Velocidade de cruzeiro: oito inéditos, ciência-pop, novidades na filosofia, sufrágio feminino, conflito judaico-árabe, império romano, romances longos, o Guia de Portugal, quatro cronistas, história do beijo, e cinema sobre nojo, gays e terrorismo.
Começamos com mais um excelente ensaio de Charles da Silva Rodrigues e Paula Carvalho de Figueiredo com algumas excursões sobre teses filosóficas a propósito do conceito de livre-arbítrio.
Depois, Ana de Oliveira Sérgio escreve-nos, a respeito do presente conflito no médio-oriente, sobre que tipo de sociedade é que permite o trabalho universitário e que tipo de sociedade é que não o permite — e consequentemente que posição é que a universidade deve tomar em certos conflitos.
Vítor Rua, músico e etnomusicólogo, escreve-nos mais um excelente texto sobre como a noção convencional de música enquanto exclusiva construção cultural humana pode ser estendida e aplicada ao reino dos restantes animais.
Tomás Vicente Ferreira presenteia-nos também com um excelente ensaio sobre as influências e o modo literário em que o famoso poeta alemão Friedrich Hölderlin se move, passando pela invocação de alguns críticos e por uma breve análise da sua poesia.
Apresentamos também uma pesquisa num meio local brasileiro sobre se o acesso a aparelhos electrónicos e internet aumenta os casos de agressão por meio das redes de comunicação, de Carla Silbene e outros. Contámos também com uma breve, singular e divertida crónica sobre horticulismo e vida da autoria do nosso querido Nuno Lopes Margalha.
Mais uma incursão de Cláudia Zafre em itens musicais raros e exóticos, desta vez com alguma folk psicadélica, emo alternativa e soul dos anos setenta. Chamamos a atenção também para o livro de contos da autora, O Ar é de Todos, recém-publicado e disponível na loja de discos Chasing Rabbits, ao Rato, em Lisboa.
Por fim, mais um breve texto divulgativo do mundo dos relógios da autoria de Nuno Margalha, em parceria e amizade com o Instituto Português de Relojoaria, desta vez sobre Clayton Boyer, artesão que vende planos para construção de relógios de madeira.
Ciência Pop e Novidades na Filosofia
Tivemos o prazer de destacar, num tópico domingueiro, quatro grandes divulgadores da ciência em geral, e dois da cosmologia em particular, junto das camadas populares: Hubert Reeves, Carl Sagan, Jacques Cousteau e David Attenborough. O primeiro publicou diversos livros sobre cosmologia dirigidos ao público em geral e teve presença regular no meio televisivo francófono; o segundo foi dos mais importantes divulgadores também de cosmologia na televisão americana durante as décadas de oitenta e noventa através da sua famosa série Cosmos; o terceiro foi o mais famoso oceanógrafo da segunda metade do século XX, tendo popularizado a área através da literatura, do cinema e de uma série de televisão na década de setenta; e o quarto é um naturalista famosíssimo responsável por décadas de programas documentais sobre vida selvagem na cadeia televisiva BBC. Quatro titãs da popularização das ciências naturais que louvamos e saudamos enfaticamente. Não incluímos nesta lista autores como Neil deGrasse Tyson ou Michio Kaku porque, apesar de fazerem superficialmente um trabalho semelhante, caem demasiado nos erros da politização polarizada e polarizante em que tantos intelectuais, académicos e artistas hoje caem — em relação, por exemplo, a tópicos como a desigualdade social ou o aquecimento global — bastando para exemplificar isso verificarem a re- criação da série Cosmos, original de Sagan, por parte de Tyson e verem a diferença monumental em termos de sermão político ali presente. Por isso, excluímo-los desta lista, que se mantém clássica, optimista e impoluta quanto baste.
Inaugurámos também uma rubrica que queremos que seja regular: a divulgação de obras recentes do território da filosofia, abarcando todas as tradições e estilos — continental, analítica, técnica, popular, etc —, contando com a ajuda e guia das Notre Dame Philosophical Reviews, que aconselhamos todos a seguir ou subscrever. Apresentamos assim A Better Ape: The Evolution of the Moral Mind and How it Made us Human, de Victor Kumar e Richmond Campbell, uma obra que mapeia a evolução moral da mente e propõe caminhos de progresso moral a partir dessas lições; What We Owe The Future, de Will MacAskill, que propõe uma teoria moral forte sobre “longoprazismo” em termos de consideração sobre acções recentes no que diz respeito à continuidade da espécie humana; Bias: A Philosophical Study, de Thomas Kelly um estudo que tenta encontrar o que em comum têm todas as coisas que podem ser “parciais” (desde dados, moedas, previsões meteorológicas, juízes, professores, etc); e The Meaning of If, de Justin Koo, com um argumento analítico complexo sobre o conteúdo de expressões condicionais, integrando-as num sistema formalista com semântica própria e princípios de probabilidade. São estas as nossas sugestões das paisagens recentes daquilo a que chamamos amigavelmente de modo geral de “filosofia”.
A Emancipação Feminina e o Conflito Judaico-Árabe
Aproveitando a visibilidade e o debate lançado por algumas formas de protesto distintas na paisagem cultural portuguesa nas últimas semanas — por exemplo, numa livraria, a propósito de um lançamento de um livro, com palavras de ordem e megafone; em palestras de ministros, com arremesso de tintas às pessoas presentes; e os já clássicos e bastante selvagens quebramentos de montras — queremos lembrar um facto frequentemente mitificado por alguns cultores do arruaceirismo: o movimento sufragista, que pugnou pelo voto universal das mulheres e pela sua integração como membros plenos da sociedade do início do passado século, não foi bem sucedido através da violência mas sim devido às próprias transformações sociais e históricas que decorreram então. Tal representação desse movimento como fundamentalmente dotado para a intervenção disruptiva no espaço público no seu todo é falsa, tendenciosa e representa uma mitificação grotesca dos processos complexos que essa transformação social representou. Em primeiro lugar, convém destacar que qualquer movimento de transformação significativa da sociedade tem expressões de protesto que passam por cenários antagonísticos envolvendo ou não violência da parte dos protestantes ou da parte das autoridades. Foi o que se passou com o sufragismo, em que se fizeram greves de fome — violência exercida sobre os próprios manifestantes — interromperam-se eventos públicos e incendiaram-se marcos de correio — violência exercida sobre terceiros e sobre o público em geral. Isso é inegável. Em segundo lugar, é falso, porém, que estas expressões fossem majoritárias e significativas no movimento. Os setores minoritários do mesmo que enveredaram pela violência integram-se e, aliás, misturam-se com, tendências de combate bárbaras desse início do século partilhadas por anarquistas e comunistas; não foram de todo essas ações que substanciaram o papel da mulher como a de um ator cívico de pleno direito — como também não foram bombas e barbarismo que deram força a comunistas ou anarquistas — mas sim uma coisa muito simples: o seu papel na primeira Guerra Mundial. Sendo obrigadas pela ausência da população masculina a tomar trabalhos e atividades tradicionalmente destinadas aos homens, ganharam muita força e respeito junto da opinião pública, ao contrário das anteriores acções, que tinham contestação dentro do próprio movimento. No final da guerra, decorrendo deste contexto, foi aprovado o primeiro direito ao voto parcial para as mulheres. Esta é a verdade histórica: o sucesso do movimento sufragista não teve absolutamente nada a ver em primeira linha com violência exercida sobre terceiros mas sim com o respeito que ganharam junto da opinião pública com a sua participação cívica na guerra, ao que acresce algumas expressões de protesto como as greves de fome (aspectos das quais estão retratados nas imagens em baixo) que naturalmente mereceriam também mais respeito do que desordeirismo de modo geral. Por último, e em conclusão, ao contrário do que alguns actores cívicos mal resolvidos possam pensar, é muito raro a violência política trazer resultados práticos positivos, quer a nível de apoio da população — e lembremos que de modo geral ninguém gosta de violência, nem mesmo os próprios partidários das causas —, quer a nível de desmantelamento de estruturas físicas ou sociais que limitem os objectivos dos protestantes. Lembremos que as grandes revoluções políticas na segunda metade do século XX, já após o barbarismo sanguinário e suicida das grandes guerras, foram muitas travadas com notável inteligência através do caminho da paz e da não violência, como com Mahatma Ghandi, Nelson Mandela, Martin Luther King, ou mesmo as extraordinariamente pacíficas, comparativamente, transições para a democracia de Portugal e de Espanha. Cuidado, portanto, com a glorificação do desordeirismo inócuo, que pode servir apenas para veiculação de impulsos primitivos para o barbarismo que existem em todos nós.
De forma muito sucinta, e notando com alguma preocupação alguma cobertura noticiosa recente, de tendência “activista”, não só passar por cima com notória leviandade de factos culturais e históricos básicos, mas também engolir facilmente e transmitir histericamente clara propaganda de guerra, particularmente de grupos terroristas sem qualquer credibilidade, fizemos questão de assinalar alguns esclarecimentos sobre o conflito entre judeus e árabes na zona da Palestina, a partir dos quais se pode ter uma conversa séria:
- existe guerra civil há mais de 100 anos ou há mais de 2500 anos (recomendamos a primeira leitura), entre árabes e judeus naquela região, mas também entre etnias dentro dos próprios árabes;
- não existe nenhuma caracterização sólida de “genocídio” aplicável a expressões dessa guerra civil; a classificação de “apartheid” é dúbia, dado os direitos cívicos dos árabes no estado de Israel e os controles fronteiriços naturalmente resultantes da situação de segurança resultante da guerra civil;
- não existia nenhum estado árabe nem nenhum estado judeu antes da fundação de Israel, durante o mandado britânico daquela região;
- existia uma unidade cultural judaica mas não existia, nunca existiu e possivelmente ainda hoje não existe nenhuma unidade cultural dos árabes residentes na região, sendo que a lógica tribal própria das culturas locais impera;
- Israel é a única democracia consolidada e credível da região, com eleições livres — para todos os cidadãos, incluindo árabes, que têm representação política —, com pesos e contrapesos (partidos de oposição, ramos do estado, tribunais, etc.); todos os regimes em redor, de etnia árabe e religião muçulmana dominantes, são imitações de democracias, com quadros políticos e legais restritivos de direitos humanos (religiosos, sexuais, políticos, artísticos, etc.);
- Israel não tem um plano de “judaização” do mundo; muitos ramos do Islão radical têm planos de conversão do mundo à força e quadros morais de desumanização do não-crente;
- a ética de guerra de parte da cultura de árabes palestinianos e do islão mais radical envolve a glorificação do martírio, inclusive de crianças, um quadro moral em que o valor da vida dos próprios é mais diminuto do que é para os ocidentais, e uma cultura de ódio e de morte que nos é estranha; estatísticas de vítimas devem ter isto em conta;
- ambos os lados cometem crimes de guerra, como infelizmente é invariável acontecer em teatros de conflito prolongados e complexos.
Qualquer destes pontos é superficialmente discutível, mas incontornável, numa conversa sobre o assunto.
“Pensar no Império Romano”, Black Swan e Morte em Veneza
Trouxemos, com gosto, pela pena de Mariana Franco da Silva, uma reflexão sobre como, nos últimos tempos, as redes sociais têm sido palco de uma tendência intrigante, com o surgimento de uma questão, aparentemente simples, que se tem espalhado como fogo: “Com que frequência se pensa no Império Romano?”. Surpreendentemente, muitos dos indivíduos (maioritariamente do sexo masculino) têm vindo a afirmar que ponderam sobre este tema com elevada frequência. Esta brincadeira, inicialmente inócua, tem vindo a alcançar um grande nível de popularidade e a despertar o interesse de muitos. Portanto, prossegue-se a explorar esta tendência. Surge a dúvida: Por que motivo o Império Romano ocupa um lugar especial no nosso pensamento? A origem desta tendência pode ser encontrada na natureza imprevisível da cultura da internet. Muitas destas viralidades podem vir a ser esclarecidas por simples piadas aleatórias que acabam por “pegar boleia” na vasta onda que são as redes sociais. O “Império Romano” não parece ser diferente. Uma das peculiaridades desta tendência é a ênfase de questionar especificamente indivíduos do sexo masculino sobre a frequência dos seus pensamentos relativamente ao Império Romano. A atribuição de interesses específicos com base no género é uma generalização simplista e muitas vezes imprecisa. É impossível afirmar que todos os homens ou mulheres compartilhem as mesmas propensões de raciocínio.
No entanto, é possível que a escolha do Império Romano como tema central tenha as suas raízes em estereótipos de masculinidade associados à história e à cultura. O Império Romano traz consigo uma romantização histórica, uma vez que este é frequentemente associado a símbolos de coragem e poder. Este fator pode ter levado à associação entre a masculinidade e a era romana. A interrogação aparenta explorar o estereótipo. Mas porquê o Império Romano? Porque não outro tema histórico, científico ou cultural? A resposta pode constar no fascínio perene que essa civilização exerce sobre a mente dos indivíduos. O Império Romano é um dos capítulos mais ricos e complexos da história humana e existem diversos motivos que explicam o seu persistente apelo, os quais se prossegue a aclarar. Deixa um legado duradouro que influenciou profundamente a civilização ocidental. É possível afirmar que os seus sistemas políticos, legais e arquitetónicos continuam a moldar a modernidade. Assim, a reflexão sobre o Império Romano parece possuir um caráter relevante para a compreensão da nossa própria cultura. A intriga política pode ser comparada a dramas épicos, pois esta era uma arena complexa, inundada de conspirações, traições e rivalidades. O estudo da política romana, no entanto, não proporciona apenas a observação de drama.
Estas dinâmicas oferecem insights à forma como o poder é adquirido, mantido e distribuído. Muitos sistemas políticos da modernidade, como repúblicas e a divisão de poderes, têm as suas raízes intrincadas nas práticas romanas. É ainda notável a sua influência normativa, como por exemplo, a formação do Código Justiniano, que desempenhou um papel crucial na fundamentação das bases do direito civil, que é o sustentáculo de muitos sistemas legais da contemporaneidade. Portanto, compreender a política romana é fundamental para o entendimento da evolução de doutrinas políticas e legais ao longo da história. No entanto, será esse o motivo deste pensamento incessante? Quando pensamos no Império Romano, uma das primeiras coisas que nos vêm à mente são construções grandiosas, como o Coliseu, o Panteão e os aquedutos. Essas estruturas imponentes não apenas demonstram o engenho arquitetónico dos romanos, mas servem também como lembrete da importância das infraestruturas para o desenvolvimento de uma sociedade avançada. Muitas destas técnicas de construção ainda são estudadas e aplicadas hoje em dia, evidenciando a influência do Império Romano na engenharia civil. Além disso, o Império Romano afetou significativamente o desenvolvimento da linguagem. A língua latina, a base do latim vulgar, evoluiu para as línguas românicas, como o espanhol, o italiano, o francês e o português, que são faladas por milhões de indivíduos em todo o mundo. O latim também é uma língua fundamental na terminologia científica, jurídica e religiosa, o que indica uma continuidade como língua franca em diversos campos. Existe ainda uma ligação profunda com a religião. O cristianismo, por exemplo, que se originou na Judeia sob domínio romano e se tornou uma das principais religiões do mundo que continuam a influenciar a ética e os valores de muitos. O papel do Império Romano na disseminação do cristianismo e os eventos cruciais da história cristã, como Édito de Milão em 313 d.C., que tolerou a religião cristã, estão profundamente enraizados na memória cultural e religiosa. A era romana aparenta ser uma fonte inesgotável de interesse, desde a sua literatura, mitologia, arquitetura, política, religião etc. O Império Romano, tão ponderado por muitos, demonstra o seu indelével impacto desde a arte até à cultura. Porém, a brincadeira das redes sociais parece tentar desmantelar estereótipos de género, como o famoso ditado de que “os homens só pensam em desporto e carros”. Ainda assim, quem é que não gostaria de ser como Júlio César, conquistar territórios, enfrentar conspirações e proclamar “veni, vidi, vici” ao realizar o seu check-in em todo o território que ocupa? Talvez a ideia de comandar exércitos ou pousar em togas elegantes em banquetes suntuosos seja o sonho secreto de muitos. Afinal, quem não gostaria de ser um herói épico de sandália e túnica? A era romana era um espetáculo em si mesma. Conspirações, rivalidades, jogos de poder e assassinatos políticos eram o prato do dia na Cidade Eterna. Este pode ser um dos motivos que vem a entreter as massas, pois possui intrigas que poderiam até rivalizar com a série televisiva Game of Thrones. Quem não se interessaria em mergulhar nesse cenário curioso, ainda que somente na sua imaginação? Por fim, não podemos ignorar a lição de história embutida nesta obsessão. O Império Romano é um gigante histórico, cujas pegadas ainda são encontradas na nossa sociedade. Não é apenas sobre Roma antiga, mas sim sobre como essa história nos trouxe até aqui. Então, aqueles que afirmam pensar bastante no Império Romano, talvez estejam a tentar compreender o presente por meio do passado. No final de contas, talvez seja possível encontrar um fundamento benéfico nesta tendência, ao relembrar que independentemente destas obsessões insólitas, a história se encontra sempre à espreita. Apesar da queda do Império Romano, continua a ascender uma certa “romanomania”. Afinal, quem precisa de se concentrar no mundo atual, quando se pode pensar em gladiadores e espadas afiadas? Dito isto, mantenham as togas à mão, pois o Império Romano nunca esteve tão vivo como nos nossos pensamentos.
E pela lavra da grande Mafalda Simão Leal, uma reflexão sobre o que têm em comum uma dançarina de ballet, Nina Sayers, personagem principal do filme Black Swan (Darren Aronofsky, 2010) e um compositor clássico, Gustav von Aschenbach, protagonista do filme Death in Venice (Luchino Visconti, 1971)? Ambas personagens apresentam um certo desequilíbrio entre as duas forças essencias para a inspiração e criação artística: a dionisíaca e a apolínea, de acordo com o filósofo Nietzsche (O Nascimento da Tragédia). Regidos pelo lado apolíneo, através da ordem e da harmonia, reprimem a também necessária “embriaguez dionisíaca” no que concerne grosso modo à excitação dos sentidos, ao irracional e ao caos, o que acaba por limitá-los enquanto artistas. No caso de Nina constitui uma imensa dificuldade mover-se para lá das fronteiras emocionais que a congestionam a fim de perseguir com êxito a interpretação da desafiante Odile, o “Cisne Negro”, em oposição a Odette, o “Cisne Branco”, ambas encontradas, na sua origem, no bailado O Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky, ao qual podemos reportar a sua origem. No binómio Odile – Cisne Negro/ Odette-Cisne Branco encontramos a dualidade dos lados dionisíaco e apolíneo, respectivamente. Nina, vendo-se incapaz de interpretar o “Cisne Negro”, entra numa espiral de obsessão em busca de um ideal de perfeição que resulta na sua autodestruição e consequente loucura. Gustav von Aschenbach vislumbra num rapaz de 14 anos, Tadzio – a quem persegue obsessivamente pelas ruas de Veneza, no auge da embriaguez dionisíaca – a encarnação do Belo Ideal (Platonismo) que o conduz ao seu fatídico destino. A bailarina e o compositor, cada um à sua maneira, sucumbem ao seu lado dionisíaco, que haviam reprimido, e à obsessão que a ambos faz desembocar numa catarse estéril e destrutiva, aliás, ao nível artístico mais estéril para Aschenbach do que para Nina, porque embora através dos meios errados, ela consegue levar a bom termo o seu papel, porém tragicamente. Em Nina desenvolve-se uma fragmentação patológica da identidade: a bailarina alucina com o seu doppelgänger dionísiaco – a sósia que com ela se cruza, o reflexo no espelho que ganha vida, o seu “Cisne Negro”, sensual e transgressor. Assim se vê libertada a sua Odile, dominada há muito por uma Odette perfeccionista, obcecada por uma perfeição inatingível. Aschenbach, abandona-se à fixação por Tadzio, ao desvario, enquanto homem falha em controlar a paixão desenfreada e enquanto artista também. Tadzio não é apenas um desejo erótico, é também a obsessão do artista pelo Belo Ideal, inalcançável à partida. O arrebatamento causado pela Beleza Ideal de Tadzio, a obsessão de que é alvo, poderiam ser uma extraordinária fonte de inspiração para uma composição musical magnífica. Personagens trágicas, perseguindo algo inalcançável ao ser humano, cujo destino, tivessem encontrado o equilíbrio interno e se resignado ao limite humano do Artista, seria diferente. Excelentes filmes, principalmente a obra prima de Visconti. Fica a recomendação.
Romances Longos e o Guia de Portugal
Destacámos, por graça e desporto, quatro dos romances mais longos jamais escritos, pelo critério também de importância e relevância para a comunidade literária local — sendo que certamente existirão obras competitivamente mais extensas mas sem tanta relevância, como parece ser o caso com Marienbad My Love de Mark Leach e The Blah Story de Nigel Tomm — e excluindo, infelizmente, algumas pertencentes a comunidades literárias para nós não familiares, como as da Índia ou da China. Começamos então pelo romance em dez volumes do século XVII Artamène ou Le Grand Cyrus, atribuído a Georges de Scudéry e parcialmente à sua irmã Madeleine, é um romance codificado (roman à clef) que atribui características de algumas personagens políticas e sociais da França de então ao cenário da Pérsia da antiguidade; À La Recherche du Temps Perdu, de Marcel Proust, é a entrada seguramente mais conhecida deste elenco, não exactamente um romance de formação mas sim uma longa experiência narrativa sobre memória e associação; Mission Earth, do autor de ficção científica e messias fundador da famosa igreja da Cientologia L. Ron Hubbard, uma narrativa semi-satírica num futuro próximo que agrega grande parte das fantasias sobre poder, opressão e invasões alienígenas do autor-profeta; e O Homem sem Qualidades, de Robert Musil, romance modernista incompleto em três volumes com reflexões sobre a alienação da vida contemporânea e a tentativa de resgatar o mundo intermédio entre o sujeito e essa vida.
Celebrámos e partilhámos também uma série de lendárias edições da Fundação Gulbenkian concebida e dirigida por Raul Proença na década de vinte do passado século cuja publicação se estendeu pelas seguintes: trata-se de um levantamento demográfico, cultural e com intuitos de divulgação turística, mas de grande qualidade de prosa e erudição, do Portugal da época. Nas palavras do próprio, “simultaneamente um minucioso roteiro do país; um repertório artístico; uma obra de sólida literatura descritiva; uma antologia da nossa literatura pitoresca; um processo, um testemunho dos estrangeiros sobre Portugal; e, enfim, uma bibliografia escolhida do que se tem escrito sobre o nosso país”. Contava com colaborações titânicas de escritores como Miguel Torga, Jorge Dias, Aquilino, Jaime Cortesão, Reynaldo dos Santos, Diogo de Macedo, Teixeira de Pascoais, Vitorino Nemésio, Raul Brandão, Amorim Girão, Ferreira de Castro, Egas Moniz, Aarão de Lacerda, José Rodrigues Migueis, Montalvão Machado, Afonso Lopes Vieira, António Sérgio, entre outros. Apesar de naturalmente muitas das indicações turísticas (pensões, casas de pasto, sítios para alugar automóveis, etc.) estarem natural e pitorescamente desactualizadas, o Guia mantém intacta a sua actualidade em termos de descrição demográfica e cultural, mesmo estando já nós em plena globalização quase avançada. Os volumes encontram-se à venda nas livrarias e no site da Gulbenkian, também disponíveis em formato digital.
Quatro Cronistas Extraordinários e a História do Beijo
Destacámos quatro colunistas portugueses recentes, de renome e de grande qualidade: Vasco Pulido Valente, António Guerreiro, Alberto Gonçalves e Miguel Esteves Cardoso. São pessoas que, nos últimos 50/20 anos, nos habituaram a colunas curtas em periódicos com conteúdos de invulgar densidade e autoridade. O típico articulista português da transição entre século XX e XXI não é particularmente brilhante mas existem, como todos sabemos, excepções notáveis à regra. A qualidade da prosa é admirável em cada um destes rapazes, cada um à sua maneira: Miguel Esteves Cardoso, já antes, durante e depois da sua lendária co-editoria do muito irreverente semanário “O Independente” com Paulo Portas, foi dos cronistas mais de culto em termos de abordagem a uma série de temas de elite cultural de forma crua e descomplexada; Vasco Pulido Valente foi um lendário pessimista particularmente quanto à vida sócio-política portuguesa no pós vinte e cinco de abril, até muito recentemente activo; Alberto Gonçalves é um mais recente observador da vida cultural e política portuguesa cuja causticidade anti-sistema, na tradição de Vasco Pulido Valente, tem causado mossa a muitos; e, por último, António Guerreiro é um crítico de cultura e arte muito capaz e hábil no seu domínio de categorias hoje um pouco esquecidas das escolas marxistas de crítica de arte e não só. No todo, distinguem-se de comentaristas vulgares, debitantes de banalidades, lugares comuns e truísmos — dos quais curiosamente emergiram actualmente um presidente e um primeiro ministro — e todos estes têm uma coisa muito em comum, além da necessária erudição mínima, decerto distante daqueles que fazem do comentário político ou cultural uma estação de paragem para ambições ulteriores: todos possuem um admirável domínio da prosa, uma arte que dá gosto ler. Recomendamos todos e prometemos partilha de conteúdos dos mesmos, todos, sem excepção. Uma última nota: do elenco destes quatro, aquele que despertou reacções mais indignadas e inflamadas foi o cronista muito mais recente Alberto Gonçalves; isto sugere que o tempo que a burguesia intelectual teve disponível para digerir as ferroadas de Esteves Cardoso e de Pulido Valente, cerca de trinta anos ou mais, ainda não sucede com o caso de Gonçalves; ou então sugere simplesmente que estamos a viver num clima intelectual muito mais acefalamente polarizado do que dantes. Qualquer das explicações é por nós desprezada: o cronista tem indubitavelmente qualidade na prosa, reconhecível para qualquer leitor sem palas nos olhos e disponibilidade e curiosidade mental. Convidamos todos a lerem estes quatro excelentes autores.
Depois, voltando a um assunto recente e já abordado, com a memória e os lábios ainda quentes de um episódio público e pertencente à galeria dos pequenos escândalos burgueses contemporâneos — situação aliás ainda em curso e sujeita a notórios interrogatórios policiais e disciplinares de onde emerge que a noção infantil de “consentimento” que muitos invocam tem, em certas situações excepcionais que não são sequer raras, um carácter completamente diluído e não facilmente aferível — vimos hoje, então, tentar complexificar, complementar e tornar a questão mais deliciosa, tão deliciosa como um beijo, com a recomendação de uma excelente obra académica sobre o tópico. Ao contrário do que muitos possam pensar, “o beijo” — acto romântico maioritariamente entre amantes que consiste na junção dos respectivos inícios dos tratos digestivos, nas apuradas palavras de Freud — não é um costume universal e encontra muitas variações culturais e regionais pelo mundo fora, sendo nalgumas culturas, minoritárias, algo completamente estrangeiro; sendo noutras, a maioria também minoritárias, algo admissível entre parentes e amigos próximos, além dos amantes; e que a sua raiz como acto central do amor contemporâneo é ocidental e localiza-se no período da idade média. “O beijo” nunca foi algo de inteiramente universal nem nada objectivamente na sua prática o faria sê-lo necessariamente. A obra é The History of the Kiss!: The Birth of Popular Culture, de Marcel Danesi, e foi concebida, segundo o próprio, a partir de uma pergunta de um dos seus estudantes tão cândida como “Why do we experience such an unhygienic act as beautiful and romantic?”. Deixamos, também, duas críticas à obra, uma do The Guardian, de acesso aberto, e outra de natureza académica, para quem conseguir ter acesso.
Cinema: Nojo, Gays e Terrorismo
Pensámos inicialmente destacar, numa determinada sexta-feira, dia da semana sempre inclinado para o tempo livre nocturno e para o cinema, filmes sobre radicalismo islâmico e terrorismo. Mas para não enjoar, e é um tópico certamente enjoante, mudámos a agulha e entendemos destacar antes quatro filmes sobre nojo, manifesto de variadas maneiras. São eles o lendário Repulsion (1965), de Roman Polanski, estrelando a fantástica Catherine Deneuve num dos seus primeiros papéis de relevo, interpretando uma jovem adulta pueril tentando navegar o mundo das relações humanas com o sexo oposto, sendo que a obrigatoriedade social de tal préstimo só lhe causa um silencioso e tenso sentimento de nojo em relação a todo o corpo masculino e tudo o que é orgânico e carnal; The Aviator (2004), de Martin Scorsese, retratando o mergulho do famoso magnata da aviação e do cinema Howard Hughes no distúrbio da obsessão-compulsão, que se reflecte numa tal fixação doentia por padrões, ordem e pequenos hábitos cujo sub-produto muito nocivo é o absoluto nojo da realidade quando esta não se adequa a esses esquemas mentais; For the Love of Nancy (1994), de Paul Schneider, talvez a película mais objectivamente dedicada ao distúrbio alimentar da anorexia nervosa que, como é típico, desponta numa adolescente do sexo feminino e evolui até estados verdadeiramente dramáticos e quase terminais; e American History X (1998), de Oliver Stone, sobre racismo branco dirigido a negros na América contemporânea, que ilustra com vigor, apesar de com algum dramatismo de segunda categoria, o vivo ódio e palpável nojo que é possível enculturar em pessoas e em pequenas ou grandes comunidades tanto quanto à identidade rácica do próximo como quanto à partilha do espaço da próprio com a mesma, sendo também um nojo do próprio espaço cívico comum e da própria identidade racial em última análise.
Mas noutra série de recomendações, trouxemos tópicos mais “alegres”: quatro excelentes recomendações de cinema gay. Um colega nosso considera que Red, White and Royal Blue (2023), acabado de lançar há menos de um mês e meio, é o melhor filme que viu este ano. Não sabemos julgar essa afirmação, mas concordamos em absoluto que é um excelente filme e por isso a primeira das nossas recomendações de hoje. Neste filme, Alex, o carismático filho de uma ficcional Presidente dos EUA, e Henry, príncipe inglês filho da herdeira do trono de um também fictício Rei Jaime III, que há anos não se suportam, são forçados por razões de estado a fingir ser grandes amigos depois de involuntariamente causarem um muito hilariante incidente diplomático. A convivência forçada desfaz o “orgulho e preconceito” das primeiras impressões e os dois acabam por se apaixonar, começando por viver a sua relação em segredo por receio das implicações políticas da mesma. Por atenção a quem vive em Marte e ainda não sabe o que acontece a seguir, não revelamos o fim, mas podemos dizer que a dada altura alguém sai literalmente de um armário, numa cena absolutamente brilhante. Vejam, que ê imperdível. O segundo filme trata-se de And Then We Danced (2019), uma co-produção georgiana, francesa e sueca realizada por Levan Akin, e passado no universo belo mas claustrofóbico da dança tradicional georgiana e tendo como protagonistas dois dançarinos, Merab (Levan Gelbakhiani) e Irakli (Bachi Valishvili). É um filme de uma beleza sublime, ao mesmo tempo apaixonada e controlada, que vai de momentos de absoluta glória até à tragédia sufocada sem nunca deixar de ser irrestível no enredo e na estética. Sem dúvida, uma das mais belas obras de cinema gay de sempre. Não podíamos recomendá-lo mais entusiasticamente! O terceiro é Firebird (2021), com Tom Prior e Oleg Zagorodnii. Passado na União Soviética nos anos 80, tem por protagonistas dois jovens militares cujo amor proibido e profundo tem por pano de fundo a sociedade comunista da URSS no seu estádio tardio, com a decadência e austeridade sócio-económica, a homofobia endémica e, é preciso dizê-lo, o encanto algo irresistível de um belo sonho condenado a falhar: sem dúvida, um filme imperdível para qualquer amante sério de cinema, mesmo aqueles olimpicamente indiferentes aos aos peitorais de Tom Prior, que serão poucos (?). Por fim, não podemos deixar de recomendar vivamente, não um filme, mas a série Heartstopper (2022-presente), infinitamente terna, de uma beleza primeva e de uma intensidade emocional considerável ainda que suave e reconfortante quanto à esperança, que muitos ainda vão tendo, de que o ser humano possa, afinal, ser possuidor de características redentoras e de qualidades humanas que fazem com valha a pena conhecer a espécie. Esta série retrata um romance de adolescência entre dois rapazes de uma escola inglesa e apresenta um lado poucas vezes descortinado para lá da gritaria de activistas e anti-activistas: a absoluta normalidade humana do amor homosexual e a possibilidade astutamente concebível de este ser uma grande dádiva e não um grande sofrimento. Não deixem de ver!
Por fim, abordamos finalmente, em termos de sugestão de cinema, o tema verdadeiramente mais enjoativo, iniciando com a seguinte introdução. No nosso ver, não existe contexto justificativo possível para actos de terrorismo bárbaros dirigidos a civis no presente estado da civilização global. Não são enquadráveis na normalidade do conflito militar nem podem ser justificados sob qualquer ética de “resistência”, “independência” ou “luta contra a opressão”: são simplesmente acções abjectas que não cabem em parte alguma da nossa cultura. Sublinhamos essa posição com muito ênfase. Em resposta a alguns que resolvem falar da “luta” e da “opressão” dos árabes palestinianos, num momento de resposta militar ao domínio de uma região por um grupo terrorista — que assume frontalmente que o é e quais são os seus objectivos, ao contrário do que alguns agora fingem esquecer — não consideramos apropriado de momento falar em primeiro lugar dessa mesma “luta”, que pode querer dizer muitas coisas — luta contra a existência de um estado israelita, luta pelo direito a um estado próprio, várias vezes rejeitado pelos seus dirigentes, etc. — num cenário de rescaldo de actos completamente abjectos confessados pelos próprios e, principalmente, enquadrados dentro da sua ética aberrante, numa situação militar de guerra civil que dura há mais de 100 anos. Lembramos assim hoje não a “luta da palestina” — que, como já vimos, pode querer dizer muitas coisas, algumas recomendáveis e outras em absoluto não recomendáveis — mas sim nove filmes sobre terrorismo, particularmente de inspiração islâmica, um método de combate que reprovamos em absoluto em qualquer circunstância e que apelidamos de abjecto, monstruoso, covarde e sem qualquer racionalidade nem carácter, próprio de quem se recusa a confrontar o inimigo com honra em cenários de guerra convencional. Aqui estão eles: Munich (2005), de Steven Spielberg, retratando a vingança israelita após o rapto e execução de atletas olímpicos; Zero Dark Thirty (2012), de Catylin Bigelow, ficcionando o trabalho das agências de informação que levou à captura do líder da força terrorista al-qaeda; United 93 (2006), de Paul Greengrass, retratando a luta dos passageiros de um avião sequestrado, infelizmente vitimados; The Reluctant Fundamentalist (2012), baseado no romance de Mohsin Hamid, sobre as aproximações de um muçulmano moderado ao extremismo e suas razões; Belém (2013), de Yuval Adler, sobre a relação entre um agente da força secreta israelita e o seu informante árabe palestiniano; O Atentado (2012), de Ziad Doueir, sobre um cirurgião árabe vivendo em Israel que descobre o envolvimento da sua mulher em actos terroristas; O Paraíso, Agora! (2005), de Hany Abu-Assad, com dois amigos de infância que são recrutados para bombismo suicida; Hotel Mumbai (2018), de Anthony Maras, sobre os ataques terroristas num hotel em Mumbai; e 13 Hours: The Secret Soldiers of Benghazi (2016), de Michael Bay, sobre o cerco e ataque à embaixada dos Estados Unidos na Líbia. São todos excelentes obras de ficção, de variadíssimas proveniências, e que destacam, sob várias e necessárias vertentes, um problema que é um problema real e significativo até mais para as populações do mundo árabe em geral do que para o resto do mundo: o problema do terrorismo de inspiração islâmica.
Submissões
De regresso à plena actividade, com os dois pés e a cabeça já dentro do recém- chegado e bem-vindo quadro outonal que agora nos rodeia, deixamos, como sempre, o convite feito para nos enviarem propostas de artigos em fase já concluída ou enquanto versão incompleta, mero esboço ou mesmo apenas ideia.
Aceitamos todos os temas de relevo, mas podem consultar sugestões de tópicos aqui.
Imagem: retrato de Jeanne Antoinette Poisson, da autoria de François Boucher, 1756, mais conhecida como Madame de Pompadour (1721 – 1764), amante do Rei Luís XV e notória patrona das artes plásticas e decorativas durante o período.