Edição: Setembro 2023

O regresso à plena actividade! Com nova chamada para artigos, oito inéditos, mofo, cartas de amor, nomenclatura, calão, Highsmith, quotas, beijos, abuso, parafilias, tourada, cancel culture e submarinos. Versão da web aqui.

Nesta edição do mês de Setembro, começamos por mostrar um ensaio do músico e etnomusicólogo Vítor Rua que descreve como as inovações musicais no séc. XX foram beber a tradições primitivas de todos os continentes, profusamente ilustrado com exemplos.

Tivemos também o prazer de publicar os primeiros três testemunhos de uma série que juntaremos no mesmo documento, do congresso “Os católicos na luta contra a ditadura”, promovido pelo movimento Não Apaguem a Memória e pelo Instituto São Tomás de Aquino em 2014.

Trouxemos uma das últimas entrevistas de Urbano Tavares Rodrigues, neste caso sobre Ferreira de Castro e a relação entre ambos, em Lisboa, a 6 de Maio de 2013, conduzida por Ana Cristina Carvalho.

Outro ensaio, desta feita sobre as escolhas de carreira do actor Charlton Heston e de como estas reflectem a sua tendência politicamente conservadora, em particular na trilogia Soylent Green, Planet of the Apes e Omega Man, da gesta de João N. S. Almeida.

Também se impuseram este mês alguns comentários sobre as complexidades das interacções entre homens e mulheres, no dealbar do século XXI, nas sociedades ocidentais. É uma crónica da autoria de Ricardo Fortunato.

A esta última apensamos, dentro do mesmo tema das dinâmicas sexuais, uma breve reflexão em torno do tema do poder subterrâneo da mulher sobre o homem, na obra Sunrise de F. W. Murnau, da autoria de Jorge Filipe Carvalho.

Seguiu-se mais um capítulo dentro da nossa costumeira série dedicada ao bizarro e a pérolas musicais escondidas: são merecedores de atenção uma cantora dos anos 20, uma lenda do género psicadélico dos anos 70 e um número clássico de reggae do começo dos anos 80, todos do século passado, como é evidente. A autora é a já conhecida Cláudia Zafre.

Seguimos ainda com uma breve e bem-humorada crónica de Vítor Vicente sobre confusões memoriais e conceptuais levantadas pela relação entre a película Barbie e a cultura de outrora e a cultura de agora.

Chamada para Artigos

Neste início de ano lectivo, convidamos todos os interessados, dentro e fora das universidades, a submeterem propostas para artigos — ensaios, crónicas e críticas — que podem chegar-nos numa fase já concluída ou enquanto versões incompletas, meros esboços ou apenas ideias. Podem escrever-nos sobre temas das vossas áreas de estudo e investigação ou sobre os tópicos que preferirem. Recomendamos em particular aos membros da comunidade académica que aproveitem conteúdos frequentemente desperdiçados — como trabalhos para cadeiras e seminários, apontamentos, estudos parciais, trabalhos de campo, relatórios, registos de conversas e debates, etc. — para os dar a conhecer ao mundo. Teremos todo o prazer de ajudar a convertê-los em formato legíveis pelo público em geral. Contatem-nos em geral@revistaminerva.pt.

Cheiro a Mofo e Cartas de Amor

Não é infrequente ouvir-se a referência ao cheiro “a mofo” como algo de negativo, representando, modo geral, uma antiguidade ultrapassada face às ideias luminosas do presente auto-convencido e invencível. Cremos que esta reputação é particularmente ingénua e de larga maneira até desprezível. Se consultarmos aqueles que são, pela função, tradição e unanimidade social, considerados “templos do saber” — como bibliotecas, universidades com história, arquivos, ou até mesmo igrejas — encontraremos com frequência o tal cheiro a “mofo” de que tanta gente se queixa. Tal associação é obviamente nobre, de características vetustas e duradouras, não sendo de todo a sensação de um lugar ortodoxo e ultrapassado, mas antes de paz, conhecimento e disposição crítica para o estudo e para o pensamento. Não se compreende assim a reputação que o termo correntemente goza, sendo que é particular de certa espécie de gente mental e olfativamente dona de determinada sensibilidade frágil. Tal diferença entre quem está habituado a frequentar as cátedras universitárias e esse tipo de pessoa cuja tolerância ao cheiro do “mofo” é muito delicada é provavelmente a diferença entre tradições de pensamento e de debate que nasceram há 3000 anos e outras tradições que nasceram anteontem. Por último, sublinhamos que de acordo com as fontes que consultámos, o cheiro a mofo próprio dos livros antigos é resultante do decaimento da celulose, particularmente da lignina, um componente molecular da mesma, e pode ser atenuado com a aplicação regular de óxido de magnésio, prática comum nalgumas bibliotecas. Há quem descreva esse cheiro a mofo particular dos livros antigos como uma mistura de relva e baunilha. São interpretações dos cheiros que, tal como na enologia, funcionam tanto objectiva como metaforicamente.

Quando se pensa em cartas de amor no sentido tradicional, não se está propriamente a imaginá-las em circulação na antiguidade. De facto, são muito raras ou praticamente inexistentes. Aliás, o conceito de amor e paixão que hoje conhecemos de matriz judaico-cristã não fazia parte da matriz clássica dominante na antiguidade e o casamento servia uma função utilitária tout court. Apenas mais tarde, com a chegada da Idade Média e as efabulações de Tristão e Isolda começou a tradição a cultivar o conceito de amor no sentido romântico e shakespeariano da palavra. Não quer isto dizer que na antiguidade as pessoas se não correspondessem com cartas em que os temas amorosos proliferassem. Faziam-no, mas de modo utilitário, na maior parte das vezes. Não devemos desprezar, porém, a evidência de que o tropo da carta de amor era uma ferramenta literária ao serviço dos literati da Roma Imperial sobretudo. Alguns dos nomes mais ressoantes desta prática são Propércio, Plínio, Filóstrato, Ovídio, Alcifronte, Cláudio Eliano, apenas para mencionar os principais. Apesar de apenas após a instauração das estruturas sociais e conceptuais ditadas pelo romantismo ter sido possível conceber a ideia de “carta de amor” dirigida de um sujeito a outro por inteiro, podemos ver no exemplo da antiguidade clássica algumas formas embrionárias ou semelhantes àquelas no que diz respeito ao conceito de “amor”. Sobre isto, recomendamos os volumes Love and Marriage in the Middle Ages (1994), de Georges Duby, e Epistolary Narratives in Ancient Greek Literature (2013, eds. Owen Hodkinson et al.

Nomenclatura e Variantes do Calão Sobre Sexos

Aproveitando o destaque pós-moderno de certas formas pronominais agramaticais ligadas a identidades de género, quisemos evidenciar o aspecto de eventual absurdo social das nomenclaturas e formas de tratamento, em particular nas sociedades mais ortodoxas e provincianas. Com efeito, desde o senhor doutor, o senhor engenheiro, o “nome antigo“ e o “nome novo” nos transgénero, as alcunhas locais, os segundos nomes, os nomes de solteiro e os nomes de casado, os diminutivos de infância, o tratamento pelo nome próprio ou antes pelo apelido, os apelidos formados a partir de profissões, etc. Qualquer um

destes exemplos de situações comuns pertence à mesma categoria e fundamentalmente não reflete nenhuma questão de substância mas sim de negociação social: não existe nem é suposto existir uma identidade de nome absoluta e estanque, e qualquer exercício de levar demasiado a sério, acima do que merece, apresenta provavelmente uma situação mental e social de privilégio de quem tem muito tempo livre, não tem vida própria, ou é neurótico. Não é por alguém se licenciar, atingir a maioridade etária ou mudar de sexo que tem o direito de exigir aos outros tratamento imediato pelo novo título. A linguagem e as interacções sociais são por natureza questões de negociação mútua e não de imposição autoritária, e foi isso que quisemos destacar.

Trouxemos também uma breve reflexão sobre linguagem ordinária. As mulheres trabalham, cuidam dos maridos e dos filhos. Porque é que se dá sentido pejorativo e fundamentalmente subalternizado ao palavrão “enconado” e suas variantes, assim como outros de índole íntima venérea feminina, principalmente pronunciados por homens no trânsito ou em situações de maior tensão, como demonstra o exemplo “desencona-te”, entre outros? Será talvez difícil que as mulheres no presente vivam emancipadas e saiam de dentro da mentalidade de vítima se o sexo masculino no dia-a-dia fomenta junto ou longe de pessoas do sexo feminino o efeito de “emaciez” e fragilidade com que as mulheres têm vindo a estar associadas desde épocas primevas. Afinal o que significa “desenconem-se” ou “estar enconado”? Ou mesmo “és um coninhas”? O uso deste cognato em verbo pode denunciar a mentalidade de quem o usa, além de uma evidente misantropia que se lhe repassa. Por isso, deixamos a sugestão: aconai-vos, woman up! Claro que nesta equação seria injusto esquecer a contraparte masculina, o palavrão “desencaralhar”, de que o imperativo “desencaralha-te” é a forma mais representativa. Este adquire também efeito pejorativo quando posto em uso. Mas, afinal, qual é o equivalente masculino para “és um conas”? Recebemos várias propostas calorosas no comentários das redes sociais a esta pergunta.

Patricia Highsmith e Quotas Raciais

Não podemos esquecer as noites de cinema das sexta-feiras. Numa delas, foi tempo de reflexão. Mafalda Sousa Leal trouxe um comentário sobre o documentário Loving Highsmith, a propósito da escritora Patricia Highsmith, parte de uma tendência documental em que a sexualidade e vida amorosa do biografado é o foco. É a sexualidade sobrevalorizada na cultura? Uma escritora brilhante, Highsmith escreveu alguns dos mais célebres livros policiais, entre os quais a saga do psicopata carismático Mr.Ripley (hoje em dia seria considerado homem “queer”). Os seus livros tiveram inúmeras adaptações cinematográficas dirigidas por grandes nomes da sétima arte: Strangers on a Train (1951), por Alfred Hitchcock e em 1969 por Robert Sparr; de Réné Clément, Plein Soleil (com o belíssimo Alain Delon), The American Friend por Wim Wernders, The Talented Mr.Ripley (1999) por Anthony Minghella, Ripley’s Game (2002) por Liliana Cavani, Ripley Under Ground por Roger Spottiswoode e Carol por Todd Haynes — este último a história de uma relação homossexual entre duas mulheres, baseado num encontro fugaz entre a escritora e uma mulher interessante, com a singularidade de ser o primeiro romance homossexual com um final feliz na América; um livro que deu esperança às jovens lésbicas, tendo a escritora recebido imensas cartas de agradecimento. Seria de esperar que o documentário sobre esta grande escritora fizesse justiça ao seu génio, mas incorre em mediocridade e chega a ser vulgar na abordagem à vida íntima da Patricia Highsmith. Somos informados de que frequentava bares gays, que era lésbica (com ênfase excessivo na influência da orientação sexual da escritora na sua obra), informação maioritariamente irrelevante para a conhecermos enquanto artista e até mesmo pessoa. A relevância da orientação sexual de um artista manifesta-se quando este se vale da sua experiência biográfica para a criação da obra de arte (como o exemplo acima referido de Carol), ou o exemplo polémico da visita de Thomas Mann a Veneza, inspiração para a sua famosa novela Morte em Veneza. A sexualidade (onde se integra a pluralidade LGBTQ) é uma parte da identidade do ser humano, mas não é o traço dominante do Homem. Entende-se por identidade o “conjunto de características (físicas e psicológicas) essenciais e distintivas de alguém, de um grupo social ou de alguma coisa”. Estes movimentos identitários a nível sexual, reflectidos neste tipo de produção cultural, vendem à audiência a ideia de que o sentido das suas vidas é a descoberta, afirmação e imposição da sua sexualidade à sociedade, uma disposição limitativa e tendenciosa. Descrever a vida de uma mulher que, como descreveu no posfácio da reedição de 1990 de Carol (´If I were to write a novel about a lesbian relationship, would I then be labelled a lesbian-book writer? That was a possibility, even though I might never be inspired to write another such book in my life. So I decided to offer the book under another name.´), nem queria ser rotulada de escritora de policiais e menciona a sua oposição a esse rótulo, é reduzir o artista a uma espécie de penduricalho de categorias sociais, o que de modo geral rejeitamos.

A partir de 2024, na Academy of Motion Picture Arts and Sciences, em Hollywood, os filmes terão de cumprir mais requisitos para serem eleitos aos Óscares — o preenchimento de numerosas, exigentes e até bizarras quotas raciais aplicáveis a todos os participantes: elenco, produção e realização, argumentistas, equipa técnica, etc. Por isso destacámos, em colaboração com Mafalda Simão Leal, esta “boa intenção” (aquelas de que está o Inferno cheio) da inclusão e representatividade das minorias no grande ecrã. Suscita-se uma questão pertinente: perder-se-á a liberdade artística? Ficará refém de uma agenda política, cujo objectivo é agradar a uma audiência específica? Em que medida tal põe em risco a própria democracia? Mas não nos dispersemos, o nosso foco é o cinema. Neste novo contexto, os realizadores de Hollywood, se quiserem ganhar um Óscar, terão de abdicar da sua liberdade criativa, criando um monstro de Frankenstein cinematográfico, enxertando personagens, histórias, actores,elementos da equipa, que podem não ser os desejados (muito provavelmente..) nos seus filmes devido a quotização política, modo de planeamento social colectivo, que atinge o próprio cerne do processo artístico, manipulando quem é que os artistas devem ou não devem elencar nas suas obras. Não deixa de ser monumentalmente estranho que se entenda a necessidade destas quotas em pleno século XXI, quando temos actores e actrizes de topo, e também realizadores, na ribalta da sétima arte americana, entre os quais Denzel Washington, Lucy Liu, Freida Pinto, Will Smith, Morgan Freeman, Ang Lee, Alfonso Cuáron, Alejandro Iñarritu, Jordan Peele, Ava Duvernay, Spike Lee, Guillermo Del Toro, Antoine Fuqua, M. Night Shyamalan, e esta lista já não está pequena e inclui nomes efectivamente titânicos no panorama do cinema comercial actual. Deixamo-vos em específico a indicação da obra de Peele, onde as “minorias” não são personagens bibelô, ventríoloquos do cinema branco escudado na causa da diversidade que em raiz é nobre mas cuja aplicação pode ser politicamente muito suspeita. Os filmes deste realizador, através da lente da psicologia social, oferecem uma análise complexa do racismo, recorrendo à metáfora e ao terror. Os defensores das quotas podem alegar que Peele é uma excepção a nível da inclusão dos negros na indústria cinematográfica, mas (1) a lista acima exposta em grande parte o desmente e (2) haverá certamente formas mais democráticas, mais fluidas e mais unânimes de tornar a indústria inclusiva, alternativas que não aniquilem a liberdade criativa — para as quais provavelmente o exercício livre do mérito artístico será imprescindível.

Apenas um Beijo ou Tudo é Abuso

No espírito completamente desinteressado e celebratório do fim da quadra de verão, apresentámos, de forma inocente e em nada relacionada com pseudo- escândalos da imprensa sensacionalista (que ideia!), um magnífico panorama antológico de beijos, mais especificamente “chochos“, recentes, mediáticos e improváveis. Elencámos assim um beijo acidental e animado entre um cão e uma cadela; o “pico” de parabéns do presidente da federação de futebol espanhola a uma jogadora; o beijo particularmente “mamado” entre os lendários futebolistas Maradona e Caniggia; um dos curiosamente mais lendários beijos da história do cinema entre um super-herói e uma admiradora; o famoso beijo que marcou o fim da Segunda Guerra Mundial, interessantemente não consensual, já que o marinheiro estava bêbado e confundiu uma qualquer transeunte com uma enfermeira; mais um exemplo de dois futebolistas, Gary Neville e Paul Scholes, perdendo a cabeça com festejos e unindo os lábios; o beijo político e masculino entre o presidente da Alemanha ocupada pelos soviéticos e o secretário-geral da URSS; o beijo do príncipe que deu vida à famosa personagem Branca de Neve (idem com Bela Adormecida), também não consensual; e a personagem Antoine Doinel do cineasta François Truffaut tenta roubar um beijo no apropriadamente intitulado Baisers Volées. Deixámos, por fim, a sugestão de um título crítico sobre a história do beijo na cultura pop, pós-romântica e um outro mais abrangente. Escusámo- nos, de resto, a maiores reflexões sobre as interacções humanas, campos complexos em que a ideia infantil de “consentimento escrito e assinado“ não funciona de modo claro e sem as ambiguidades, as incertezas e as indecisões que norteiam todo o leque maravilhoso e diverso da nossa actividade. Podem ler sobre a história do beijo e mais aqui e aqui.

Recentes invenções porventura demasiado proteccionistas e infantilizantes, quer a nível de conduta social quer a nível de legislação, nas sociedades ocidentais, quanto a categorizações de interacções erótico-amorosas entre pessoas conhecidas ou desconhecidas como as categorias de “assédio” ou “abuso“, podem vir a ter consequências muito nefastas em geral reservadas para aqueles que misturam tudo e no fim acabam com nada. Apesar de até mesmo alguma legislação contemporânea considerar que os seguintes fenómenos pertencem todos à mesma categoria, dificilmente uma pessoa comum dotada de sensibilidade e inteligência o poderá afirmar como verdade: desde beijos inesperados entre amigos e/ou colegas de trabalho, contactos reiterados com vista a obter retorno amoroso, toques no ombro, na cintura ou abraços prolongados, comentários elogiosos desde o bom gosto até ao mau gosto sobre o aspecto físico de outra pessoa, cartas de amor, relações íntimas entre colegas de trabalho com diferentes hierarquias, relações sexuais em que uma pessoa ou ambas estão embriagadas, relações sexuais a contragosto em contexto conjugal, até — e aqui atravessamos uma fronteira — contactos reiterados com vista a correspondência amorosa que ultrapassem um determinado limite de rejeições explícitas, apalpões indesejados em zonas íntimas em público ou privado, sugestões de trocas de favores profissionais por favores sexuais, modificação do conteúdo de bebidas com vista a deixar a pessoa mais receptiva a avanços, relações sexuais com pessoas severamente embriagadas ou inconscientes que não tenham de modo algum dado a entender essa disposição, relações sexuais explícita e reiteradamente rejeitadas mesmo que dentro de arranjo conjugal, e violação sob ameaça de violência implícita ou uso explícito da mesma. Está aqui elencada uma série de situações, muitas radicalmente diferentes, tipicamente agrupadas por algumas mentes débeis e/ou histéricas (ou mesmo absolutamente desonestas) como pertencendo inequivocamente às mesmas categorias estanques do abuso e do assédio. Isto não pode ser assim. Um abraço que dura tempo demais não é uma violação e um contacto reiterado ao longo de pouco tempo com vista a obter correspondência amorosa não é necessariamente uma perseguição, só para dar dois exemplos. O que esta generalização obtusa acaba por fazer é, curiosamente, ilustrar como pessoas que acham que tudo isto é assédio e abuso estão tão próximas daquelas que acham que nada disto é assédio nem abuso e que “X estava a pedi-las“. É a consequência lógica: quando tudo é abuso e assédio, segue-se que se perdeu a capacidade de distinguir categoricamente esses fenómenos do resto e por conseguinte chega-se ao ponto em que já nada é verdadeiramente abuso nem assédio, o que é um estado de coisas verdadeiramente desaconselhável. Aconselhamos a todos os exagerados que tomem duas prudências: (1) que moderem severamente a utilização destes conceitos e (2) que deleguem preferencialmente no uso da legislação e da jurisprudência tão claras quanto possível o estabelecimento objectivo destas categorias e não as deixem cair na justiça de rua, tipicamente irracional e sem credibilidade nem direito.

Orientação Sexual, Parafilia e Touradas

Um tópico que por vezes é debatido no âmbito das categorias mais morais do que científicas relacionadas com sexualidade contemporânea é a diferença entre “orientação sexual” — tipicamente entendida como a grande direcção do desejo, em geral orientada para categorias masculinas ou femininas muito claras — e “parafilia” — em geral defendida como uma excepção na normalidade lógica da sexualidade. Ora queremos aqui tentar esclarecer qual é a diferença entre estes dois capítulos classificativos, e a resposta é: não existe diferença nenhuma. De um ponto de vista objectivo, concreto, redutível a factos brutos sistematizáveis numa descrição científica, as práticas e identidades sexuais são todas iguais: preferir homens, preferir mulheres, preferir loiras, preferir gordos, preferir anões, preferir novos, preferir velhos, prefirir cabedal e sadomasoquismo, prefirir mudar de sexo, preferir vestir-se do sexo oposto, preferir orgias, é tudo a mesma coisa. Não existe formal e categoricamente nenhuma diferença entre estas tendências, preferências, práticas ou identidades. A única diferença que existe é ao nível do lugar moral em que as colocamos, também curiosamente na sua relação com o binário de amor romântico, e com a maneira como cada uma das práticas podem ser consideradas “substanciais“, ou seja, absolutamente definidoras da “identidade“ da pessoa“, embora tudo isso seja naturalmente arbitrário. Tanto pessoas de índole conservadora, que verão possivelmente a relação primordial de homem e mulher como de uma dimensão diferente, como pessoas de índole revolucionária, que aceitarão as práticas alternativas mas dentro de um esquema de excepcionalismo, terão dificuldade em encaixar esta leitura objectiva da questão, mas a verdade é que as nossas classificações sobre realizações da sexualidade não podem ser colocadas numa diferença de substância mas apenas de lugar moral. Para isso também nos alicerçamos em Freud, que deixou bem claro nos seus famosos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade como não existem de modo objectivo “desvios” sexuais, sublinhando-o através de um exemplo bem conhecido de todos nós: o beijo entre amantes, a coisa mais comum na nossa cultura, que definiu engraçadamente como “a união dos respectivos inícios do trato digestivo”, não tem nada a ver propriamente com cópula e nesse sentido é um “desvio” tão grande como uniões de lábios com outros orifícios corporais ou qualquer comportamento aparentemente excepcional e lateral.

Inaugurámos, adicionalmente, uma série de partilhas e destaques com vista ao esclarecimento para o público urbano em geral sobre a prática milenar da tourada, de modo a que possam formar juízos mais informados sobre a mesma. Fizemos isto derivado daquele que é o estado actual da opinião pública sobre a prática, e que é incontornavelmente muito curioso de um ponto de vista sociológico: a geração mais “contra as touradas” é a mais urbanizada de sempre, mais ignorante do mundo rural, sem contacto com animais selvagens, sendo que os seus juízos sobre os mesmos podem resultar de projecções incorrectas a partir dos animais domésticos que conhecem. Começámos assim por destacar o ponto de que a ética animal em que muitos desses detratores se alicerçam não é uma ética inteiramente coerente, embora nenhuma o seja, mas esta, que aparentemente se preocupa com os direitos dos seres sencientes — resultando provavelmente de uma antropomorfização — não costuma preocupar- se com as formigas nem atribuir esse estatuto à vida microscópica. Portanto “longe da vista, longe do coração“. Um outro ponto ainda é a mundivisão que entende que qualquer prática admissível em sociedade de algum modo representa e compromete todos os membros dessa sociedade, o que não é de todo viável, pois vivemos em sociedades plurais e até mesmo multi-culturais. Destacámos assim, para início de conversa, estes dois pontos, prometendo desenvolvê-los e acrescentar outros a breve trecho.

Mais Cinema: Cancel Culture e Submarinos

Destacámos numa dada sexta-feira do mês quatro filmes generalisticamente sobre cultura de cancelamento, em particular na academia mas não só. Primeiro, A Culpa Humana, com Anthony Hopkins e Nicole Kidman, retratando um professor acusado de ter feito um comentário racista que levou ao seu despedimento, baseado num romance de Philipp Roth; depois, Safe Spaces, sobre outro professor acusado de ter despontado recordações traumáticas a uma aluna devido a uma aula provocadora; terceiro, o recente Tár, com Cate Blanchett, com uma compositora e maestrina acusada de desprezar minorias e privilegiar compositores brancos e heterossexuais; por último, O Processo, adaptação de Orson Welles do famoso romance de Kafka retratando um homem perdido numa surrealidade burocrática em que nem sequer se entende de que é que está acusado. A cultura do cancelamento é um fenómeno real, presente, que sempre existiu, e que consiste pura e simplesmente na perseguição pública e privada de pessoas devido a opiniões dentro da lei que possam ter. É um fenómeno que não deve ter qualquer lugar numa sociedade civilizada baseada no estado de direito, sendo que em geral aqueles que acham que tal coisa não existe ou não tem relevância são, muito provavelmente, compactuantes com essa miserável, bárbara e irracional forma de censura moderna.

Outra leva de filmes destacou a figura do submarino este mês. O espaço exíguo do mesmo, versão ainda mais condensada do micro-universo hermético que decorre em qualquer embarcação de alto mar — ou, nas vertentes mais modernas, no espaço — permite todo o tipo de incorporações dramáticas bem conhecidas: questões morais, religiosas, de amizade, às vezes de amor, quase invariavelmente de guerra, mas sempre, dada a situação de circuito fechado em que o enredo decorre, de disposição diegética incontornável em que as tensões têm necessariamente resolução, não poucas vezes trágica. Deixamos aqui uma lista de filmes com algumas sugestões de qualidade em redor do tópico.

Submissões

Deixamos, por último, um adeus fraternal às férias e à praia e terminamos desejando a todos uma excelente e portentosa entrada no ritmo reinaugurado de trabalho neste novo ano lectivo. De resto, reiteramos o convite anteriormente feito para nos enviarem propostas de artigos em fase já concluída ou enquanto versão incompleta, mero esboço ou mesmo apenas ideia. Aceitamos todos os temas de relevo, mas podem consultar sugestões de tópicos aqui.

Imagem: gravura representando a imperatriz consorte Tokugawa Masako (1607 – August 2, 1678), mulher do imperador Go-Mizunoo, patrona das artes, da cultura e do património japonês no período Edo.