No princípio era o Lógos, ou o Verbo, como foi traduzido pela Vulgata. É assim que começa o Prólogo do Evangelho de S. João. E esta frase poderia servir de máxima para qualquer exegeta, seja ele teólogo ou crítico literário. Esta linha de orientação aponta para o primado da palavra e não da interpretação. A função do exegeta é procurar descobrir os múltiplos sentidos da palavra e não a usar para fins próprios. A apropriação da palavra é perversa porque a vê como um meio e não como uma verdade a atingir. Este é o erro que muitos críticos cometem, quando pensam que a verdade está naquilo que vão expôr e não no texto que estudam, que criaram a verdade quando, de facto, estão à sua procura, visto que o significado (tão erradamente singular) não se trata de uma laranja, da qual se podem extrair todos os sucos. Por isso Oscar Wilde dizia que Wordsworth encontrava nas pedras do lago os sermões que lá tinha escondido, porque usava os lagos como pretexto para o que queria verdadeiramente escrever. Ainda assim, a ideia de lago que Wordsworth tinha precedia os seus sermões e, por isso, era irrelevante que ele tivesse de visitar o lago para levantar as pedras. O Marco Polo e o Kublai Khan de Italo Calvino sabiam que o problema era teleológico, que pressupunha não só a busca da cidade perfeita, mas a descrição das cidades visitadas e imaginadas, o que implicava uma tradução fiel na sua execução, uma descrição interpretativa e uma discussão.
Esta busca pode ter caminhos tão diferentes quantos sentidos o texto tiver. Não há uma mathesis universalis, uma fórmula mágica que resolva o problema da interpretação, assim como não existe uma fórmula que se possa aplicar a qualquer tipo de problemas matemáticos. À semelhança dos tesouros que os contos de fadas acreditam existir no fim do arco-íris, há vários caminhos que se podem percorrer até lá, mas o tesouro permanece inefável. Esses caminhos são tantas vezes percorridos em conjunto, por tribos, ou comunidades interpretativas, como diria Stanley Fish, quando estas chegam a um consenso acerca do caminho que lhes parece mais acertado. Então escolhem a estrada dos tijolos amarelos ou outra estrada qualquer. Naturalmente que a escolha de um ou outro caminho já faz parte do processo da busca da verdade, caso contrário, cairíamos num relativismo absoluto, mas a mera escolha não é suficiente. As tomadas de decisão que Dorothy ou o bom samaritano fazem quando passam por quem encontram, trazem mudanças no seu caminho e na maneira como chegam ao seu termo. Por isso, o esforço na busca pela verdade não é imediato, mas gradual. No jogo de palavras que alguém fez quando as trocou no seguinte anagrama: “Quid est veritas – Est vir qui adest”, a pergunta permanece sem resposta, pois o homem que estava à frente do interlocutor não respondeu, apresentando-se como Verbo à espera de interpretação.
Na literatura, o conceito de tradição tem aqui um papel fundamental, pois nas escolhas interpretativas é impossível caminhar desprovido de heranças literárias, ou como diria Ricardo Reis, sem indícios de Homero no mais pequeno poema. Por isso, há a possibilidade de diálogo não só entre a comunidade dos vivos, mas sobretudo entre a comunidade dos textos, como propunha Ruy Belo, uma sala de convívio, na qual se cresce em experiência a partir da leitura, do confronto e da discussão. A busca da verdade do texto passará pelo confronto com a imitação de outros, mas também pela busca da sua imitação. Como é possível imitar tal texto ou o que há a imitar? Estas são as perguntas que levam à descrição, à paráfrase e à interpretação. Para que isso aconteça, é necessário tomar consciência da alteridade do texto, ou seja, estabelecer as fronteiras entre o sujeito e o texto, para que nesse confronto se possa entrar no texto sabendo aquilo que pertence ao sujeito e aquilo que pertence ao texto. Conta-se que Eduardo VII tinha no Castelo de Balmoral uma balança que pesava os seus convidados à chegada e à partida das férias de Natal que ali passavam. Da mesma maneira, só medindo aquilo que é nosso ou não é que é possível estabelecer relações de comensurabilidade e, depois de comparar, procurar tornar familiar ou não, próximo ou distante.
É nesse ambiente de discussão que nos apercebemos de que corremos para uma mesma meta, a velocidades diferentes, estamos em sítios diferentes da pista, com um nível de energia diferente. Esta busca por uma verdade única, leva-nos a crer que não tem cada um uma verdade diferente, mas opiniões e interpretações diferentes acerca da verdade, visto que somos diferentes e temos convicções diferentes. É o confronto que nos permite crivar as nossas opiniões em relação às dos outros e fazer escolhas, visto que, muitas vezes, aquilo que não compreendemos nos outros pode ajudar-nos a compreender algo sobre nós próprios, mesmo que não concordemos com eles. Isto há-de obrigar-nos a alterar o nosso discurso e a rever as nossas concepções. Este confronto não tem como objectivo último a vitória de uma opinião particular e o extermínio das restantes, mas a discussão e a procura conjunta pela verdade. Talvez os gregos não estivessem tão errados quando apresentavam o ambiente ambrosial do Olimpo como uma reunião de deuses diferentes com interesses diferentes juntos em simpósio. É que, mesmo dentro do contexto de uma tribo, as descrições e as opiniões serão diferentes, porque as pessoas são diferentes. É impossível que todos pensem da mesma maneira acerca de tudo. Por sua vez, mesmo quando têm uma opinião semelhante acerca de um assunto, será sempre descrito de forma diferente. Por isso não seria razoável pedir justificações particulares a cada membro de um partido quando vota alguma lei.
Uma opinião acertada será, então, o esforço honesto de compreender, descrevendo, argumentando e fazendo sínteses a partir das nossas próprias teses e das de outros e das antíteses alheias, não o de encontrar as conclusões que queremos ou que respondem aos nossos problemas, mas que justificam a verdade com que nos deparamos. Esta justificação procura dar voz àquilo que não responde caso lhe perguntemos o que significa, como um poema, um quadro, uma escultura, uma flor.