Chamamos a atenção para um episódio já costumeiro de “indignação do dia”, frequente entre as turbas irracionais das redes sociais. Neste, um tweet de 2015 de um recém eleito deputado da IL, Mário Amorim Lopes, alegava que a desigualdade salarial entre sexos em parte se explicava com a ocorrência da maternidade. Para quem está informado sobre o assunto, isto não é sequer matéria de polémica, já que o facto de que a maternidade é um dos principais factores da desigualdade salarial entre sexos não está sequer sujeito a discussão, conforme atestado em inúmeras peças jornalísticas e estudos (vd. role of pregnancy in gender pay gap, https://www.pwc.com/gx/en/issues/c-suite-insights/the-leadership-agenda/the-motherhood-penalty-is-widening-the-pay-gap.html, https://www.nytimes.com/2017/05/13/upshot/the-gender-pay-gap-is-largely-because-of-motherhood.html).
A afirmação de Mário Amorim Lopes era meramente o enunciar de um facto. Já sabemos que a reação de pessoas claramente incultas, analfabetas ou de má-fé, que não sabem ler, leva-as a procurar um enunciado prescritivo naquele que é simplesmente uma descrição indesmentível. Mas na conversa inicial, que já tem 10 anos, encontramos um tom ainda mais delirante: a realizadora Raquel Freire brinda o deputado, devido à referida intervenção, com os adjectivos “fascista”, “nazi”, “misógino”, “machista” e a sua ideia como “anticonstitucional”. Esta insigne representante da classe artística portuguesa, notória cineasta com vários prémios amealhados e representação em festivais internacionais, tem aparentemente a capacidade de interpretação antropológica, sociológica e económica de uma adolescente de quinze anos, com vocabulário a condizer. Mesmo que existisse o mínimo de dúvida quanto ao carácter obviamente descritvo da afirmação, convocar tais categorias completamente descabeladas para a arena não corresponde a um estado mental de sanidade, atenção e cogitação mínima. E tal é surpreendente, vindo de uma pessoa da alta cultura.
Outros exemplos deste estado de coisas francamente alucinado foram encontrados recentemente na intempestividade com que a comediante Beatriz Gosta apelidou de fascista o seu colega Rui Sinel de Cordes, ou como o actor João Reis, na altura também marido de outra representante da classe artística, Catarina Furtado, do alto do seu privilégio dissertou sobre a necessidade de termos menos crescimento económico — isto, num país dos mais pobres da europa.
A ideia, também por vezes adiantada, de que é preciso “ser mulher” para perceber as causas da desigualdade salarial entre sexos é uma ideia absurda e de crianças, como se alguém para se curar de uma constipação exigisse que o médico também estivesse constipado. Não se sabe do que está a falar se, até mesmo dez anos depois — dado que a posição da dita não mudou — ainda não percebeu que a maternidade é das principais causas dessa desigualdade, não a única, e que, à falta de políticas que a mitiguem, “é natural” que a globalidade do rendimento da trabalhadora acabe por ser menor. Isto não está sequer sujeito a discussão, todos os estudos o indicam. Para uma resolução correcta dos problemas é essencial começar por um bom diagnóstico, mas Raquel Freire, como tantos infelizes exemplares da classe artística, sempre com “a luta” na boca mas em absoluto ignorantes das matérias que abordam, deviam dedicar-se, nesse campo, mais ao saber técnico e menos ao moralismo inócuo. Os romances de Eça estão cheios de personagens como estes artistas, que são tanto causa como sintoma do atraso do país.
Recapitulemos: a ocorrência da maternidade é das principais causas da desigualdade salarial entre sexos, isto é um facto, não está sujeito a discussão, e se alguém acha que enunciar esse facto é algo “fascista, nazi, misógino, machista”, alguns dos epítetos com que a cineasta brindou Mário Amorim Lopes há uns anos, então devemos dizer que vive num mundo de delírios, de fantasmas, de absoluta alienação da realidade, um mundo que nada tem a ver com a maneira como abordamos, e como se devem abordar, os problemas. São mais que conhecidos os exemplos de quando a classe artística se mete nos “activismos” sobre matérias de que nada entendem e que ouviram falar no bairro alto e no Lux. São maus exemplos.
Este é, então, o mundo dos artistas, maioritariamente subsidiados, e das suas ideias sociais e políticas. É um mundo que não se vê, não se dá com, e despreza o outro: o dos economistas, dos advogados, dos gestores. Um é de esquerda e julga-se porta voz do bem e da verdade; o outro é de direita e julga-se mero intérprete da literalidade do mundo. Estes dois mundos não falam um com o outro e, quando falam, o desastre ocorre: ninguém se entende, cada um julga que o outro é “fascista” ou “comuna”, insultam-se, desprezam-se e, finda a contenda, retornam cada um à respectiva bolha.
É, assim, um país, ou um modo de vida e forma de cultura, não muito diferente do pátio de uma escola primária: grupos enturmam-se por afinidades mínimas, odeiam os outros que não as possuem, sem os conhecer, e vivem toda uma vida adulta plantados nesta cola social feita de preguiça mental, de tribalismo primário e de surdez cognitiva. Certo é que as redes sociais são particular chamariz para este tipo de gente, assim como a política, o jornalismo, as profissões em que se “aparece em público” — próprias para narcisistas.
Os conselhos com que terminamos esta breve apresentação são os seguintes: não confiem em advogados, economistas e gestores para falar em público; não confiem em membros da classe artística ou das burguesias intelectuais portuguesas para falar do que quer que seja; e não frequentem redes sociais sob pretexto ou razão alguma.