Um evento recente na Universidade Católica, ocorrido a 17 de Janeiro deste ano de 2024, organizado pela Associação Académica do Núcleo de Estudos Políticos, um colóquio exclusivo para estudantes e que requeria inscrição prévia, iniciou-se com a muito noticiada expulsão de um jornalista do Expresso, cujas descrições na comunicação social foram extraordinariamente sensacionalistas, e, mais gravemente, desmentidas pela totalidade dos presentes — vamos repetir, pela totalidade, porque não há uma única pessoa das duzentas presentes no auditório que tenha corroborado aquele relato veiculado pelo jornalista e afiançado pelo jornal. Podem verificar no seguinte link uma série de testemunhos presenciais, na qual não se encontra uma única voz que desminta a unanimidade entre os estudantes sobre o sucedido.
A reacção inicial do orgão de comunicação, assim como um comunicado posterior, contém várias falsidades. Vamos então tentar aqui ensinar ao jornal Expresso como é que se faz uma reportagem sobre o referido evento a partir de todos os dados disponíveis. Ora aqui vai:
Existe um ciclo de encontros com líderes partidários organizado pela Associação Académica do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa. Todos os eventos são interditos aos mídia, para que os convidados e os estudantes se sintam mais à vontade uns com os outros, e tal é atestado não só pela divulgação nas convocatórias, como também pelo facto de o direito de admissão ao evento ser limitado a pré-inscrições. A associação de estudantes não noticia os eventos directamente para as redações mas apenas entre os alunos. O partido do convidado em questão enviou, esse sim, um comunicado para a imprensa indicando que seriam prestadas declarações à entrada apenas, e que, lá dentro, “não seria permitido câmaras“. A comunicação é assim imperfeita, dado que não refere que a presença de jornalistas é totalmente interdita, o que era o caso. De seguida, o repórter desse orgão de comunicação — com toda a probabilidade, Tiago Soares, que elaborou uma posterior reportagem sobre o público do evento — um de vários jornalistas que se encontravam à entrada, chegou à entrada do auditório e, para se introduzir lá dentro, terá dito que “tinha sido convidado“, interpretando erradamente o comunicado dessa forma, iludindo as estudantes que controlavam a admissão. Introduz-se assim ilicitamente na reunião, dado que a mesma requeria inscrição prévia, e uma vez lá começa a fazer o seu trabalho de reportagem; tendo sido isso notado pelos presentes, nomeadamente organizadores e assessores, é chamado à atenção e convidado a sair, por cinco vezes, ao que consecutivamente se recusa, sem qualquer direito de o fazer. Segundo testemunhos, levantou a voz, armou escândalo, fez cenas, e acabou por ser escoltado para fora do auditório aos gritos, tendo o seu material ficado lá dentro aguardando resolução. Não se percebe se existiu de facto alguma “agressão “, se essa mesmo se resume a ter sido forçado a sair, e a alguns empurrões aliás de parte a parte, e se, a existir ofensa física real, porque é que as autoridades policiais não foram imediatamente chamadas pelo ofendido.
É bom começarmos por dizer também que não existe direito à “liberdade de imprensa” aplicável a eventos fechados com lotação limitada e controlada, pois isso interferiria, como é óbvio, com os direitos das outras pessoas a não serem incomodadas pela imprensa dentro de espaços privados. O profissional do Expresso foi aparentemente o único que não terá percebido a interdição, pois ao que tudo indica mais nenhum jornalista estava presente no evento que, como já referimos, requeria inscrição prévia e era limitado aos estudantes. Na peça inicial quer retrata o relato do jornalista e a reacção do jornal, existe uma menção quase inócua à intervenção do segurança e assessor do partido, que se terá dirigido no final ao jornalista, depois da cena de histeria, e perguntado se precisava de mais alguma coisa. Esta é, ao que tudo indica, uma menção completamente escusada e irrelevante, pois é uma reação muito tépida perante a aparente trapalhada que será passado, a ser verdade esta descrição. Por fim, todas as partes envolvidas reagiram, em comunicados, conforme o seu papel: a universidade, a associação e o partido lamentam o ocorrido, mas ninguém afirma que a pessoa foi retirada ilegitimamente; e o Expresso faz o sensacionalismo e a defesa corporativa que se lhe espera.
Num ramo profissional sério, com profissionais e directores sérios, o editor dessa publicação, a ser verdade a descrição, aplicaria uma descasca ao referido jornalista pelo seu comportamento ridículo, por armar cenas sem qualquer direito, e por ter interpretado mal um comunicado. Uma história que se resume a ter sido recebida uma convocatória imperfeita para gravação de declarações à entrada, a um jornalista que entrou no evento alegando que tinha sido convidado, sem estar inscrito e, após ter sido chamado a atenção, e encontrando-se num espaço privado, ao invés de acatar a ordem de saída resolve armar um escândalo apeixeirado, é uma história de mal entendidos que não mereceria o sensacionalismo ridículo com que a destacaram. No presente estado de decaimento do jornalismo, reconhecido pela maior parte das pessoas transversalmente a todas as áreas políticas, temos a reacção que tivemos: uma defesa corporativa, sensacionalista e imune à crítica, sem o mínimo de trabalho, de lógica, de seriedade. Em resumo: tudo isto parece ser uma história de crianças, de birras, de mal-entendidos, de sensacionalismo, de “síndrome de transtorno de extrema-direita”, de algumas mentiras e de defesa corporativa acéfala própria da profissão. Foi noticiada, sumariamente, como uma grave ingerência no direito à liberdade de informação, debatida pelo comentariado tudologista nacional, e, claro está, desde logo esquecida dois dias depois, pois a substância da matéria não tinha qualquer credibilidade.
De resto, esclarecendo também algumas dúvidas ignorantes do público mais politizado e mais polarizado, sempre de dentes afiados contra “fascistas”, “neo-liberais”, “comunistas”, “alta finança judaica”, “bilderberg” ou “gambozinos”, adiantamos também os seguintes pontos.
Primeiro, as universidades não são a rua. São de acesso livre ao público em geral porque assim o entendem, mas nada impede, pelo que sabemos, que qualquer universidade coloque trancas na porta e reserve o direito de admissão aos seus próprios estudantes e funcionários. Segundo, a sala em questão onde se passaram os eventos não é “o espaço universitário“ em sentido lato: é uma sala cujo usufruto estava alocado a alunos, mesmo que essa transmissão seja feita de forma informal pela direcção da mesma: e os direitos e deveres da propriedade são transmitidos como a quem seja cedido um espaço para conferências, festas ou encontro, incluindo, como é óbvio, o direito de admissão, mas excluindo, como é típico do regime formal ou informal de usufruto, o direito de alienação e o de destruição.
Terceiro, efetivamente, quando, por vezes, existem altercações com empurrões e coisas do tipo, é preciso ter muito cuidado com o abuso do conceito de “agressão“. Mas não é necessário cartão profissional de segurança para remover pessoas de um espaço de usufruto privado: se alguém entrar em casa de alguém ilegitimamente, ninguém tem que esperar pela polícia para a remover, embora tal seja aconselhável para que a altercação não desenvolva para outros terrenos mais perigosos. Algumas pistas aqui. Aplica-se, no caso de invasão de espaço privado, o mesmo princípio que rege o direito à legítima defesa de quaquer agressão a um direito: o uso da força proporcional para garantir essa mesma defesa. Tal como alguém pode empurrar alguém que esteja invadir o seu espaço pessoal em termos de proximidade, ou agredir equitativamente alguém que o tenha agredido com o intuito de repeltir essa mesma agressão, pode expulsar alguém que esteja indevidamente na sua propriedade. Não poderá fazer mais do que o estritamente necessário para a protecção do direito sendo, no caso, admissível pegar em alguém e arrastá-lo até ao exterior, sem o macular para além disso. Volte-se no entanto a sublinhar que a chamada das autoridades seria o mais aconselhável.
Em quarto lugar, uma parte significativa desse tal público particularmente politizado e polarizado suporia que os participantes nessa conferência seriam todos apoiantes do convidado do partido em questão. Não há nada a fazer com pessoas que pensam que num evento de um núcleo de estudos políticos de uma universidade, com um líder partidário, participam apenas apoiantes desse partido. Isto é tribalismo puro. Aliás, a referência à militância ou simpatia política ou partidária dos estudantes que retiraram a pessoa ilícita, como feito num outro item noticioso de outro jornal, é absolutamente escusada e lembra tempos salazaristas. Qual a crença religiosa, a origem regional e a filiação clubística das pessoas que expulsaram, já agora, legitimamente, o jornalista em questão, de um evento privado? De que modo é isso relevante? Existe um complot entre esquerdas, direitas ou centros políticos ou, antes, as regras da cidadania aplicam-se de igual modo a todos — e, tal como uma pessoa de esquerda repeleria uma agressão injustificada a uma de direita, aqui, neste caso, simpatizantes da Iniciativa Liberal removeram uma pessoa intrudozida ilicitamente num evento privado.
Em quinto lugar, a ideia de que os políticos não podem participar em eventos privados sem que tal evento seja imediatamente caracterizado como possuindo um “interesse público” e, logo, de algum modo, através de lei geral ou dos códigos relacionados com a liberdade de imprensa e informação, não ser possível impedir a presença de jornalistas, é uma ideia parva, alucinada e distópica: implicaria que qualquer político não pudesse ter jantar privados com militantes, não poder andar na rua sem gente atrás, não poder ter uma conversa privada, etc. Em suma, significaria que não seria possível qualquer tipo de privacidade na vida política dessa pessoa e, quiçá, com um alargar dos critérios bem exagerado, nem sequer vida privada de qualquer tipo.
Em sexto lugar, e chegados aqui às conclusões, ao todo, o caso não é grave: é um caso de invasão de propriedade privada e de recusa a sair de um espaço a partir do momento em que se é reiteradamente avisado, como o que acontece com alguns bêbados em bares. Mas o que é grave é a maneira completamente enviesada, corporativa, amadora, sensacionalista, com que foi noticiado, em completa contradição com todos os testemunhos das pessoas que estiveram presentes, sendo que entre elas não se encontra um único que corrobora a versão atabalhoada e esquisita do relato do jornalista, que aliás parece que foi o único dos colegas não perceber que o evento estava vedado, pois mais nenhum lá se encontrava.
Por último, e escusado será dizer, esta não é uma defesa de ninguém. É um ataque ao Expresso e à tendência acéfala, imune às críticas, e corporativa, de defesa da classe, que pauta o jornalismo actualmente. O jornal acreditou, de forma incompetente, tribalista e acrítica, no relato que o jornalista fez da situação; aceitou-o e regeu a sua posição posterior, aliás provavelmente tomada de modo impulsivo, por esse relato, que contém inegáveis falsidades e que provém, no fundamental, de um mal-entendido que ninguém teve a civilidade de resolver a tempo. Ameaçou vagamente queixa judicial quando sabe perfeitamente que a mesma não irá ocorrer, ou, se ocorrer, não terá qualquer fundamento. Com toda a probabilidade, não emendará a posição, pois isso seria dar “parte fraca” numa guerra imaginária contra a restrição da liberdade de informação, que não se aplica a espaços privados. E esta é a posição de uma indústria fraca, de uma indústria em decadência, que recorre, cada vez mais, a truques manhosos de vendedor de feira para vender o seu peixe.
Por fim, ainda, alguém há de explicar como é que dois badamecos, durante 15 minutos, nessa tarde, numa publicação universitária amadora, conseguiram fazer um resumo da situação que nenhum dos órgãos de comunicação social foi capaz de fazer.