestos aquando da transposição de um espaço para o outro (uma porta, uma fenda no pavimento, etc.); David Lynch, focado em comer exactamente a mesma refeição todos os dias durante mais de 7 anos e por vezes interessado em conduzir ao longo do quarteirão até encontrar uma matrícula com capicua (para começar bem o dia, diz); Nikolas Tesla, fascinado com contagens de passos, mastigações, travessias, etc., em geral associadas ao número três ou a múltiplos (um número muito comum para a condição); e Howard Hughes, o caso mais conhecido, que terminou na dramática reclusão e incapacidade de higiene básica mas que começou discreto, também associado a contagens, separações meticulosas entre objectos, perfeccionismo e lavagem de mãos e corpo. É uma condição muito curiosa: ao longo do padecimento da mesma aparentemente o sujeito mantém-se inteiramente lúcido, ou seja, não ocorre aquilo a que se chama uma psicose, o alheamento da realidade através de efabulações ou alucinações sensitivas, mas mesmo dentro dessa lucidez e, se calhar, fortalecido paradoxalmente pela mesma, existe a compulsão irresistível da repetição desses pequenos gestos ou pensamentos, desde os mais coloquiais aos mais impactantes. A sua ligação à criatividade parece inegável e de facto talvez seja interpretável tanto através do perfeccionismo como do excesso de atenção a pequenos nadas, disposições necessárias ao trabalho bem feito. Vícios mentais esse que, porém, apesar de se bem direccionados serem vitais para uma boa obra artística ou técnica, resultam, se deixados sem controle, numa evidente agonia extrema para o seu portador e eventualmente na incapacidade de realizar uma vida mundana normal. Deixamos aqui esta que é, no fundo, uma homenagem a esta intrincada disposição mental.
Depois, abordámos confusões conceptuais no discurso público, e até versando sobre matéria legislativa, sobre o direito a ter “fobias“. Aparentemente, no argumentário académico contemporâneo, particularmente no universo anglo- saxónico mas também fora do mesmo, e também fora do universo académico, no registo coloquial de conversas intelectuais entre pessoas, uma certa “carta“ recorrente tem sido a de acusar o interlocutor de ser “qualquer-coisa-ista“ ou “fóbico“, querendo dizer que as suas opiniões têm determinadas características, em geral de indivíduos ou grupos, como possuindo uma conotação negativa a partida e portanto resultando isso em o seu argumento estar minado à partida. Ora isto é falso por duas razões, ou melhor, de duas maneiras: primeiro, se for de facto o caso, não é por alguém ter uma opinião negativa sobre um conjunto de características que verá, por razões de ordem moral, a forma lógica do seu argumento imediatamente invalidada; segundo, na maior parte das vezes que esse “trunfo“, que mais não serve do que como término artificial da conversação, é usado, é usado sem qualquer sentido, ou seja, atribuindo ao interlocutor uma posição generalista e preconceituosa que o mesmo não está de todo a ter. De qualquer modo, o facto que convém lembrar é o seguinte: numa sociedade aberta, numa democracia de pleno direito civil da liberdade de opinião e de expressão, qualquer pessoa tem o direito de ter as opiniões negativas sobre indivíduos, grupos de indivíduos, sobre características de indivíduos e sobre o que bem entender, mesmo que essas opiniões se aventurem no terreno do absolutamente pouco recomendável ou aberrante. Isto inclui racismos, etnocentrismos, homofobia, machismo, antissemitismo, tudo. Inclui até a versão de modo geral aquilo que alguns chamam “estupidez da religião“, como alguns ateus, muito tantos militantes, frequentemente referem (serão “teofóbicos”?) ou a opressão inerente à existência do estado que os anarquistas ou algumas variantes de liberalismo económico radical considerariam como absolutamente negativa (são “estadofóbicos”?)´. Ou seja, o ideal talvez possa bem consistir em, depois de sujeito a uma acusação dessas (“isso é fascista!” “Isso é homofóbico” “isso é antisemitico!”), o autor se confesse desde logo partidário de todos esses estados mentais e mais alguns, mesmo que tal não seja verdade (validando assim a fantasia: “aos malucos nunca se diz que não”), replicando de seguida: “será que a partir de agora podemos ter uma conversa séria”? Por último, deixamos, para queda final na espiral do disparate da perda de tempo de todo este onanismo moral, a melhor de todas as fobias: a FOBOBIA: o medo de ter fobias! Consultem em https://embracechangetherapy.com/2020/10/19/phobias/ ou noutras paragens.
Quatro Teses Improváveis e Quatro Computadores Antigos
Apresentámos ainda, pela graça, quatro teses académicas improváveis de pessoas públicas, duas portuguesas e duas estrangeiras. A primeira é a de um hoje famoso chefe de claque de futebol, Fernando Madureira, commumente conhecido como o “macaco”, em gestão desportiva, versando sobre o tema da relação entre claques e instituições desportivas na vertente do marketing; a segunda é do político André Ventura, em direito, sobre o tema da reforma do sistema de justiça criminal e que tem, como aliás não é invulgar que tenha na obra de qualquer pessoa, contradições com posições políticas actuais suas, pois as teses não reflectem necessariamente “opinião”; depois, a do comediante Rowan Atkinson, pai da imortal personagem Mr. Bean, em engenharia electrotécnica, sobre sistemas de controle de calibragem automática; e, por último, Brian May, guitarrista da lendária banda Queen, em astrofísica, sobre um fenómeno luminoso terrestre conhecido como as luz zodiacal. Destas dissertações, umas melhores outras piores, poderão encontrar em cima as ligações para as mesmas.
Destacámos também quatro experiências na história europeia que preludiaram o grande avanço, a grande efusão, a grande orgia das máquinas lógicas no final do século XX e que até hoje nos acompanham, dentro dos nossos bolsos. Em primeiro lugar, por ordem cronológica, o mecanismo de Antikythera, um computador analógico da antiguidade supostamente projectado por Arquimedes e capaz de produzir previsões sobre eclipses e movimentos estelares com grande antecipação, descoberto em 1901, nas ruínas de um naufrágio. Depois, o místico maiorquino Ramon Lull, pioneiro da computação, terá divisado um computador, possivelmente apenas a partir de enunciados e não através da construção mecânica, capaz de só produzir afirmações verdadeiras acerca da doutrina da fé. Uma proposta certamente louvável. Ainda, a máquina de Alan Turing, matemático inglês, construída durante a segunda guerra mundial, também um computador analógico capaz de descodificar as mensagens alemãs. Por último, a máquina-logro com o anão que sabia jogar muito bem xadrez, do século XVIII, e esta vem fora da ordem cronológica porque se trata de uma perfeita aldrabice: o mechanical turk, ou simplesmente the turk, foi construído na Áustria e realizou uma tournée por toda a Europa por várias décadas, tratando-se de uma suposta máquina de xadrez capaz de derrotar qualquer oponente. Porém, a sua dimensão permitia albergar um humano lá dentro. Era esse o segredo. Por detrás de todos os computadores e de toda a inteligência artificial que está a ter, aparentemente, a génese da sua grande dimensão, encontra-se sempre uma mente humana que concebe os esquemas? Fica a pergunta.
Correcções de Facto Sobre o Uso dos Termos “Genocídio”, “Apartheid” e “Ocupação/Colonização”
Ana de Oliveira Sérgio mostra-nos algumas correcções essenciais sobre “genocídio”, “apartheid” e “colonização”, terminologia frequente nas últimas semanas, e, na verdade, desde há anos sujeita a grandes abusos no âmbito do conflito entre árabes e judeus na zona da Palestina. Apesar de recentemente vozes mais sãs, entre as quais as dos insuspeitos Barack Obama e Bernie Sanders, terem correctamente sublinhado como a situação do conflito judaico-árabe é complexa e não tem respostas fáceis nem absolutos inocentes de parte a parte, vemos com preocupação crescente o uso não factual dos termos acima citados para reflectir a posição do estado de Israel sobre o estado falhado da Palestina e respectivas populações árabes, maioritariamente reflectido numa enxurrada violenta de propaganda transmitida tanto pela comunicação social como até mesmo por agências internacionais como a ONU e derivadas, propaganda essa que, certa ou errada, coincide exactamente com os actuais objectivos do abjecto grupo terrorista Hamas, financiado pelo Irão: retratar a situação em Gaza em particular e na restante Palestina em geral como de “genocídio”, de “apartheid” e de “colonização/ocupação”. Ora Israel pode ser muitas coisas mas é preciso apontar que nenhuma destas classificações se adequa em sentido estrito à situação actual e é duvidoso que alguma vez se tenha adequado. Vejamos como. Em primeiro lugar, a melhor descrição, ainda que imperfeita, para o que se passa nas terras da região da Palestina no seu todo, incluindo Israel, talvez seja, desde há 100 anos, a de guerra civil. Actualmente essa mesma guerra civil consubstanciou-se na constituição de um estado de pleno direito, Israel, e num estado falhado, a Palestina. Existem vítimas de parte a parte dessa guerra, que são até substancialmente maiores do lado palestiniano (facto ao qual não será alheio o desrespeito pela vida dos próprios da parte da cultura e das cúpulas militares da região): mas não atingem números sequer próximos daquilo que se pudesse considerar um genocídio, tanto que a população palestiniana quadruplicou em cinquenta anos. Seria um genocídio muito estranho. Além disso, consta que algures entre 300.000 a 500.000 pessoas morreram nos bombardeamentos aliados à Alemanha na fase final da segunda guerra. Não consta que alguém tenha alguma vez concebido que se tratasse de um “genocídio do povo alemão“. Quanto ao “apartheid”, refere-se, de modo genérico, aos controles fronteiriços apertados instituídos por Israel em redor das fronteiras de Gaza e dentro da própria Cisjordânia decorrentes dos constantes ataques terroristas a civis de que vinha a ser alvo desde há décadas — e que, efectivamente, cessaram em termos do bombismo suicida mas que continuam com grande regularidade em termos de ataques com rockets artesanais. Só para terem a noção do que é a vida num estado assim. Porém, Gaza e a Cisjordânia têm poderes políticos próprios, o que seria estranho para uma situação de efectivo “apartheid”. Tal classificação porém é ainda mais abstrusa se aplicada ao interior do próprio estado de Israel, que é uma democracia plena sob quase todos os critérios: tem partidos, oposição, eleições, tribunais independentes, pesos e contrapesos, 20% de população árabe com representação parlamentar e direito de voto, etc. É completamente absurdo categorizar o interior do estado de Israel, e os cerca de 3 milhões de árabes que lá vivem, como existindo numa situação de “apartheid”. Por último, a ideia de “ocupação/colonização” está relacionada com três pontos: os já referidos controles fronteiriços apertados e o crescimento de colonatos em terras alegadamente pertencentes a árabes, aos ganhos de território nas guerras de 1948 e 1967, em que Israel foi violentadamente atacada pelos vizinhos árabes e ganhou a guerra, e, talvez este último ponto o mais importante, a noção generalizada no mundo árabe de que os judeus não têm o direito de estar ali.
Nada disto é admissível: em Gaza neste momento não existem colonatos e na cijordânia a situação está a ser permanentemente negociada; os ganhos de território são inteiramente legítimos, dado que os vizinhos árabes jogaram as suas cartas da guerra e perderam, e referem-se maioritariamente a terras que são basicamente desertos — e que Israel consegue transformar em zonas prósperas por ser um estado funcional — e os judeus têm todo o direito de estar ali pois sempre estiveram, embora desde inícios do século XX a sua população tenha aumentado imenso, o que nunca foi aceite pelas culturas árabes da região, maioritariamente tribais e racistas, e têm todo o direito a terem um estado em que os próprios árabes, dentro dele, têm mais direitos e melhor vida do que nos estados falhados em redor. Estes são os factos. Desafiamos qualquer pessoa a apresentar argumentos em contrário, notando que os mesmos não podem contrariar preceitos básicos da lógica (p.ex. não existe “genocídio” quando uma população quadruplica em cinquenta anos, não existe “apartheid” quando os três milhões de árabes em Israel têm direito de voto, representação parlamentar e juízes no supremo tribunal, e não existe “colonização” quando sempre existiram comunidades judaicas de cultura mais ou menos homogénea naquela região).
Desejamos que todos reflictam com mais cuidado antes de opinarem sobre um conflito tão complexo em muitos aspectos mas que certamente não merece nenhum dos qualificativos ilógicos que citámos, e pensem bem se ao fazê-lo não estão simplesmente a repetir propaganda que advém das fontes mais odiosas — ideologias islâmicas fanáticas e aberrantes que pretendem desde a extinção do estado de israel até à islamização forçada do mundo — maioritariamente financiadas por potências políticas como Irão e respectivos satélites em redor, cujos valores são a quase total antítese das democracias liberais e dos direitos que nelas vigoram, mundo no qual todos habitamos e reconhecemos como nosso e próprio para as nossas actividades.
A Wikipédia e o Viés Político e Duas Ideologias “Modernaças”
Notámos que uma das fontes de informação mais populares e mais usadas no mundo, a extraordinariamente diversificada Wikipédia, depende, como todas as obras humanas dependem, de mãos e cabeças que podem ser susceptíveis de parcialidade. Isso, na verdade, é inteiramente natural, e talvez represente um problema com o projecto enciclopédico no seu todo, postulado por Diderot em 1751, animado pelo espírito iluminista da imparcialidade e da verdade científica; mas essa dificuldade ainda fica mais acrescida perante o projecto de “edição em comunidade” da proposta wiki, longe da autoria/curadoria individual. O facto de os entusiastas deste projecto estarem em grande parte ligados às aéreas da tecnologia, e o facto de o estado da Califórnia ser hoje mais radicalmente progressista politicamente do que o resto do mundo, leva a episódios muito duvidosos quanto a nalgum conteúdo lá exposto. Enunciemos dois: os artigos referentes a “marxismo cultural“ e a “teoria da substituição“, dois tópicos que são em grande medida definidos como “teorias de conspiração de extrema direita“, quando, no caso do primeiro, a escola de Frankfurt é literalmente a aplicação de preceitos da teoria marxista a aspetos da cultura em geral, escola essa que existiu e que tem e teve a sua influência nas academias; e, no segundo caso, que existe uma mudança demográfica em termos de composição étnica completamente objectiva e estatisticamente comprovável em relação à população ocidental desde há 70 anos para cá, para o bem e para o mal, sem entrar em juízos de valor. Note-se que estes artigos já passaram por várias modificações, entre as quais a inclusão mais explícita da escola de Frankfurt, no primeiro, e, no segundo caso, tanto nesse artigo como no que diz respeito a “White genocide conspiracy theory”, nota-se a ausência da mudança demográfica no ocidente como um tópico sério e válido por si só. Em suma, “marxismo cultural” na academia e no discurso público não é uma teoria da conspiração, é um desenvolvimento presente e reconhecível da história das ideias; e a “teoria da substituição” só é uma teoria quando se especula sobre se existe uma intencionalidade que orquestre a mesma, pois a mudança demográfica por si só é perfeitamente evidente. Note-se que, ao contrário do que julgam os “conspiradores” que crêem na conspiração ou os “contra-conspiradores” que não crêem, na maior parte dos casos coloquiais esses termos são usados na sua acepção factual e não na sua acepção especulativa.
Depois, neste período turbulento e por vezes histérico da presente situação política em Portugal, situação essa que é perfeitamente normal, escolhemos não falar do óbvio mas preferir destacar duas forças políticas recentes, uma delas partido. Têm-se confundido, por atraírem jovens que se julgam moderados mas que muitas vezes são donos de um fanatismo a respeito das próprias ideias, frequentemente ingénuas, que dificulta o diálogo. São elas o Volt Portugal e a @ASDprojeto. Ricardo Fortunato comenta esse tópico. O primeiro, o Volt, é já partido e pretende configurar-se como força trans-europeia, tendo nascido no UK aquando da saída deste da UE, pugnando assim pelo federalismo europeu, além de uma mescla de políticas integralistas de esquerda moderna, algumas delas contraditórias, entre as quais digitalização das economias e dos serviços, economias verdes, políticas de integração de imigrantes, democracia participativa, etc. O ASD, por seu lado, é uma ligeiramente obscura entidade com presença maioritariamente nas redes sociais e pouco mais, mas possivelmente com ambições de se constituir como movimento cívico mais robusto. Colocamo-los nesta publicação em paralelo porque encontramos muitos pontos semelhantes não só entre a vaga área ideológica de onde emergem mas também da nossa experiência de interacção social com muitos dos seus apoiantes ou militantes, frequente donos daquela arrogância particular dos jovens no início da vida adulta ou a partir do momento em que se encontram capazes de pensar de forma abstracta e cujas ideias e convicções das mesmas parecem mais motivadas por vontade de viver e por impressões momentâneas do que outra coisa mais séria.
Tanto um movimento/partido/ideologia como o outro parecem ser adequados a este tipo de padrão: jovens, ou jovens mentais, que fazem uma espécie de média ou “melhor de popularidade” das ideias mais “na moda“ entre essas classes etárias e mentais conforme cada época e a partir daí se apresentam como os “new kids on the block”. De um modo objectivo, a amálgama de ideias que corresponde a cada um desse movimentos não parece nem mais nem menos perigosa do que aquelas ideias também frequentemente abrangentes, abstractas e contraditórias encarnadas por alguns dos partidos que são commumente encarados como de “extrema direita“ na paisagem europeia e ocidental contemporânea. Ou seja, de certo modo, estes são partidos populistas ou que almejam algum tipo de populismo (fama, sucesso, celebridade, etc…), e que merecem tanta atenção alarmista como as tenebrosas forças recentemente chegadas a eleições e parlamentos na Europa que se costumam designar por “anti-democráticas” quando, no fundo, têm a mesma ideia de democracia destas mais jovens e mais “porreiraças” a democracia, para elas, é aquilo que elas próprias pensam e não mais; e o hábito de conceber, pensar, e tolerar o outro, é algo que ainda não têm. Chamamos portanto a atenção para essas duas manifestações de ideologias políticas contemporâneas muito pouco fundamentadas, baseadas, fundamentalmente, em “juventude” ou, como dizia alguém” possivelmente em “jumentude”, e que, grosso modo, parecem ser, objetivamente, chamarizes de jovens urbanos “modernaços“ que nada mais são do que reciclagem de ideias antigas com alguns chavões. Mas claro: não vamos dizer que são partidos “antidemocráticos“, já que não somos chalupas e não existem quaisquer provas disso, aconselhando também a todos em geral que se abstenham de usar esse epíteto sem substância para o provar.
Mais Novidades na Filosofia e Quatro Diários Esquecidos
Trouxemos mais oito novidades editoriais do mundo da filosofia, sempre com a ajuda da fantástica publicação Notre Dame Philosophical Reviews. Primeiro, Ignorance: A Philosophical Study, de Rik Peelsum, um pequeno tratado sobre uma área neglicenciada da epistemologia analítica, a ignorância, enquadrada no campo designado por agnosticologia. Depois, da famosa filósofa feminista e queer Judith Butler, What World Is This? A Pandemic Phenomenology, sobre questões éticas e políticas relacionadas com esse contexto na contemporaneidade inédito. Ainda, de Ned Block, The Border Between Seeing and Thinking, sobre a ligação da filosofia à realidade. De seguida, Proust’s In Search of Lost Time: Philosophical Perspectives, editado por Katherine Elkins, um volume com ensaios de perspectiva filosófica sobre a magna obra de Proust. Depois, de Craig DeLancey, Consciousness as Complex Event: Towards a New Physicalism, uma re-abordagem de matriz fisicalista ao problema da mente, indicando que se trata apenas de fenómenos mentais muito complexos e na beira do ininteligível. Seguindo-se René van Woudenberg, The Epistemology of Reading and Interpretation, que trata não especificamente do que acontece quando lemos literatura ou filosofia mas sim do que acontece mentalmente quando deciframos uma linguagem visual de signos, ou seja, o bruto acto de ler. Ainda, de Michele Moody-Adams, Making Space for Justice: Social Movements, Collective Imagination, and Political Hope, que tece um argumento sobre como os movimentos sociais contemporâneos são uma prática de inquérito cívico e social necessária. Por último, Mark Wilson, Imitation of Rigor: An Alternative History of Analytic Philosophy, uma abordagem alternativa ao mundo da filosofia analítica e seus postulados, que põe em causa a noção de que o mais importante nas descrições dessa escola, e das ciências exactas ou semi-exactas, seja propriamente o seu conteúdo axiomático.
Ainda na literatura destacámos também o género diarístico, com pouca produção — os escritores e artistas em geral tendem a pensar que são os seus escritos não pessoais, formalizados em géneros consagrados, aqueles destinadas a serem as obras mais importantes, e não propriamente os pensamentos que rabiscam num caderno sem outro critério que não a progressão do tempo — mas com muita popularidade, pensando em particular em quatro autores de importância e reconhecimento inegáveis: Andy Warhol, Anaïs Nin, Sylvia Plath e Frank Kafka. Poderiam também ser mencionadas Virginia Woolf e a famosa adolescente judaica Anne Frank, o que nos lembra como talvez o pouco espaço literário na esfera pública dado às mulheres ao longo da história as empurrou frequentemente para o vazar dessa arte na forma diarística, embora talvez possa existir uma série de factores do carácter especificamente feminino que o favorecem. De qualquer forma, em Warhol temos um aglomerado de vaidades socializantes da Nova Iorque dos anos setenta e oitenta, que até certo ponto entra no registo serializado e bizantino da repetição do conceito “encontrei o Michael Jackson, he looks great, encontrei a Elizabeth Taylor, she looks great”, etc.; em Anaïs Nin um relato da escritora burguesa do início do passado século, aquela que enveredou pelo relativismo do deboche físico e do experimentalismo emocional: muita poesia erótica ou a tentativa disso, muito sexo, etc; em Plath, descrições das suas dificuldades psicológicas na ligação com o seu próprio corpo, a família, a vida; e em Kafka, uma mistura de pequenas observações, algumas crípticas, sonhos, obsessões com o real quotidiano, numa tonalidade negra e pessimista própria do autor.
Cinema: The Love Witch, os filmes Giallo e Três de Terror Realizados por Mulheres
No cinema, destacámos, pela sabedora e hábil pena de Mafalda Simão Leal, uma obra de cinema, The Love Witch, de 2016, escrito e realizado por Anna Biller, mas com o intuito de falar sobre um género cinematográfico italiano dos anos 60 do passado século: o Giallo. Género que mistura o thriller, o suspense, o erótico, e, por último, o terror sanguinário — Giallo, que significa literalmente amarelo, advém de uma série de histórias de crime publicadas na década de trinta em itália, de capa amarela, mas também representam o amarelo da febre e aproximam-se do vermelho do sangue — pertenceu a uma idade de oiro do cinema italiano, hoje já desparecida, mas que deixou os seus pontuais herdeiros, como este The Love Witch. Este conta com uma imensidão de referências cinematográficas, uma recriação do Technicolor dos anos sessenta do passado século e do Giallo italiano. Elaine, a protagonista interpretada pela actriz Samantha Robinson, tem muitas semelhanças com ícones desse género cinematográfico como a actriz italiana Edwige Fenech. Toda a maquilhagem e o guarda roupa, remetem para o universo feminino do Giallo. Além desse género, encontra-se no filme o folk horror — e possivelmente a cena da protagonista com um vestido vermelho, ao volante do carro, é uma referência ao filme The Velvet Vampire realizado por Stephanie Rothman. Quanto ao enredo de The Love Witch, trata-se de uma bruxa, como o nome do filme indica, uma bruxa do amor que usa feitiços para que os homens se apaixonem perdidamente por ela. Esta perseguição desenfreada pelo seu príncipe encantado foi despoletada por um desgosto amoroso: na raíz desta obsessão estão traumas causados pelo sexo masculino. Elaine persegue um amor de conto de fadas, e por isso está condenada ao fracasso e a uma insatisfação crónica relativamente aos homens que vai enfeitiçando pelo caminho. Desta forma, de modo satírico, o filme centra-se na condição feminina contemporânea e universal, com pontos transversais a todas as sociedades: a exigência quando se trata da aparência, a artificialidade como instrumento de sedução, a insegurança, expectativas românticas irrealistas, a dinâmica do poder nas relações entre os sexos. Ainda, não se contentando com os feitiços, Elaine esforça-se imenso, não se apresenta como é, enche-se de maquilhagens, perucas, ajusta a aparência e comportamento de acordo com o gosto do seu alvo: o artifício é a sua especialidade. Na sua óptica, está numa situação de poder, consegue seduzir os homens, mas aí entra o paradoxo: está a submeter-se aos desejos e a sacrificar a sua essência para encarnar as fantasias masculinas. No fundo, o pior dessa situação é a parte consciente do sacrifício pessoal da verdadeira identidade, interiorizado por Elaine, como necessário para ser amada. “I’m your ultimamente fantasy”, declara, rendida à sua condição. O filme consegue também parodiar outros estereótipos femininos relacionados: a mulher fatal, a dona de casa perfeita que cozinha um bom bife, a combinação de ambas. Elaine encarna todos eles para agradar ao seu amado. Sugerimos a todos não só que espreitem esta peculiar e retrospectivesca película mas também que se inteirem do que é o género Giallo da Itália fílmica dos anos setenta, sobre o qual falaremos mais em breve.
Recomendamos, por fim, igualmente com a curadoria da cinéfila Mafalda Simão Leal e da sua magnífica página de cinema no Instagram, três filmes de terror realizados por mulheres. O primeiro, The Velvet Vampire, de 1971, de Stephanie Rothman, em que uma vampira seduz um casal recém-casado, é um exercício estilizado de thriller erótico num cenário do deserto norte- americano com interpretações medianas e um argumento competente. O segundo, comicamente entitulado The Slumber Party Massacre, de 1982, de Amy Holden Jones e escrito por Rita Mae Brown, remete imediatamente para o género slasher semi-cómico, em que uma reunião de amigas — uma festa de pijama — é interrompida por um assassino em série correndo pela vizinhança. E o terceiro, baseado no romance de 1983 de Stephen King, é Pet Sematary, de 1989, de Mary Lambert, e figura um casal recém-chegado a uma localidade em que o seu animal falecido volta à vida depois de enterrado, experimentando de seguida o mesmo com o filho.
Submissões
Partilhamos com regularidade chamadas para artigos nas nossas edições, este mês reforçadas com publicações destacadas nas redes sociais e na recém- regressada e muito benvinda plataforma9 (agregador de novidades académicas em língua portuguesa). Deixamos assim o convite, para, neste início de ano lectivo, todos os interessados, dentro e fora das universidades, submeterem propostas para artigos — ensaios, crónicas e críticas — que podem chegar-nos numa fase já concluída ou enquanto versões incompletas, meros esboços ou apenas ideias. Podem escrever-nos sobre temas das vossas áreas de estudo e investigação ou sobre os tópicos que preferirem.
Recomendamos em particular aos membros da comunidade académica que aproveitem conteúdos frequentemente desperdiçados — como trabalhos para cadeiras e seminários, apontamentos, estudos parciais, trabalhos de campo, relatórios, registos de conversas e debates, etc. — para os dar a conhecer ao mundo. Teremos todo o prazer de ajudar a convertê-los em formato legíveis pelo público em geral. Contatem-nos em geral@revistaminerva.pt. Aceitamos todos os temas de relevo, mas podem consultar sugestões de tópicos aqui.
Imagem: retrato de Isabella Stewart Gardner (1840–1924), da autoria de john Singer Sargent, de 1988, herdeira abastada, originária da cidade de Boston, que contribui e supervisionou a construcção e apetrechamento do Isabella Stewart Gardner Museum na mesma cidade, entre 1899 e 1901, exibindo primariamente arte ocidental, mas também oriental e islâmica.