Há 25 anos que não vou ao Lux

Na celebração dos 25 anos da famosa e muito burguesa discoteca Lux, Ricardo Fortunato traz-nos um texto representando o ponto de vista de algumas pessoas que, apesar de residirem em Lisboa ou arredores, apreciarem música electrónica, gostarem de sair à noite, estão-se absolutamente na tintas para esta tão icónica e badalada discoteca.

Há uma pequena história, que mais parece uma rábula de revista à portuguesa, e que pode ou não ilustrar alegoricamente de algum modo o que é o Lux, o que se passa no Lux e para que serve o Lux. Recentemente, naquela zona de Santa Apolónia — e crê-se que durante a pandemia, embora tal seja irrelevante para a história — um bebé humano, vivo, foi encontrado num caixote, ou melhor, num contentor de lixo. A comunicação social, acorrendo babosamente ao terreno, é convencida por um vagabundo local de que foi ele a encontrar o bebé e alertar as autoridades. De rompante, aquele que já foi considerado por alguns como o grande cata-vento mediático da praça, e que hoje serve como Presidente da República, desloca-se ao cenário e vai, como é costume da sua postura pública, dar um grande abraço ao dito vagabundo, aclamando-o como um herói, ao mesmo tempo que deixa que lhe tirem umas quantas selfies. Mas poucas horas, ou um dia, depois, surgem outros vagabundos desmentindo o primeiro, afirmando que esse não tinha encontrado nada, que estava a mentir, e que foram outros que encontraram a criança. Ao que o dito, nomeado por alguns, “cata-vento mediático”, no seu estilo ufano, soberbo e magnânimo, declara que são todos uns heróis e merecem todos um abraço. Resumindo, e concluindo: bebé é encontrado no caixote, Marcelo vai lá, dar os parabéns ao mentiroso, é desmentido, e no final diz que todos os mentirosos estão de parabéns. 

Saindo do terreno da alegoria, podemos embarcar em várias descrições, em registo de relance onírico, do ajuntamento social e cultural representado por esta discoteca. A primeira: vários intelectuais urbanos, maioritariamente esquerdistas, progressistas e intolerantes à crítica, amontoam-se à porta, amontoam-se lá dentro e depois dizem que a varanda é muito boa. A segunda: políticos, artistas e chavalos vão sair à noite e não arranjaram ideia melhor do que ir aos sítios a que uns e outros vão ou querem ir. A terceira: não há putas, a droga é boa (o que é ou pode ser mau mas também pode ser bom, dependendo de se se está em África ou em Amsterdão), a música é de “dança inteligente” durante grande parte do tempo, e segue tendências — tendências essas que não seguem propriamente tendências mas simplesmente gostos superficiais e patéticos e classes cultural-económicas do pequeno e periférico meio provinciano português —, a comida é inexistente — os bêbados e drogados finos não comem, só repetem — a conversa é previsível ou inexistente, a classe social é já-feita ou expectável, a classe económica é bem-vinda à entrada, a classe intelectual é pura e simplesmente a mesma dessa, ou seja, de absolutamente nenhuma “intelectualidade” relevante, simplesmente sub-existindo deitada sobre o conforto burguês daquilo a que hoje se chama o apreço pela “cultura” e pelas artes e letras, de um modo simplesmente cómodo, sem qualquer invenção extraordinária. Qual é, afinal, o interesse do “Lux”?

Temos uma equipa de cerca de oito pessoas, mais coisa menos coisa, e nenhuma põe os pés no Lux com regularidade de espécie alguma, sendo aliás a frequência algures entre “nunca” e “uma ou duas vezes” (e duas já é muito). Somos, apesar disso, maioritariamente “pessoas normais”, intelectuais urbanos perfeitamente padronizados num certo tipo de interesses, embora não necessariamente de estilo de vida, que frequentam pontualmente eventos de música, de cinema, de dança (mas não de teatro, que horror — é muito mau mesmo), pessoas que se dirigem a bares e consomem bebidas, que são moderadamente sociais, que gostam de alguns museus e de alguns centros culturais, que se vestem condignamente para respetivos eventos, ou então não, que apreciam ficar acordadas até tarde ocasionalmente, que gostam de alguma vida nocturna, etc. Mas ninguém põe os pés no Lux. Porquê?

Será inteligente, porém, notar que por aqui ninguém (1) tem qualquer tipo de inclinação do tipo hipster de ir meter o focinho nos sítios que estejam “na moda”, pois não somos, para o bem e para o mal, provincianos da cidade; (2) que a nossa relação com o mundo das artes é intelectual, pessoal e primeiramente privada, e não, primordialmente, social e/ou familiar, como o é para alguns ou muitos; (3) que não somos, nem temos o carácter inclinado para ser, o tipo de máquinas sócio-políticas de opinar e fazer conversa sobre contingências da actualidade, nem temos particular inclinação para as preocupações da “cultura” (no sentido dos fundos públicos e da classe social dependente desses ou doutros), nem da política. São três pontos talvez fulcrais no estabelecimento da nossa incompatibilidade endémica com as razões que levarão muitos a desclocar-se ao Lux. 

Não deixa de ser um sitio onde se pode dançar música electrónica urbana, mais especificamente, e usando o termo que actualmente já designa um género mais específico num sentido mais lato, dançar intelligent dance music. Mas é um sítio onde só se pode dançar essa música ou derivadas, o que nada tem de mal por si só, a menos que haja algo de mal por si só nesse tipo de música, na classe social intelectual urbana que a aprecia e a procura, e em toda a simbiose entre um sítio, esse tipo de música e esse tipo de pessoas. É possível que exista. Feliz ou infelizmente, como não metemos lá os pés frequentemente, não fazemos uma ideia tão clara disso como gostaríamos ou não gostaríamos (dependendo de se a ideia é boa ou má).

Não ajuda que o meio cultural português seja, como o país o é no seu todo, periférico, provinciano e pobre. Não ajuda que as reuniões sociais mais oficiais, mais oficiosas ou mais triviais desse grupo sejam feiras de vaidades com poucas razões para vaidade, amálgamas conceptuais e discursivas de banalidades com pouca substância e cultura intelectual de imitação, e resultem na prática em auto-estradas infindáveis de conversas aborrecidas, autistas, amedrontadas, histéricas, adolescentes, burrinhas e gays. É aliás muito pouco peculiar que Lisboa concentre a maior parte desse provincianismo, mais intenso do que até na própria província, e muito notoriamente, na opinião de alguns de nós, mais intenso do que noutras grandes cidades (na medida do possível) portuguesas, como o Porto ou Coimbra, já para não falar das pequenas e médias localidades, com maior solidez cultural nesse sentido. É natural: quanto mais provinciano, mais se sonha, inutilmente, ser cosmopolita, e logo a seguir se pega nas malas e se vai para a cidade grande — e em geral calha à pobre de Lisboa essa sorte — e depressa se juntam aos outros provincianos, enquanto que os pobres cidadãos nativos desta cidade a norte do Tejo, que são, maioritariamente, pessoas normais, intelectuais ou não, têm de aturar as turbas arrivistas, intelectuais ou não, venham elas da “cultura”, da pastelaria ou da Fórmula 1.

Seria a discoteca Lux um sítio interessante sem esta gente? É difícil dizer, pois possivelmente sem esta gente não existiria discoteca Lux conforme a conhecemos. O sítio está projectado para este público, depende do mundo das artes e letras português, mundo esse que, no regime presente, vive casado ou enamorado de certas forças políticas aliás notavelmente persistentes na ocupação do poder, eleitoral, legislativo ou económico, desde há cinquenta anos; e o sítio nocturno em questão, que, geneticamente, é uma discoteca de música inteligente para pessoas inteligentes, ocupa simbioticamente o espaço da relação entre a existência desse público, que em Portugal tem as características que tem, e a actividade possível para um estabelecimento nocturno desse género, que não consegue, conforme a proposta de vanguarda-para-burguês que tem, desvincular-se desse público, nem provavelmente o quereria.

É possível conceber o espaço, a música, o ambiente, sem estas pessoas? Talvez, mas o que restaria seria uma banal apresentação de bar de hotel do Algarve, com esplanadas e bom espaço, uma cave onde se dança um pouco de música menos má que noutros sítios, e uma garrafeira provavelmente sem nada de extraordinário. Para isso, existem dezenas ou centenas de locais laterais, esses sim, verdadeiramente extraordinários, actual ou potencialmente, na sua singularidade, completamente desvinculados desse público e dessa tentativa de elevação civilizacional num país, e num aglomerado urbano em particular, que são periféricos e provincianos e em que as elevações civilizacionais muitas vezes nada mais são do que reedições do golfejar medíocre e nado-morto do hipster provinciano tentando alcançar as portas do céu “do que se faz lá fora”, mas nada mais conseguindo do que arrotar banalidades contigentes ou generalistas, de ter bebido e fumado mal ou não tão bem, ao lado dos seus amigos pseudo-progressistas, na varanda junto ao rio Tejo, depois de ter dançado música que acha que é menos má que noutros sítios e ficar completamente igual ao barro bronco que lhe deu origem: e, a partir daí, dizem, é “Lisboa que Amanhece”, como já dizia outro famoso intelectual português da mesma, ou quase da mesma, estirpe.