No passado setembro celebrou-se o vigésimo aniversário do lançamento de um dos títulos mais importantes na história dos videojogos. Metal Gear Solid não se limitou a anunciar o início de uma nova era no mundo das consolas, fornecendo um contributo fundamental para o conceito do jogo-blockbuster com altos valores de produção – com uma jogabilidade simples, intuitiva e altamente gratificante, um elenco de personagens memoráveis e uma direção artística por parte de Hideo Kojima que não demorou muito a adquirir estatuto de lendária, este jogo proporciona, ainda hoje, tal como em 1998, uma das experiências mais ricas que a indústria do entretenimento virtual tem para oferecer.
De todos os aspetos que tornam este jogo um caso especial, um dos mais importantes é, seguramente, a preocupação que ele demonstra em potenciar ao máximo a imersão do jogador no mundo de Solid Snake e Shadow Moses, recorrendo a técnicas que exploram os contornos e limites da quarta parede de um modo altamente original e digno de nota. Neste âmbito, não podemos deixar de aproveitar a ocasião para lançar um olhar retrospectivo à evolução que a tecnologia relativa aos videojogos sofreu desde o início do novo milénio, volatilizando cada vez mais as barreiras entre jogador e personagem virtual. Para além dos avanços em termos de gráficos e memória, que nos permitem hoje mergulhar em mundos virtuais fotorrealistas de vastíssima extensão e com um nível de detalhe superlativo (o segundo Red Dead Redemption, lançado recentemente, é neste momento o exemplo que mais salta à vista), as inovações dos últimos anos em óculos de realidade virtual e métodos de captura de som e movimento em tempo real tornaram possíveis formas de imersão que, até há poucos anos atrás, não passavam de um sonho vago. Refira-se, a título de exemplo, o caso de Alien: Isolation (2014), que possui um sistema de deteção de áudio graças ao qual o monstro titular reage ao som emitido pelo próprio jogador (o que, como vários youtubers atestam em let’s play’s do jogo, não deixa de provocar ainda assim algumas situações caricatas, tais como o Alien descobrir Amanda Ripley porque ouviu o som do gato a miar no quarto ao lado, ou o da mãe a chamar para jantar). Contudo, tudo isto serve também para realçar o brilhantismo da equipa de Kojima, que, aproveitando com um engenho visionário os recursos limitados da Playstation original, procurou ainda assim elevar a identificação do jogador com o herói virtual a um ponto nunca antes visto, e desde então poucas vezes repetido.
Alguns dos truques improvisados por Kojima e companhia são já matéria de mito. O caso mais famoso é, claro, o confronto entre Solid Snake e Psycho Mantis, o vilão com super-poderes psíquicos que é capaz de ler a mente não apenas do herói, mas também da própria pessoa que o está a controlar, descobrindo os outros jogos que ela se encontra a jogar na altura (efeito conseguido através da leitura do conteúdo do cartão de memória inserido na consola), e que, durante o combate, antecipa todos os movimentos do jogador e apenas pode ser derrotado se a entrada do comando for inserida na segunda ranhura da consola.
Ainda assim, é numa fase posterior do jogo que o recurso a formas pouco ou nada ortodoxas de quebra da quarta parede, enquanto modo de fortificar a identificação entre o herói virtual e o jogador, atinge o seu expoente máximo. A certa altura, Snake é capturado pelos maus da fita e submetido a sessões repetidas de eletrocussão, que se processam sob a forma de um mini-jogo: enquanto Snake está a ser eletrocutado, o jogador tem de pressionar repetidamente um botão para atrasar o esgotamento da barra de vida da personagem. O exercício vai ficando progressivamente mais difícil, e é natural que, a certa altura, o jogador comece a sentir dores musculares no braço devido ao esforço. Este fenómeno, pela ilusão que cria de que o jogador está também, em última instância, a ser torturado, é já um caso interessante, mas por si só está longe de ser algo genuinamente original. O pormenor que eleva este episódio a um patamar superior ocorre quando Snake, depois de já ter sido submetido a várias sessões de tortura, tem uma conversa via codec com a sua equipa enquanto se encontra na cela a aguardar a próxima sessão. Após uma personagem lhe perguntar se ele está bem, ele responde que o braço lhe dói, e que precisa de algo para a dor. E é aqui que se dá o golpe de génio: Naomi, a sua assistente, diz- lhe para colocar o «comando» junto ao sítio dorido, e, nesse momento, o jogo ativa a função de vibração do comando da Playstation. Até a tecnologia atingir o ponto em que tornará possíveis experiências sensoriais em realidade virtual como as imaginadas em Minority Report ou Brave New World, será difícil encontrar um caso que potencie tanto o nível de imersão como o desta meta-massagem terapêutica.
Episódios como os da câmara de tortura ou do combate contra Psycho Mantis constituem, assim, casos peculiares em que a quebra da quarta parede, ao destruir a ilusão, acaba por reforçar o efeito em função do qual ela existe: o investimento do jogador nas aventuras do protagonista virtual. Neste sentido, não deixa de ser curioso verificar que, na sequela (Metal Gear Solid 2: Sons of Liberty, 2001), Kojima tenha optado por não continuar a explorar novas formas de imersão e, pelo contrário, tenha procurado inverter por completo este princípio, direcionando os seus esforços no sentido de alienar o jogador do conteúdo do jogo através de golpes como o progressivo desvelar do caráter virtual do próprio enredo, as investidas via codec da inteligência artificial em controlo dos Patriots contra o jogador, ordenando-lhe que desligue a consola, e, claro, a maior rasteira da história dos videojogos, que nos colocou nos pés de Raiden a acompanhar Solid Snake de uma perspetiva exterior.
Em todo o caso, esta capacidade de brincar com as expectativas do jogador e elevar a sua experiência muito além da do simples «jogo enquanto passatempo» é apenas um dos muitos motivos que fazem de Metal Gear Solid um marco incontornável na história dos videojogos, contribuindo para a construção de um legado que, passados vinte anos, a Konami não será capaz de tingir independentemente da quantidade de Pachinkos e spin-offs de zombies que produza a partir do nome Metal Gear.