Texto de Ricardo Fortunato. Imagens: série de fotografias de James Dean em New York City, 1955, por Dennis Stock.
I. O Mês do “Pride” e a Pulverização da “Comunidade”
Tem-se assistido neste ano de 2023 a pequenos ensaios e a pequenas manifestações daquilo que se pode descrever como uma certa revolta não só das pessoas em geral mas particularmente da população gay e lésbica com o evento acima referido.
Eis parte das razões porquê: muitas pessoas lúcidas e fartas de modas, de todas as orientações sexuais, começam a compreender como o evento representa um agregado impossível e contraditório, uma misturada de expressões e identidades cuja único mote comum parece ser não serem heterosexuais. É isto então aquilo em que se tornou a celebração do “orgulho do alfabeto” (escusando-nos aqui a reproduzir a sigla interminavelmente ilegível que hoje é usada para designar uma suposta “comunidade”), particularmente num momento em que todos os direitos relacionados com sexualidades minoritárias estão já garantidos na lei, e em que aliás se incluem privilégios — como, por exemplo, o direito a não ser discriminado pela orientação ou identidade sexual, que é algo que existe apenas para algumas características da personalidade e não para outras, mas essa é outra história.
Claramente o dito evento, que tem a peculiaridade de durar o mês inteiro — sendo que não há muitas causas sociais com esse privilégio — deixou de fazer sentido de modo significativo enquanto movimento político de reivindicação, redundando-se num um mero festival, um “Santo António dos gays”, digamos. Poderia alegar-se: “mas ainda há pessoas por esse mundo fora mortas por serem gay!” Sim, pois há. Também há pessoas mortas pela religião que professam. Estariam os proponentes e entusiastas do anterior de acordo com a instauração de mês de celebração e reivindicação da liberdade religiosa? Imporia a coerência que sim. Duvida-se que simpatizassem com a ideia.
Se bem que o carácter festivaleiro e celebratório tem todo direito a existir — particularmente se forem entidades privadas a custeá-lo, naturalmente com benefícios lucrativos, ou parcerias público privadas inteligentes entre câmaras, estado e privados — o carácter de “causa social“ está hoje quase completamente dissolvido no ponto corrente de aceitação generalista de identidades sexuais minoritárias nas sociedades ocidentais, ao que acresce todos os “direitos“ estarem já consagrados na lei, a menos que queiram acrescentar a esses o da comparticipação do Estado em meios tecnológicos para se reproduzirem, já que os casais homossexuais não o conseguem fazer autonomamente. Ainda não se lembraram dessa mas um dia vão lembrar-se.
Existe, porém, além da reivindicação de igualdade cívica legislativa e tolerância social, uma ideia realisticamente impossível e utópica a que certas pessoas e parte do ethos do evento pretendem agarrar-se: a ideia de “normalização” de práticas e identidades que, de acordo com médias ocidentais, correspondem a cerca de 5% da população e não existindo qualquer razão para pensar que possam corresponder a mais. Nada do que é feito por apenas 5% da população será “normalizado” ao nível de práticas e identidades que recolham muito mais popularidade — tal como a agricultura urbana, a tourada ou a pertença à maçonaria não são “normalizados” no sentido em que muita gente as estranha e as rejeita.
Portanto — isto é um fenómeno que tem ocorrido por todo mundo — as “marchas gay“ perdem a sua razão de existir quando todos os direitos pretendidos na letra da lei e na prática social em geral já foram alcançados; e, afinal, era esse objetivo, não era? Resta, assim, um “festival“ a que os políticos batem palmas. É natural, assim, um certo descrédito e enfado da parte toda a gente, gays inclusive, com o evento que, aliás, tem cada vez mais esse aproveitamento político interesseiro e que perdeu força como movimento autónomo precisamente por as sexualidade minoritárias estarem suficientemente normalizadas.
Para além disso, pegando num quadro panorâmico das identidades sexuais minoritárias mais relevantes, pelo que sabemos — e é dos Estados Unidos que nos chegam a maior parte destes dados — os gays são, em média, donos de um QI maior, membros de comunidades muito mais coesas e com mecanismos de entre ajuda muito mais fortes, auferem salários acima da média, dominam, e dominam bem, certas áreas vocacionais e profissionais de elite como as artes e letras ou a carreira diplomática: podemos mesmo descrever robustamente estas comunidades, de modo lato, como discriminadas e vulneráveis?
Por último, nota-se também uma espécie de prelúdio da pulverização da “comunidade do alfabeto”, o que é natural pois não existe nenhuma razão lógica que levasse a pensar que todas as identidades sexuais minoritárias seriam agregáveis e identificáveis umas com as outras: de facto, observam-se hoje em dia tiradas muito estranhas e infelizes como sugerirem a lésbicas masculinas ou gays femininos que na verdade têm disforia de género e deviam embarcar numa transição, ou o contrário, sugerirem a pessoas com disforia de género que na verdade se tratam de gays e lésbicas. Estas tensões estiveram latentes durante muito tempo e agora vêm à tona.
É em particular da preocupação recente e explosiva com o conceito de “transgénero“ que têm surgido os maiores problemas. Têm sido vendidas ao público em geral ideias totalmente lunáticas, anticientíficas, contrafactuais e arriscadíssimas para a saúde mental e física das pessoas: ideias que vão desde a normalização da mutilação, aliás sancionada e comparticipada pelo estado, o instigar quase desportivo de dúvidas psicológicas e fisiológicas profundas em pessoas de idade impressionável, e até que performers sexuais a lerem histórias a crianças é uma prática recomendável,ideias que são, no mínimo dos mínimos, muitíssimo discutíveis e merecedoras seguramente de enorme desconfiança da parte de qualquer pessoa mentalmente sã, lúcida e íntegra, gays inclusive.
Eis então um retrato parcial da actualidade das “paradas gay”, fenómeno de história recente e que, tudo indica, está em vias de transformação, como tudo na vida.
II. “De homem não passamos e a mulher nunca chegamos”: travestismo e a realidade biológica
Citação de Fernando Santos (nome artístico: Deborah), profissional travesti.
Como adenda a este comentário, é importante destacar também aquela que pode ser uma posição robusta e coerente sobre um dos últimos pontos acima referidos: a da questão imensamente — e por natureza — ambígua, além de neste momento explosiva e de difícil inteligibilidade, da existência “transgénero”.
A tese aqui apresentada pretende incluir a maior parte das expressões hoje consideradas como “transgénero”, excepto aquelas resultantes de problemas de desenvolvimento na passagem da dimensão genética para a dimensão fenotípica, ou seja, fisiológica, como parte da tradição cultural do travestismo. É na história, na substância e na função desta prática identidade, no seu papel hoje, e na realidade biológica por detrás, que vamos fundar esta descrição tendente à simplificação conceptual.
O termo, “trangénero”, abreviadamente “trans”, que abrange várias coisas diferentes (desde disforia de género, rejeição do modelo binário sexual ou travestismo clássico), tendente claramente à inclusão desse na tradição e história do travestismo, começando por uma breve descrição fundada na biologia. Vamos então por partes: a identidade sexual das pessoas é codificada desde o momento da concepção em todas as células do seu corpo através de uma coisa que se chama “cromossomas“: a partir daí forma-se a identidade fenotípica, através de diferentes sistemas hormonais e genitais em particular, mas também a nível de diferentes formas e disposições prototípicas do esqueleto, dos músculos, ou até mesmo da neurologia. Salvo alguns acidentes muitíssimo raros em que problemas na passagem do código genético para o desenvolvimento fenotípico resultam em situações ambíguas, isto funciona deste modo com toda a gente.
Eis então o núcleo central deste enunciado: qualquer pessoa que passe por terapias hormonais ou intervenções cirúrgicas não está a fazer mais do que a aplicação de uma maquilhagem complexa, além de destrutiva, para distorcer/esconder essa realidade biológica em prol de uma concepção pessoal subjectiva, num exercício idêntico em espécie e diferente só apenas em grau daquilo que tradicionalmente entendemos por travestismo. Ora qualquer um tem direito a ter essa concepção, e até certo ponto pode mexer no corpo como entender. Mas não existe o direito de exigir a outros que participem nessas construções pessoais e subjectivas. É assim numa sociedade democrática e liberal e todos devemos estar habituados a isso.
Esta leitura pretende ultrapassar confusões conceptuais fortes prevalecentes no discurso actual, como aquelas envolvendo a separação entre a realidade biológica sexual e a construção social do “género”, as contradições de matriz essencialista quanto a identidades sexuais, a ideia de que existe massa científica sólida sobre este assunto além daquilo que enunciámos, e qualquer tipo de argumento de moralista barato num terreno em que a discussão se deve reger pela lógica e pelos factos. Aceitam-se, é claro, propostas e acertos a este enunciado, mas avisamos desde já que preferimos que os ignorantes, os histéricos e os adeptos de causas sociais da moda de que nada entendem se dediquem, em vez disso, à pesca.
Sugestões de leituras:
https://tvi.iol.pt/noticias/videos/belle-dominique-recorda-travestis-na-decadas-de-70-e-80-e-critica-atuais-tem-palas/5b4e58d60cf282952f032492 https://www.noticiasaominuto.com/pais/1667708/memorias-do-travestismo-portugues-pela-voz-dos-veteranos
https://www.publico.pt/2009/10/14/culturaipsilon/noticia/de-homem-nao-passamos-a-mulher-nao-chegamos-242907
https://www.amazon.com/Dressing-Up-Transvestism-History-Obsession/dp/0671250914.