O Aríete e a Porta Negra: o Milagre do Treino

Texto de Rui Caria. Revisão de Sílvia Pereira Diogo. Resumo: Superação da dor através do esforço do exercício físico. Musculação e natação como as provas mais emblemáticas para a renovação do corpo e da disposição anímica humana, que se transforma com o passar do tempo. Palavras-chave: treino; superação; natação; musculação.

Treinar sempre me fez feliz. Enquanto menino pequenino com pouco mais do que um esqueleto, gostava de pegar em botijas de gás vazias e levantá-las acima da minha cabeça. Cada rugido e grunhido era coberto de sinceridade e prazer. Encontrava um espelho à frente do qual podia fletir os músculos que não havia e tentava adivinhar o dia em que eles se erguessem para esticarem toda aquela pele macia. Naquele pequeno corpo, tentava levantar o tempo na direção da força e competência que o futuro me prometia e ocultava.

Quando os meus pais me levavam à terra prometida que era o clube de vídeo da nossa cidade, eram os heróis dos filmes de ação que me vendiam uma história nas capas dos DVDs. Na capa do “Predador”, o Arnold Schwarzenegger segurava uma arma pesada com braços que não deixavam dúvidas sobre a sua capacidade de conseguir lutar contra uma criatura de outro planeta especializada em caçar as espécies mais mortíferas. Na capa do “Rambo”, o tronco do Silvester Stallone parecia ter sido esculpido para intimidar qualquer inimigo com a sua capacidade de resistir ao impacto de balas.

Processadas na minha jovem mente, as narrativas simples dos anos 80 elevaram os corpos dos seus heróis a objetos de culto; símbolos de coragem e competência conquistados através de esforços que poucos estavam dispostos a fazer. Eram aqueles corpos que se davam às balas, facas e fogo, para alcançarem a fonte do perigo e, com as forças que detinham, a extinguirem.

Este fascínio precoce com o treino e o alcance da força aparentava ser hereditário. Na sua adolescência, antes de a tragédia lhe escurecer o espírito, o meu pai deixava-se levar até aos limites por um fanatismo pelo Bruce Lee. Fez do quarto um santuário com posters nas paredes, revia com profunda reverência as cassetes dos seus filmes e, eventualmente, imitando as mesmas técnicas, esculpiu o corpo à imagem do seu ídolo.

O meu avô, apesar da sua dedicação à igreja (enquanto catequista e ensaísta do coro), nunca encontrou conflito entre este tipo de treino e a educação religiosa que tentava impor aos seus filhos. Uma fotografia que os meus pais me revelaram – e de que hoje choro a perda – mostrava claramente o porquê. Quando era um jovem marinheiro, o meu avô esculpiu-se à altura das forças do mar. Nessa fotografia, pousava com a naturalidade de um veterano dos palcos de culturismo, exibindo aquilo em que se fez. Mesmo em velho, conservava as costas largas como o horizonte que suporta o céu. Hoje, já não as posso abraçar, apesar da falta que me fazem.

Apesar de me terem faltado tantas outras coisas, não me faltou inspiração, incentivo e instrução para treinar. Aprendi cedo que exercícios trabalhavam certos músculos e, portanto, o que empurrar e o que puxar para fazer crescer o que queria. Era uma jardinagem violenta, onde se rega sementes com dor e se olha para o espelho que nos revela o solo fértil.

Poder-se-ia inferir que esta atitude seria acompanhada de um gosto pelo desporto, nomeadamente, esse favorito dos jovens rapazinhos e adultos rapazinhos que é o futebol. Muito cedo fiz a confissão da qual quase resultou a minha crucificação: não gosto de futebol. Vários esforços foram investidos na minha conversão, mas nenhum deles resultou, para grande desilusão de todos os membros masculinos da minha família e de todas aquelas pessoas que achavam que a primeira pergunta que se deve fazer a um jovem pré-adolescente para o conhecer melhor é: “então, menino, és do benfica ou do sporting?”.

O meu problema não era com o futebol; era com desportos de equipa. Apesar de não ter as palavras para o articular, o que eu sentia era que não queria trabalhar para nenhum sucesso que não fosse meu e que de mim não dependesse exclusivamente. Não queria ir aos treinos para estar com os filhos do primo do tio no balneário a combinar boleias para ir jogar à terra distante da freguesia ao lado pelo prazer do convívio e de uma sandes de presunto e queijo (ambos quentes depois de demasiadas horas no carro). Não queria vestir camisolas de cores foleiras, conversar com miúdos que foram feitos estúpidos pelos pais que lhes prometeram que aquela bola lhes ia fazer ganhar milhões, ou ser treinado por gente que acha que o mais importante é uma pessoa divertir-se e, no final do dia, pela minha parte, sentir-me fraco por participar em mediocridade.

Uma imagem com ar livre, céu, pessoa, silhueta

Descrição gerada automaticamente

Eu queria treinar ao ponto de não me reconhecer. Sentir na dor do meu esforço a certeza de que algo tinha definitivamente mudado. Que eu próprio e as coisas que tinha feito eram merecedoras de orgulho.

Nas artes marciais encontrei a primeira satisfação, numa disciplina do corpo e da mente. Quando levadas ao seu ideal, são uma manifestação física da nossa evolução. Fizemo-nos capazes de subordinar o caos que nos habita para servir a ordem que ambicionamos. Por isso, não se pode chamar menos do que arte, mesmo que seja uma arte com base na brutalidade, elevando-a, ao mesmo tempo que a reconstruímos com o espírito. Através das artes marciais percebi a relação simbiótica entre a mente e o corpo; para subordinar o corpo, é preciso subordinar a mente, mas a disciplina da mente só surge com a disciplina do corpo.

Apesar de todo o bem que me fez, foi uma paisagem que observei com paciência enquanto, sentado no banco de trás do veículo do tempo, ansiava pelo dia de chegar ao meu verdadeiro destino: as portas de um ginásio. Os adultos diziam que o meu corpo ainda não estava pronto: “Ó menino vai fazer-te mal à coluna, joga antes à bola”. As teorias dos rapazes pré-adolescentes eram muito mais interessantes; por exemplo: “Puto se treinares agora, os músculos vão apertar demasiado os teus ossos e depois não cresces”.

Nenhum aviso me dissuadiu. Para uma melhor compreensão da minha motivação, creio ser necessário clarificar a imagem que tinha de um ginásio. Para isso, é preciso distinguir os ginásios de hoje dos ginásios da minha infância. Não havia aulas. Ninguém tinha ouvido falar de cyclyng, step, sprint, body attack, body balance, body combat, body pump, body step, yoga, fly-yoga, 3B, Zumba… e todos os outros espetáculos de circo que os ginásios tiveram de inventar para que as pessoas que não gostam de fazer exercício se juntassem para passar uma hora a tentar seguir coreografias e a comparar fatos de treino. Não havia personal trainers. Ninguém se fazia seguir de uma pessoa a quem pagavam para os motivar com palavras doces para fazerem um bocadinho de força, alguém que lhes levava água à boca e, no fim, ajudava a alongar em posições comprometedoras.

Havia ferro. Ferro ferrugento. Ferro pesado. Ferro suado.

Lâmpadas que baloiçavam para iluminar de todos os ângulos esculturas inacabadas. Espelhos com fissuras que fraturavam rostos em sofrimento. Máquinas que faziam tanto barulho como quem as usava. Chão com falta de azulejos que nunca seriam substituídos. Balneários onde a água vinha com a pressão e temperatura que apetecesse.

O ginásio do Sr. Zé era o meu templo de ferro. Com 15 anos, comecei a peregrinação (que durava apenas 10 minutos a pé desde a minha casa) que iria observar religiosamente às segundas, quartas e sextas. Lembro-me de nas aulas de fim da tarde querer empurrar os ponteiros do relógio para que chegasse mais depressa a hora de ir levantar ferro. Numa aparelhagem velha, o Sr. Zé deixava-me colocar músicas dos anos 80 que, progressivamente, ficavam mais e mais pesadas, até que, finalmente, levantávamos ferro ao som de metal. Música pesada para peso pesado. Os meus pré-treinos eram ingeridos por via auditiva.

Ser o mais novo merecia-me o encorajamento e os ensinamentos dos homens mais velhos e mais gigantescos, cujas sombras se estendiam pelo chão do ginásio, enquanto o sol descia. Eles levantavam a carga máxima que cada máquina permitia: “Força, miúdo! Puxa! ‘Tás forte!”. Sem se esquecerem de relembrar: “Miúdo, descansa”; “Faz intervalo.”; “Cuidado com a carga”. Ajudavam-me quando me sentia confiante para levantar mais do que o normal no supino e os meus braços tremiam quando tentava pousar a barra. Outras vezes, quando a minha postura se rendia ao peso dos alteres, ouvia alguém gritar de outra ponta: “Levanta a cabeça, miúdo! Não deves nada a ninguém!”.

Levantar ferro era bom. Entrar no ginásio permitiu-me lançar-me no meu habitat natural depois de anos em cativeiro. Todas as árvores iam conhecer as minhas garras. Eventualmente, ia ouvir, sem condescendência: “’Tás grande, miúdo! ‘Tás um bicho!”.

Há poucos orgulhos acima daquele que se sente quando, depois de mover toneladas, encaramos o nosso corpo como conquistado. Esculpido à medida das nossas ambições. Na revelação de que ele é mais do que imaginámos, percebemos que também nós o somos. Aí reside a verdade que se atinge através do treino – a que se refere ao que somos e ao que podemos ser.

Nos dias de hoje, infelizmente, e contra a minha vontade, estou afastado do ferro. Uma doença autoimune castiga-me as articulações com dor e falta de mobilidade, especialmente quando insisto em levantar coisas demasiado pesadas. Quando as crises atacam, chegam a roubar-me o sono. Encaro este recente diagnóstico com alguma ironia. Aparenta ser uma vingança do meu corpo depois de tudo pelo que o fiz passar. Na verdade, é uma tentativa fútil do meu corpo de conquistar a minha mente. Foi o maior erro dele.

Depois de deixar claro que cargas pesadas e desportos de impacto só iam piorar a minha condição, a minha médica deu-me autorização e incentivo para praticar apenas um desporto: natação. Devo confessar que foi uma transição que me custou a fazer. Água e ferro não podiam ser mais diferentes. Não se pode pegar e levantar acima da cabeça. À primeira vista, parece um fraco adversário. Até que a pessoa se atira para dentro da piscina e percebe que, apesar de não lhe poder agarrar e pegar, ela pesa.

Uma boa maneira de colocar a dificuldade de nadar em perspetiva é olhar para as distâncias de uma prova Ironman. É uma das provas de resistências mais duras do mundo, que divide a sua distância total em três modalidades: corrida, ciclismo e natação. Um atleta que reúna coragem e capacidade para participar neste desafio terá de pedalar 180km. Para além disso, terá de correr uma maratona completa. Ou seja, 42km. Tudo distâncias longas que ninguém se atreveria a fazer em condições normais sem o auxílio de um carro. No meio desta exigente prova de esforço, reserva-se à natação uns humildes 3km. Pouco mais de 1% da distância total de cerca de 225km.

Capitão Webb (1848 – 1883) atravessa o canal Inglês, Calais, França, circa 1875

Nadar é voltar a um universo de que há muito fugimos. Através da evolução, escapámos ao seu peso esmagador de profundezas desconhecidas e frio implacável. Seduzidos pelos confortos do sol e do ar, tornámo-nos estranhos às exigências do mar. Tão fracos que até uma piscina, apenas uma réplica medíocre e incomparável, é capaz de nos colocar à prova. Mesmo em águas anestesiadas, é fácil sofrer a submissão de infinitas mãos.

As minhas primeiras sessões de treino na pista livre da piscina Olímpica de Coimbra foram humilhações que tive de sofrer por orgulho. Quando imerso, era completamente desadequado. Foi um retorno à infância, nos tempos em que o meu corpo era inútil. Debaixo da superfície da humilhação, escondiam-se, nas profundezas do meu interior, os meus verdadeiros sentimentos. Estava a ser condenado pelo meu próprio corpo à fraqueza. A doença exilou-me do ferro e das artes marciais para me enfiar em água morna onde, nunca mais, provaria o sabor da força, até que, finalmente, esta se diluiria na memória, como algo que poderia ou não ter sido verdade. Lembro-me de voltar da piscina e sentir algo que nunca tinha sentido antes: tristeza depois de um treino.

A antiga promessa de nunca mais ser fraco afogou em águas sangrentas a possibilidade de desistir. Se me fiz à medida do ferro, conseguiria fazer-me à medida da água. O ferro é fácil de compreender: pega e levanta. Eventualmente fica leve. Nesse momento, pega-se num ferro mais pesado e levanta-se outra vez. É preciso compreender a água: como lhe pegar e como sentir quando ela fica mais leve e o sujeito que aqui escreve mais forte. Tive de perguntar a mim mesmo: o que é que está a pesar? Lembro-me de que, quando comecei, mal conseguia nadar uma piscina inteira. Quando chegava à outra margem precisava de recuperar antes de conseguir continuar. A distância era o peso. Era aí que tinha de pegar.

Concentrei-me em aumentar a distância. Com tempo e persistência consegui aumentar progressivamente as piscinas que conseguia fazer antes de precisar de parar. Como em qualquer desporto, o progresso inicial é rapidamente seguido por uma parede de estagnação que parece incontornável. Esta estagnação foi acompanhada pela compreensão de que nadar é um esforço complexo. O potencial aquático é o resultado de resistência conjugada com técnica. Não ia conseguir continuar a pegar-lhe com força bruta. Não era ferro, era água. Um obstáculo adaptável requer adaptabilidade.

Tornou-se um esforço orquestrado: nadar o máximo que se consegue, mais o esforço da concentração no ritmo da respiração, manter a cabeça neutra, subir as ancas, apontar o cotovelo para cima, esticar bem o braço na entrada, rodar a anca quando se puxa, não dobrar os pulsos e os tornozelos; impulsionar debaixo de água, relaxar fora de água, não deixar que o cansaço impeça nenhuma destas coisas. Só o tempo levou ao automatismo de deixar a cabeça livre para se concentrar no esforço. A partir daí, a única coisa que passa a importar é a distância. Mais piscinas. Mais metros. Mais quilómetros. E nesta vontade, redescobre-se a sede de força e o prazer de saciá-la. Isto levou a fartar-me da água anestesiada. Queria água a sério, livre, debaixo de céu e com ondas que mordem a costa.

Sob pena de me aborrecer, descobri as provas de águas abertas. Nadar em rios, lagos, albufeiras e, claro, no Oceano Atlântico. Tive um batismo de fogo (sim, também é possível na água). A minha primeira prova de águas abertas foi à noite. No Neon Night Swim, com um fato demasiado grande para mim, com um glow-stick preso no elástico dos óculos e demasiada gente à minha volta, nadei no rio Mondego depois do sol se pôr. Arranquei com medo, mas cheguei com glória.

À data da escrita desta reflexão, faz pouco mais de um ano desde que descobri a minha doença e comecei a nadar. Já pisei alguns pódios e nado pela AAC. Mas, honestamente, as medalhas pouco importam, até, porque, nunca pensei nelas, nem as imaginei possíveis. Acima de todas essas coisas, está o treino. O treino do corpo mascara o exercício da alma. A força do corpo é a sombra da resiliência do espírito. Treinar é participar no milagre da transformação da dor em capacidade.

Quando comecei a nadar, em visões subaquáticas, os meus limites revelaram-se como uma porta negra gigante; a boca de muralhas que guardavam uma cidade dourada. Nadar era ganhar ímpeto para embater. No início, a minha fraqueza mal me permitia alcançar com o punho a madeira calejada dessa porta. Do outro lado, torres esculpidas de promessa rompiam o céu. Não eram minhas, mas eram para mim. Precisava de rebentar a porta. Bater-lhe com mais força. Tinha de treinar mais. Com esforço esculpia um aríete da minha dor. Com tempo, aproximava-me mais da porta. Eventualmente, o aríete começou a deixar marcas na madeira negra. A porta já não parecia tão grande, a cidade já não tão distante.

É preciso dedicação para rebentar a porta. Só uma aliança com a dor consegue alcançar esse feito. O cerco é mais justo do que parece: o aríete está sempre perto da porta. O esforço de o alcançar, pegar e usar, é nosso. Finalmente, por entre novas dores, num golpe triunfal, rebentamos a porta. Encontramos uma glória breve. As torres não alcançam as alturas que prometiam. Como dentes no horizonte longínquo, vemos torres mais altas e mais douradas. Por detrás de uma nova porta negra.

A velha força transforma-se em fraqueza diante dos nossos olhos quando vislumbramos a possibilidade de sermos mais fortes. A conquista é de nós mesmos. Treinar é realizar este milagre de nos refazermos mais fortes através da dor. A guerra é eterna, mas também a sua glória. Talvez nunca alcance a torre mais alta ou a cidade mais dourada, mas, com cada porta negra que mando abaixo, sinto-me feliz.