25 Anos de Wolfheart: Uma Revisita

Lançado em abril de 1995, o álbum de estreia dos portugueses Moonspell é, ainda hoje, considerado um momento de viragem na história da música nacional. Com uma discografia composta por onze álbuns, o mais recente lançamento, Hermitage, é o pretexto perfeito para uma viagem no tempo até aos momentos primordiais de uma banda que tanto definiu o black gothic metal lusitano. 

Consideremos o contexto histórico do álbum, que apenas a meio dos anos 90 encontrou reunidas as condições para se fazer ouvir. Há alguns anos se fazia sentir a onda crescente do black metal pela Europa, com nomes como Bathory, a eterna inspiração tanto de Moonspell como de projetos portugueses posteriores. Se, quase trinta anos depois, ainda se nota a dificuldade de os projetos de underground crescerem em Portugal (por várias razões) imagine-se nos anos 90, em que muitos pioneiros dos novos subgéneros nunca tiveram a sua música tocada além fronteiras. Apesar das dificuldades propostas pela sociedade no momento, a gradual aceitação do álbum pela comunidade apreciadora de metal conduziu à sua internacionalização, o que garantiu os recursos necessários, tanto a um nível monetário como emocional, para o lançamento do segundo álbum, Irreligious.

Muitas vezes, ao revisitar álbuns com várias décadas, torna-se impossível  ignorar as marcas da passagem do tempo, uma vez que a qualidade dos meios de produção assim o ditou, o que atribui à música um determinado rótulo temporal. Ao contrário de outras artes, como o cinema, em que a ausência de cores e som valoriza a criatividade e esforço da peça feita em décadas com poucos recursos, a qualidade da edição musical é um fator determinante para a experiência. Em Wolfheart, por outro lado, qualquer ouvinte descontextualizado terá dificuldade em situar a obra no tempo, uma vez que o seu contexto de gravação, pela Century Media Records (a casa de grandes nomes como Tiamat e Samael), não a datou. 

O tema que reina esta odisseia lunar é, como se verá para sempre nas obras da banda, a imagem do lobo, o símbolo por excelência de Moonspell, que abraçou o conceito da alcateia unida, num mundo que tão pouco aceitava as novas formas de fazer música. 

A obsessão por lendas antigas e mitologia (principalmente em «Trebaruna» e «Vampiria») é observável em Wolfheart de uma forma que não se volta a repetir, uma vez que, em obras posteriores, o foco temático  altera-se e transforma-se num palco para personagens de clássicos da literatura, como Mephisto, de Fausto, mas também reflete marcantes fenómenos históricos que definiram o rumo da humanidade, como o terramoto de Lisboa (que inspirou o álbum 1755) e o atual cenário pandémico.

Relativamente ao instrumental, o primeiro aspeto que se destaca em Wolfheart é a textura musical, fruto da não resignação aos sons e instrumentos convencionais, e da sobreposição desses mesmos instrumentos. Se, por um lado, os riffs de guitarra e a rapidez do instrumento, tal como a agressividade vocal, constituem os elementos determinantes para a  sua caracterização enquanto black metal, o papel das teclas (que ainda hoje é crucial no processo criativo de Moonspell) confere a inovação anteriormente mencionada. A tendência crescente de inclusão de elementos góticos em instrumentais pesados, característico de bandas anteriores como Paradise Lost ou Type O Negative, é também um fenómeno observável no primeiro álbum de Moonspell, considerados pioneiros portugueses da harmoniosa fusão de segmentos de black e gothic metal

As transições atmosféricas entre cada música atuam como separadores espirituais, de modo a inserir o ouvinte no ambiente criado por cada faixa. Seria, neste preciso momento, um crime não destacar o segmento onírico de dois minutos no final da segunda música, «Love Crimes». A faixa que a segue, «Of Dream and Drama (Midnight Ride)», é marcada pela bateria (Mike), que estabelece o tempo e, simultaneamente, se assemelha ao bater do coração (um coração universal, mas indivisível, pelas palavras do vocalista). É esse ritmo muscular e cardíaco que atua como pano de fundo, tanto para o duelo das guitarras de Mantus e Tann, como para o triste conto da figura feminina que se deixa seduzir por ideais suicidas, numa abordagem quase romântica da morte (mais uma vez, a influência do gótico é inegável). 

Foram já mencionados alguns motivos para que a lupina sonoridade da banda se traduzisse numa alcateia internacional, no entanto, para além da transgressão das fronteiras dos subgéneros dentro do metal, são também incorporadas melodias medievais, por exemplo, nas influências folclóricas em «Lua D’Inverno». Puramente instrumental,  «Lua D’Inverno» é o prelúdio que introduz as duas faixas seguintes: as místicas figuras de natureza oposta. «Trebaruna», o polo positivo (com uma introdução de baixo que se perpetua por toda a extensão da música), é a perfeita interrupção da atmosfera de desespero e melancolia, para um momento em que, rendidos, dançamos em conjunto e somos intoxicados pela «melodia mais doce da nossa terra» , por sermos o “eterno fiel trovador” da deusa guerreira. 

Após a falsa sensação de liberdade, o ouvinte é atraído pelo diabólico apelo de «Vampiria» (uma verdadeira ode a todas as lendas sanguinárias), amada e temida, denunciada pela entoação aterrorizante: «you’re a beast, evil one». O papel de Fernando Ribeiro, tanto de um ponto de vista lírico, como vocal (na transição entre os tons agudos e o growl agressivo) é mais que óbvio, no entanto, é de destacar, nesta faixa, a adaptação da sua articulação para uma pronúncia que mais se assemelha aos monólogos de Bela Lugosi no clássico Dracula, por exemplo.

Em «An Erotic Alchemy», uma favorita pessoal, somos presenteados com um definido solo de baixo, apesar de o instrumento ser o ponto alto de toda a música, ao acompanhar a reflexão do vocalista, que calmamente cita Marquês de Sade «extreme in everything, with a dissolute imagination of the like which has never been seen, atheistic to the point of fanaticism, there you have me in a nutshell, and kill me again or take me as I am,
for I shall not change.»

A oitava e última música do álbum, «Alma Mater», é, irrefutavelmente, a mais popular da banda, é referência mesmo para quem não aprecia o estilo, e simboliza também a reta final dos concertos ao vivo, para sempre tocada antes de «Full Moon Madness». É, também, uma súplica à valorização do que é nosso e merece ser reconhecido. Não deverá ser vista como uma ideia de hegemonia, mas um pedido de igualdade e reconhecimento da riqueza da língua portuguesa, que era, infelizmente, falada por uma nação cujos gostos não iam de encontro ao heavy metal. Deste modo, «Alma Mater», facilmente reconhecível pelo riff de guitarra introdutório, será sempre o hino de uma banda que conseguiu quebrar com a barreira linguística e passar a sua mensagem porque, de uma forma ou de outra, todos encontraram na sua música um sentido de identificação.

Mesmo que do alinhamento de Wolfheart apenas reste, atualmente, Fernando Ribeiro e Pedro Paixão, a determinação de todos os membros da alcateia traduziu-se na impossibilidade de silenciamento dos seus uivos.

A passagem do tempo é implacável: seria insustentável para a mente criativa seguir o mesmo processo de composição ao longo de três décadas, e por isso mesmo deve considerar-se cada álbum individualmente. Wolfheart é a concretização musical de uma juventude fascinada pela dissonância do black metal e a morbidez do gótico, e apesar do inglês em desenvolvimento e a mudança de elementos na banda, continua a deixar os fãs hipnotizados pelo feitiço da lua.