As Mil e uma Maneiras de Cozinhar Racismo

Texto de Ricardo Fortunato. Imagem: várias etnias da China continental.

No mundo ocidental, actualmente, quando se fala de racismo o discurso é disposto com uma forma e conteúdo bastante simplistas e incompletos. Em geral situa-se o fenómeno como maioritariamente da parte das sociedades brancas contra outras etnias que paternalisticamente por vezes se designam “de cor”, ignorando por completo que isto nada tem de extraordinário na história e na dinâmica das culturas. O racismo é um fenómeno universal e as sociedades ocidentais não são, seguramente, os sítios do mundo onde exemplos do mesmo mais ocorrem, apesar de tratadas como tal — e isso pode corresponder a um fenómeno freudiano de auto-flagelação que não interessa aqui abordar. Há assim outras expressões desse fenómeno que gostaríamos de ver abordadas e que raramente vemos: racismo entre etnias em África (e entre africanos na Europa); racismo na Chinacontra ocidentais; estudos que diferenciem racismo quanto a cor da pele de racismo quanto a traços culturais (maneira de vestir, sotaque etc.); várias perspectivas sobre o que é racismo; que todas as pessoas são inerentemente racistas; que todas as culturas são inerentemente racistas e quanto mais tradicional a cultura mais racista é; que não existe na verdade racismo em sentido estrito de discriminação por cor de pele mas sim por uma série cumulativa de fatores; que na verdade o racismo em nada se distingue substancialmente de outros tipos de discriminação, ou seja, que em última análise qualquer pessoa é de uma raça diferente de outra; que o racismo é geneticamente benéfico; que o racismo não é geneticamente benéfico; etc. Isto porque em geral quando se fala de racismo é sempre a mesma conversa: é sobre o negro no ocidente, e racismo não é só isso. Em suma: o racismo como fenómeno universal que merece ser abordado de perspectivas diversas e informadas, e não apenas com essa conversa excepcionalmente paternalista e condescendente da vitimização das minorias no ocidente, que aliás em muito contribui para a sua menorização, o que não apreciamos por razões humanas e por razões críticas. Aceitam-se exemplos e perspectivas adicionais.

Agora, alguns exemplos e desenvolvimento:

Fomos assim forçados, novamente por circunstâncias recentes, devido à paisagem histriónica com que na opinião pública se discutem conceitos complexos, de voltar ao tema do   “racismo”. As caricaturas de um primeiro-ministro português que para alguns é branco ou coisa parecida e para outros é quase indiano levaram o próprio, e a uma série de acólitos ou activistas das olimpíadas da discriminação, a acusar as mesmas de racismo por razões que ninguém percebeu. Vamos então tentar mais uma vez recapitular e ensinar aos nativos cá do burgo o que é racismo e o que envolve ou não envolve. (1) “Racismo” é um fenómeno universal que se pode mais extensivamente definir como “aversão ao diferente”, e que pode conhecer formas desde rivalidades locais/culturais entre Guimarães e Braga até ao grande binómio do preto/branco em termos de cor da pele. Ou seja, um bracarense não gostar de vimaranenses e um branco não gostar de pretos é um fenómeno da mesma espécie, apesar de poder ter consequências diferentes. É útil categoricamente ver o problema desta maneira e aconselhamos todos a começar a fazê-lo. (2) Nesta medida, é óbvio que podemos chamar a tudo de “racista”: desconfiar do vizinho é “racista”, achar os franceses chauvinistas é “racista”, achar os brasileiros muito barulhentos é “racista” — assunções que têm um fundo de verdade. Porém, obviamente isto leva a uma dissolução do conceito em que acaba por perder todo o sentido. (3) Numa definição mais estrita, poderemos apenas apontar “racismo” — não só ao nível da lei como coloquialmente — quando existe um viés inconsciente ou consciente que resulta em assunções colectivas e discriminações individuais concretas, seja através de actos ou de injúria verbal. (4) Estas duas práticas são penalizáveis na lei portuguesa, cada uma por sua via, embora seja sempre inteligente assumir que o choque destes princípios com o da liberdade de acção e de expressão não tenha necessariamente resolução fácil. (5) Um novo quadro legislativo foi introduzido em 2017 e contém alguma alíneas muito problemáticas, nomeadamente uma que impõe que não seja necessário provar intento discriminatório perante acusação de actos ou injúrias, invertendo o ónus da prova. (6) A jornalista Tânia Laranjo foi multada, em 2022, precisamente por “prática discriminatória em razão da cor da pele”, pela publicação da imagem no canto superior direito acima. (7) Em última análise, estas contradições acabam por ter origem no artigo 13º da constituição, que estabelece protecção para discriminação por algumas características da pessoa mas não, naturalmente, por outras. (8) É por isso que a semelhança cromática das pessoas retratadas nessa imagem e o trocadilho com “Black Friday” pode merecer tal condenação enormemente arbitrária, mas a imagem abaixo, onde figuram os músicos populares Quim Barreiros e Leonel Nunes, qualquer trocadilho envolvendo semelhanças a nível de pilosidade facial não obteria jamais uma condenação da comissão para a igualdade. As restantes ilustrações que aqui propomos elencam exercícios básicos de caricatura, de encontro de semelhanças entre pontos distantes, de exagero de traços distintivos, etc, que configuram aquilo que nalguns casos se pode chamar erradamente de “racismo”. Este tema é vergonhosamente instrumentalizado por académicos, por “activistas” especializados nas olimpíadas da opressão, e até mesmo por políticos. A maior parte das pessoas sabe, felizmente, separar o trigo do joio. Mas a poluição visual, sonora e principalmente conceptual em torno do assunto é aberrante.

Por fim, trouxemos a lembrança feliz de uma frase de protesto cívico bastante poderosa, apesar de, ou talvez por, tratar-se de um truísmo, usada com sucesso em particular nos movimentos afro-americanos nos Estados Unidos, e curiosamente de um conteúdo quase oposto a frases de protesto contemporâneas. Declarar sucintamente “eu sou um homem“ destina-se precisamente a ressalvar que numa democracia liberal todos os indivíduos são exatamente iguais à luz da lei, e que não existem nem indivíduos e muito menos grupos com privilégios especiais, seja lá por que motivo for — mesmo que tal motivo tenha intenções compensatórias por outra qualquer injustiça. “Eu sou um homem“, curiosamente, é em conteúdo e em essência muito mais semelhante ao lema contemporâneo algo vilificado de “all lives matter”, e menos semelhante ao original “black lives matter”, slogan sectário e profundamente baseado em eventos e quadros demográficos altamente manipulados pelos média.