Edição: Junho 2023

A nossa edição deste mês: oito artigos inéditos, como cozinhar racismo, coloquialismos equivocados, transgénero como travestismo, a idade do consentimento, “why evolution is true”, progressismo/nacionalismo, cinema distópico e Peele.

Antes, uma breve palavra editorial. A nossa actividade pretende em parte, como é declarado, estabelecer uma ponte entre o mundo civil e as universidades. Isso implica que tanto queremos que o mundo civil esteja atento ao que se faz e sempre se fez nas universidades — não tanto em relação às correntes de pensamento ou estados-da-arte de determinadas matérias, mas sim ao espírito que a empreitada crítica universitária implica — mas também que as universidades estejam atentas ao que se passa no mundo civil e saibam informá-lo de perspectivas mais aprofundadas, mais demoradas e mais independentes sobre assuntos do momento. É por isso que, de modo o mais democrático e igualitário possível, sem deixar de ser elitista conforme a própria definição da actividade universitária tem necessariamente de ser, tentamos acompanhar as coisas de que se vai falando no discurso público, na comunicação social em geral e nas redes sociais. É esse exercício que vamos continuar a fazer, misturando conteúdos que nascem na academia e que são apresentados ao público com conteúdos que nascem no público e são sujeitos ao crivo crítico sério da academia. Agradecemos a todos os que nos acompanham pelo apreço que regularmente demonstram.

Primeiramente, um excelente ensaio de Henrique Brazão sobre videoclipes musicais, cinema e literatura decorrentes dos estímulos heterogéneos da experiência humana da pós-modernidade, produzidos ou distribuídos nos meses após os atentados terrorista de 11 de setembro de 2001. De seguida, uma crónica de Ricardo Fortunato sobre polémicas recentes e falácias em curso na academia e no discurso público: como pontuais e minoritárias objecções a monumentos que celebrem expansões culturais e militares europeias se alicerçam numa espécie de superioridade cultural ocidental encapotada.

Uma outra crónica de Fortunato sobre fenómenos de cepticismo quanto à comemoração de identidades sexuais minoritárias associada ao presente mês. Depois, Charles Rodrigues e Paula Carvalho de Figueiredo falam-nos sobre a crítica de Robert Nozick à teoria da justiça de John Rawls.

Primeiro, de Nina Maria da Conceição, considerações teóricas literário-filosóficas sobre a poética de Gama no poema “quem sou eu?” à luz de Heidegger, Barthes e Hauser. Depois, um ensaio de Joana Palha sobre um romance de formação de Ondjaki, onde Ndalu vive uma série de peripécias no dia-a-dia.

Nova crónica de Rui Caria sobre exercício físico e superação da dor: a musculação e a natação como as provas mais emblemáticas para a renovação do corpo e da disposição anímica humana. E nova critica/pequeno ensaio de Marta Silva de Almeida onde se procura analisar o movimento cinematográfico em Yi-Yi, de Edward Yang.

As Mil e Uma Maneiras de Cozinhar RACISMO

No mundo ocidental, actualmente, quando se fala de racismo o discurso é disposto com uma forma e conteúdo bastante simplistas e incompletos. Em geral situa- se o fenómeno como maioritariamente da parte das sociedades brancas contra outras etnias que paternalisticamente por vezes se designam “de cor”, ignorando por completo que isto nada tem de extraordinário na história e na dinâmica das culturas. O racismo é um fenómeno universal e as sociedades ocidentais não são, seguramente, os sítios do mundo onde exemplos do mesmo mais ocorrem, apesar de tratadas como tal — e isso pode corresponder a um fenómeno freudiano de auto-flagelação que não interessa aqui abordar. Há assim outras expressões desse fenómeno que gostaríamos de ver abordadas e que raramente vemos: racismo entre etnias em África (e entre africanos na Europa); racismo na China contra ocidentais; estudos que diferenciem racismo quanto a cor da pele de racismo quanto a traços culturais (maneira de vestir, sotaque etc.); várias perspectivas sobre o que é racismo; que todas as pessoas são inerentemente racistas; que todas as culturas são inerentemente racistas e quanto mais tradicional a cultura mais racista é; que não existe na verdade racismo em sentido estrito de discriminação por cor de pele mas sim por uma série cumulativa de fatores; que na verdade o racismo em nada se distingue substancialmente de outros tipos de discriminação, ou seja, que em última análise qualquer pessoa é de uma raça diferente de outra; que o racismo é geneticamente benéfico; que o racismo não é geneticamente benéfico; etc. Isto porque em geral quando se fala de racismo é sempre a mesma conversa: é sobre o negro no ocidente, e racismo não é só isso. Em suma: o racismo como fenómeno universal que merece ser abordado de perspectivas diversas e informadas, e não apenas com essa conversa excepcionalmente paternalista e condescendente da vitimização das minorias no ocidente, que aliás em muito contribui para a sua menorização, o que não apreciamos por razões humanas e por razões críticas. Aceitam-se exemplos e perspectivas adicionais.

Agora, alguns exemplos e desenvolvimento:

Fomos assim forçados, novamente por circunstâncias recentes, devido à paisagem histriónica com que na opinião pública se discutem conceitos complexos, de voltar ao tema do “racismo”. As caricaturas de um primeiro-ministro português que para alguns é branco ou coisa parecida e para outros é quase indiano levaram o próprio, e a uma série de acólitos ou activistas das olimpíadas da discriminação, a acusar as mesmas de racismo por razões que ninguém percebeu. Vamos então tentar mais uma vez recapitular e ensinar aos nativos cá do burgo o que é racismo e o que envolve ou não envolve. (1) “Racismo” é um fenómeno universal que se pode mais extensivamente definir como “aversão ao diferente”, e que pode conhecer formas desde rivalidades locais/culturais entre Guimarães e Braga até ao grande binómio do preto/branco em termos de cor da pele. Ou seja, um bracarense não gostar de vimaranenses e um branco não gostar de pretos é um fenómeno da mesma espécie, apesar de poder ter consequências diferentes. É útil categoricamente ver o problema desta maneira e aconselhamos todos a começar a fazê-lo. (2) Nesta medida, é óbvio que podemos chamar a tudo de “racista”: desconfiar do vizinho é “racista”, achar os franceses chauvinistas é “racista”, achar os brasileiros muito barulhentos é “racista” — assunções que têm um fundo de verdade. Porém, obviamente isto leva a uma dissolução do conceito em que acaba por perder todo o sentido. (3) Numa definição mais estrita, poderemos apenas apontar “racismo” — não só ao nível da lei como coloquialmente — quando existe um viés inconsciente ou consciente que resulta em assunções colectivas e discriminações individuais concretas, seja através de actos ou de injúria verbal. (4) Estas duas práticas são penalizáveis na lei portuguesa, cada uma por sua via, embora seja sempre inteligente assumir que o choque destes princípios com o da liberdade de acção e de expressão não tenha necessariamente resolução fácil. (5) Um novo quadro legislativo foi introduzido em 2017 e contém alguma alíneas muito problemáticas, nomeadamente uma que impõe que não seja necessário provar intento discriminatório perante acusação de actos ou injúrias, invertendo o ónus da prova. 6) A jornalista Tânia Laranjo foi multada, em 2022, precisamente por “prática discriminatória em razão da cor da pele”, pela publicação da imagem no canto superior direito acima. (7) Em última análise, estas contradições acabam por ter origem no artigo 13º da constituição, que estabelece protecção para discriminação por algumas características da pessoa mas não, naturalmente, por outras. (8) É por isso que a semelhança cromática das pessoas retratadas nessa imagem e o trocadilho com “Black Friday” pode merecer tal condenação enormemente arbitrária, mas a imagem abaixo, onde figuram os músicos populares Quim Barreiros e Leonel Nunes, qualquer trocadilho envolvendo semelhanças a nível de pilosidade facial não obteria jamais uma condenação da comissão para a igualdade. As restantes ilustrações que aqui propomos elencam exercícios básicos de caricatura, de encontro de semelhanças entre pontos distantes, de exagero de traços distintivos, etc, que configuram aquilo que nalguns casos se pode chamar erradamente de “racismo”. Este tema é vergonhosamente instrumentalizado por académicos, por “activistas” especializados nas olimpíadas da opressão, e até mesmo por políticos. A maior parte das pessoas sabe, felizmente, separar o trigo do joio. Mas a poluição visual, sonora e principalmente conceptual em torno do assunto é aberrante.

Por fim, trouxemos a lembrança feliz de uma frase de protesto cívico bastante poderosa, apesar de, ou talvez por, tratar-se de um truísmo, usada com sucesso em particular nos movimentos afro-americanos nos Estados Unidos, e curiosamente de um conteúdo quase oposto a frases de protesto contemporâneas.

Declarar sucintamente “eu sou um homem“ destina-se precisamente a ressalvar que numa democracia liberal todos os indivíduos são exatamente iguais à luz da lei, e que não existem nem indivíduos e muito menos grupos com privilégios especiais, seja lá por que motivo for — mesmo que tal motivo tenha intenções compensatórias por outra qualquer injustiça. “Eu sou um homem“, curiosamente, é em conteúdo e em essência muito mais semelhante ao lema contemporâneo algo vilificado de “all lives matter”, e menos semelhante ao original “black lives matter”, slogan sectário e profundamente baseado em eventos e quadros demográficos altamente manipulados pelos média.

Expressões Coloquiais… Equivocadas

Inaugurámos uma rubrica, que esperamos que seja regular, dedicada a algumas expressões de uso corrente no léxico público erudito ou semi-erudito relacionadas com cultura, política e história das ideias em geral, que foram, em determinado momento do tempo, cunhadas conforme um contexto muito específico ou uma proposição discutível mas, entretanto, calcificaram enquanto meros chavões que carregam significados extintos, anacrónicos ou sem lógica à partida. Alguns exemplos: (1) capitalismo tardio (o capitalismo vai acabar? quando?), (2) reaccionário (não vivemos num período revolucionário, logo a expressão é vazia de sentido), (3) capitalismo (expressão da teoria marxista e da teoria anarquista que pressupõe uma série de preceitos não partilhados por muitos que a usam), (4) fascismo (existem correntes na ciência política que defendem o uso exclusivo da mesma para o regime italiano, outros que o admitem para outros regimes de nacionalismo autoritário, e, fora disso, uma turba de leigos que o usam como mero indicador da sua ignorância em relação a tudo), (5) ego (advindo dos sistemas mentais postulados por Sigmund Freud, é usado erradamente como sinónimo de inclinações narcisistas) (6) a diferença entre propriedade pessoal e privada (inexistente fora dessa mesma teoria do marxismo, não tendo existência conceptual autónoma), (7) paradigma (não usado necessariamente de modo errado mas fazendo parte da descrição de Thomas Kuhn dos pressupostos dos sistemas científicos) (8) democracia (não existe uma “democracia”: existem sistemas democráticos, cada um deles imperfeito à sua maneira, e a palavra pode perfeitamente querer dizer o seu contrário; a “ditadura da maioria”, etc.) e, por último, (9) negacionista, uma palavra sobre a qual já dissemos em tempo o que tínhamos a dizer e que, felizmente, estará provavelmente em vias de desaparecer e ir parar ao caixote de lixo da história pertencente a períodos de histeria. Saudações lexicográficas fraternais e evitem dizer disparates!

Transgénero como Travestismo e Drag Queen Story Hour

Abordámos, num início polémico de um mês demarcado por alguns como de festividade de uma série de práticas e identidades sexuais minoritárias — numa unidade cada vez mais impossível e contraditória de várias “comunidades” muitas vezes completamente diferentes e até antagónicas, como escreveu Ricardo Fortunato — a história do conceito do travestismo, o seu papel hoje, e a realidade biológica por detrás. Vamos adiantar uma visão com vista à simplificação conceptual daquilo que hoje se chama, através de um termo, “trangénero”, abreviadamente “trans”, que abrange várias coisas diferentes (desde disforia de género, rejeição do modelo binário sexual ou cross-dressing), tendente claramente à inclusão desse na tradição e história do travestismo, começando por uma breve descrição fundada na biologia. Vamos então por partes: a identidade sexual das pessoas é codificada desde o momento da concepção em todas as células do seu corpo através de uma coisa que se chama “cromossomas“: a partir daí forma-se a identidade fenotípica, através de diferentes sistemas hormonais e genitais em particular, mas também a nível de diferentes formas e disposições prototípicas do esqueleto, dos músculos, ou até mesmo da neurologia. Salvo alguns acidentes muitíssimo raros em que problemas na passagem do código genético para o desenvolvimento fenotípico resultam em situações ambíguas, isto funciona deste modo com toda a gente. Eis então o núcleo central deste enunciado: qualquer pessoa que passe por terapias hormonais ou intervenções cirúrgicas não está a fazer mais do que a aplicação de uma maquilhagem complexa, além de destrutiva, para distorcer/esconder essa realidade biológica em prol de uma concepção pessoal subjectiva, num exercício idêntico em espécie e diferente só apenas em grau daquilo que tradicionalmente entendemos por travestismo. Ora qualquer um tem direito a ter essa concepção, e até certo ponto pode mexer no corpo como entender. Mas não existe o direito de exigir a outros que participem nessas construções pessoais e subjectivas. É assim numa sociedade democrática e liberal e todos devemos estar habituados a isso. Esta leitura pretende ultrapassar confusões conceptuais fortes prevalecentes no discurso actual, como aquelas envolvendo a separação entre a realidade biológica sexual e a construção social do “género”, as contradições de matriz essencialista quanto a identidades sexuais, a ideia de que existe massa científica sólida sobre este assunto além daquilo que enunciámos, e qualquer tipo de argumento moralista barato num terreno em que a discussão se deve reger pela lógica e pelos factos. Aceitam-se, é claro, propostas e acertos a este enunciado, mas avisamos desde já que preferimos que os ignorantes, os histéricos e os adeptos de causas sociais da moda de que nada entendem se dediquem, em vez disso, à pesca. Na imagem, uma pintura de Ana Balegas do travesti português Domingos Castro, de seu nome artístico Belle Dominique. A citação acima é de Fernando Santos (nome artístico: Deborah), profissional travesti. Sugestões de leituras: memórias do travestismo português e história de uma obsessão.

Adicionalmente, tem surgido na comunicação social e na propaganda de alguns grupos sociais a tímida importação de uma bizarra ideia e da correspondente polémica ou pseudo-polémica para os territórios de Portugal. Trata-se, simplesmente, da possibilidade de travestis, especificamente drag-queens, lerem histórias a crianças. Apesar de alicerçada em mais um capítulo recente de guerras culturais norte-americanas de pouco interesse e de pouca profundidade, em geral travadas com micro-causas profundamente sectárias e temporalmente específicas, a questão envolve problemáticas mais profundas e que merecem reflexão: nomeadamente (1) se o transformismo é um acto eminentemente sexual e (2) se as crianças estão mentalmente equipadas para o interpretar — sendo a resposta a esta pergunta determinante para perceber se a proposta é adequada ou não. Convém primeiro notar que o transformismo como acto e disposição específicos não é idêntico ao que sucede nas celebrações do carnaval: se nestas segundas a máscara é assumidamente excepcional e não envolve necessariamente questões de género, no primeiro a inversão — pois de uma inversão se trata — é notoriamente hiperbólica e parte de uma sub-cultura ligada a expressões sexuais — desde papéis religiosos até à prostituição. Não é porém meramente pela tradição que podemos aferir a essência do acto: é saber se um homem vestir-se de mulher não enquanto ritual específico — teatro, etc. — mas como exercício de personificação total e veiculador de uma identidade específica — uma identidade de género e não só — é uma prática eminentemente sexual ou não, e se é uma sub-cultura que as crianças são capazes de interpretar correctamente. De modo análogo, poderá equacionar-se se as sub-culturas sadomasoquistas (anões vestidos de cabedal) e das strippers (danças em varões, etc.) são do mesmo modo adequadas para crianças. De qualquer forma, uma coisa é certa à partida para a maioria das pessoas: estas são ideias muitíssimo bizarras e poderão representar reacções violentas e injustas contra pessoas de identidades e práticas sexuais minoritárias, como de facto já está a acontecer. Fica lançado o tema para debate!

A Idade do Consentimento

A propósito de efabulações sobre a biografia de um estadista italiano recentemente falecido, queremos lembrar que, ao contrário do que grande parte das pessoas aparentemente pensa, na Europa a idade do consentimento sexual situa-se entre os 14 e os 16 anos. Isto quer dizer que não existe qualquer crime por si só na interação entre um adulto de qualquer idade que seja e um adolescente com essas características, aparte especificidades na lei de cada país. A questão moral é outra e merece seguramente um campo diferente de discussão, já que existem pessoas cuja ortodoxia as impede de conceber uma pessoa de 16 anos como autónoma e adulta para essa medida, e outras pessoas, aliás a maioria dos psicólogos, entendem que as leis atuais são adequadas aos estágios do desenvolvimento emocional e fisiológico dos adolescentes. Existem ainda outros problemas, como: a idade dos adultos envolvidos nessas relações, se se tratam de homens ou de mulheres, etc.; mas tudo isto está sujeito a discussão. No caso do estadista não existiu condenação por “pedofilia“ no sentido estrito mas por solicitação de comércio sexual com menor de 18, já que a lei italiana impõe essa diferença, e de igual modo não existiu nenhum abuso sexual documentado. Acresce que esta condenação foi mais tarde anulada por motivos duvidosos, mas seja como for o comportamento não foi de “pedofilia“ no sentido clássico e, grosso modo, a partir dos 16 anos não existe qualquer “pedofilia“ a nível da letra da lei mas pode existir subjetivamente considerada. É importante por último notar que estas confusões contemporâneas derivam provavelmente de uma crescente infantilização da sociedade, chegando ao ponto em que se considera até que maiores de idade em todos os sentidos como de 18 ou de 21 anos estão de algum modo necessariamente a ser vítimas de comportamentos “predatórios“, de “abuso“ ou de “assédio“ por interagirem de forma erótica ou amorosa com pessoas mais velhas— situação aliás recorrente nas universidades ocidentais entre professores, investigadores e alunos de diferentes faixas etárias—, o que representa, quer se queira quer não, uma regressão enorme a nível de liberalismo dos costumes. Pela nossa parte, temos um interesse profissional e vocacional no tema da crescente infantilização da sociedade, porque como é evidente não é compatível nem é funcional que as pessoas cheguem às universidades, por volta dos 18 anos, num estado completamente imaturo. As universidades, e a vida em geral, são lugares para adultos e não para crianças presas em corpos de adultos. Esta é uma discussão sem dúvida interessante.

WHY EVOLUTION IS TRUE

Sugerimos uma obra sobre duas vertentes de objecção à generalisticamente muito aceite de forma quase universal teoria da evolução darwiniana. A primeira dessas objecções vem do ramo das religiões, nomeadamente as abraãmicas, que tendem para uma leitura mais literal dos mitos criacionistas presentes nos textos sagrados. A segunda dessas objecções vem do ramo Iluminista e pós-Iluminista dos projectos de formatação da natureza humana e social das pessoas, nomeadamente o marxismo, as ciências sociais e a crítica cultural. Ambas pretendem que um quadro normativo moral se sobreponha às evidências empíricas com que a teoria darwinista se constrói, tanto no caso em que a hermenêutica exegética é posta de parte em favor de uma interpretação literal das escrituras, como no caso em que o estudo da psicologia evolucionista e a noção de que traços psicológicos são resultantes também da fisiologia são descartados em favor de um modelo do ser humano como tábua rasa totalmente moldável pela sociedade e correspondente planeamento central da mesma. A obra de Jerry Coyne, biólogo americano, aborda estes e outros temas. Consultem aqui e ouçam uma conversa com o autor aqui.

Partidos de Ontem e de Hoje / Progressismo / Nacionalismo

Não temos por hábito dedicarmos muita atenção a questões político-partidárias do dia-a-dia, mas pela falta de vermos este óbvio paralelo mais abordado na comunicação social comum, vimos aqui levantá-lo. A ascensão muito súbita em Portugal da segunda força partidária representada à direita na primeira imagem acima encontra óbvias semelhanças com o fenómeno parecido ocorrido em meados dos anos oitenta em relação ao partido político representado à esquerda daquela. Est obteve, subitamente, devido a uma conjuntura de fatores, (entre os quais a ressaca de uma política de austeridade aplicada por partidos do bloco central e a popularidade da figura de um ex-presidente da república, Ramalho Eanes), o total de cerca de 20% dos votos na eleição legislativa de 1985, tornando-se o terceiro partido. Devido a outros vários fatores (falta de estruturas e de experiência de gestão política, fazer cair um governo ao invés de participar no arco, etc.), desceu nas eleições seguintes para 5% e mais tarde 0%. O paralelo pode ser imediatamente convidativo para quem queira ver a segunda força política referida padecer do mesmo destino, e não faltam candidatos a isso. Porém, tanto existem semelhanças como existem diferenças quer entre a coesão, a estrutura, o projeto e a ideologia das duas forças como também entre o contexto político de então e o de agora. Deixamos assim para discussão os possíveis pontos de encontro e desencontro entre estas duas meteóricas e, em dado momento do tempo, imensamente relevantes forças partidárias na política do país. Ainda a propósito, uma nota: as correntes política, social, religiosa ou filosoficamente mais populares e também mais susceptíveis ao fanatismo leigo de cada tempo merecem o devido reparo da sensatez e da racionalidade que o contexto histórico pode dar. Actualmente o “nacionalismo” e o “conservadorismo” estão em baixo, não fazem parte da corrente dominante da cultura, embora ensaiem uns ainda tímidos regressos; por outro lado, o activismo fanaticamente igualitário, funcional e formalmente cego, está na moda e constitui o núcleo central do ethos dominante. As manifestações da complexidade e da variedade da natureza humana encontram em cada uma destas expressões culturais/filosóficas/políticas as contradições do costume. Se nas duas primeiras as hierarquias sociais são entendidas como naturais, e rejeitam grandes teorias de transformação social do comportamento humano, acabam também por ser construções historicamente determinadas, enquanto que na última a tentativa alucinada de acabar com hierarquias resulta ou nas sociedades mais desiguais do mundo, como nas experiências comunistas, ou na multiplicação de sub-grupos sociais com estatutos e direitos especiais, como nas sociedades ocidentais de hoje. Mas é importante também lembrar como esta descrição e o lugar que hoje têm na cultura deriva em grande parte do quadro operativo, e não apenas moral, de quem venceu e quem perdeu a 2ª guerra mundial. Dela emergiram dois regimes vitoriosos, o capitalismo das democracias liberais parlamentares representativas, e o comunismo centralizado totalitário dominado pela então União Soviética. Muito do que julgamos que representa uma verdade moral neste campo da cultura na realidade representa apenas o resultado de um conflito militar, o desejo dos sobreviventes alinharem com os vencidos e de pisarem os derrotados. Poucos pensadores livres escapam a esta regra. Na imagem, Marine le Pen, política nacionalista francesa; Adam Smith, teórico económico pai da teoria capitalista, e Joseph Estaline, czar comunista da Rússia entre 1930 e 1952.

Cinema: Distopias e Jordan Peele

Recomendámos, por último, quatro filmes relacionados com temáticas da distopia, em particular duas: a da liberdade de expressão e a do alarmismo climático, que se expressam nestas obras de diversas maneiras. Na primeira, de François Truffaut, o livro, não só como veículo de informação mas como símbolo da discussão e da prática do conhecimento, é o objecto interdito e perseguido. Na segunda, na fantasia de Paul Verhoeven sobre uma figura crucificada que é transformada em ciborgue, o mundo é dominado pela burocracia das corporações, das seitas urbanas e da linguagem judicial. Na terceira, Terry Gilliam faz a sua adaptação do famoso romance 1984, onde a noção de planeamento central e pensamento único é totalitária. E na quarta, também de Gilliam, o apocalipse foi trazido pelos próprios ambientalistas que juravam pretender evitá- lo. Paralelos com o mundo de hoje? Deve ser impressão vossa.

Celebrámos ainda o jovem cineasta Jordan Peele, um talento excepcional, que alguns apontam como o Spielberg ou o Hitchcock destes primeiros anos do século XXI. Também já o tinham feito a M. Night Shyamalan, mas pronto. Peele tem um percurso invulgar, tendo pertencido a um duo de comédia muito famoso e especializando-se como actor desse género. Mostrando que o mundo da comédia e o mundo do horror têm mais semelhanças do que parece, enveredou, em dada altura, pela realização de entradas cinematográficas desse segundo género. Estreou-se com Get Out, em 2017, onde deixou claras as marcas que acompanharam o resto do seu trabalho até agora: o transporte dos traumas sociais da identidade negra nos Estados Unidos para cenários mais complexos, igualmente psicológicos, mas envolvendo enredos delicados de ficção científica, realismo fantástico, e puro terror. É um cineasta de um talento excepcional. Recomendamos todos os filmes.

Submissões

Desejamos bom trabalho para todos e um restante resplandecente mês de Junho já muito virado para os territórios quentes do Verão. Entretanto, fica sempre, o convite para nos enviarem propostas de artigos, em fase já concluída ou enquanto versão incompleta, mero esboço ou mesmo apenas ideia. Aceitamos todos os temas de relevo, mas podem consultar sugestões de tópicos aqui. Até breve!

Imagem: a imperatriz Teodora (500 – 548), patrona das artes, das prostitutas e da igreja, mulher de Justiniano I, num detalhe do mosaico na basílica de San Vitale em Ravenna.