Entramos a referir um dos feitos mais gloriosos, que enobreceram e ilustraram no mundo a Nação Portuguesa. Por morte dElRey D. Fernando de Portugal, entrou nas pertenções da sucessão deste Reino ElRey D. João I de Castela, pelo direito que ficava a sua mulher D. Beatriz, filha do dito Rei defunto. Por esta causa se fez aclamar Rei de Portugal na Cidade de Toledo, onde teve grandes presságios do muito que lhe havia de ser infausta aquela pertenção. Não negavam os Portugueses que haviam jurado a Rainha D. Beatriz, por herdeira e sucessora do Reino; mas era sem dúvida que fora feito este juramento em Cortes, debaixo de certas condições justas e necessárias ao bem-comum, as quais o mesmo Rei jurara, e agora rompia, sem atenção a outro algum respeito mais, que a tomar posse do Reino, fiado no seu poder. Seguiam a mesma voz muitos Portugueses, e muitos deles de primeira qualidade, ou, porque ali se lhe representava mais certa a Justiça, ou os seus interesses mais certos. O restante da Nação (em que entrava a maior parte dos Prelados, grande parte da Nobreza e geralmente o povo todo) não sofria, que ElRey de Castela os quisesse dominar à força de armas, executando (como fazia) horríveis crueldades; Estava por estas causas nomeado Defensor do Reino D. João, Mestre de Avis, Príncipe de Sangue Real, e havia rebatido por muitas vezes com estremado valor as invasões dos Castelhanos, e concorriam nele tantas razões (suposto o estado presente) para a sucessão do Reino, que este consagrado em Cortes, o aclamou Rei em Coimbra, reservando-se, porém, a última decisão de tão grande pleito para o duvidoso tranze de uma batalha. Abalou ele da Vila de Abrantes em demanda dos Castelhanos, que já andavam dentro em Portugal, e sucedeu que pondo-se a cavalo, se lhe quebrou o loro de um dos estribos, e vendo que os circunstantes davam sinais de tristeza, como tendo o sucesso por agouro, lhe disse com igual alegria e prontidão: ‘Calai-vos, que assim como me não aguardam os loros, também me não hão de aguardar os Castelhanos’. Chegou, enfim, este dia memorável e nele já sobre a tarde se avistaram os dois exércitos no campo de Aljubarrota, em uma dilatadíssima planície, sem as vantagens de sítios com que os escritores Castelhanos quiseram desculpar a sua infelicidade e escurecer a nossa glória. Constava o exército inimigo de oito mil cavalos e vinte e três mil Infantes. O nosso de mil e setecentos cavalos, e quatro mil e setecentos Infantes Acompanhava a ElRei de Castela a flor da Nobreza dos Reinos de Castela, Leão e Navarra, e muita da França, Gasconha e Bearne, e muita mais de Portugal, porque os principais senhores Portugueses, e de maior estado seguiam (como já dissemos) aquela facção. Da nossa parte eram poucos os Nobres, e os soldados [também como dissemos] também eram poucos, e sobre poucos, mal disciplinados. Mas tudo supria o valor incomparável do novo Rei Português e do seu braço direito, o grande Condestável Nuno Álvares Pereira. Ambos influiam tão valentes brios, tão generosos alentos no seu campo, que apesar de tanta desigualdade, já nele se esperava com impaciência o sinal de se atacar a batalha. Despregaram-se enfim as bandeiras, soaram temerosamente as trombetas e tambores, e começaram a pelejar as vanguardas dos dois exércitos, em……particular as alas, que estavam um pouco avançadas dos corpos principais. Governava Rui Mendes de Vasconcelos a direita; a esquerda Antão Vaz de Almada; naquela, se achava uma bizarra companhia de luzidos, e valorosos mancebos, a que eles mesmos deram o nome da Ala dos Namorados: ou porque o amor da Pátria os levou à Guerra, ou, porque nas proezas da guerra, esperavam assegurar os prémios do seu amor, por ser uso daquele bom tempo, precederem para o agrado na estimação das Damas Portuguesas, os que sobresaíam nas ações militares. Na ala esquerda iam os soldados estrangeiros que havia no exército, poucos, mas escolhidos; e com ele bom número de Portugueses, para que a emulação fosse incentivo de valor. Dispararam os Castelhanos uns certos tiros [começava então o invento fatal da artilharia] mas fazendo mais estrondo que dano, se engrossou o combate com todo o poder. Feriam-se ao princípio com setas e outras armas de arremesso, mas logo se travaram corpo a corpo com as lanças, e quebradas estas, com espadas e fachas. Em uns e outros eram grandes os estímulos da ira, os desejos de vingança. Os Castelhanos vencidos tantas vezes, pretendiam recobrar o crédito, e pagarem-se das afrontas, e perdas padecidas nas ocasiões precedentes. Os Portugueses tantas vezes invadidos, os queriam acabar por uma vez com os trabalhos da guerra, ou gozarem sem sobressalto os frutos da vitória: aqueles aspiravam a ser senhores; estes escolhiam antes perder a vida, que a liberdade. Com a obstinação dos afetos correspondia a fúria, e veemência dos golpes: o sangue corria em rios, a morte nadava em estragos, a terra parecia fundir-se, o Céu arruinar-se. Carregaram a este tempo os Castelhanos com impressão tão vigorosa, que puseram a nossa vanguarda em confusão. Parecia inclinar-se a vitória para aquela parte. Mas acudindo o nosso Rei e o valoroso Condestável com a reserva, revoltaram os Portugueses sobre. os inimigos com tão furioso ímpeto que, trocada a sorte e declarada a fortuna a nosso favor, foram os Castelhanos inteiramente desfeitos, e derrotados, e postos em precipitada fugida. ElRei de Castela, vendo no destroço dos seus o seu perigo, montou a cavalo e em poucas horas…..se pôs em Santarém, e não se dando ali por seguro, desceu pelo Rio em uma barca e foi refugiar-se na sua Armada, que estava sobre Lisboa, dando em todo o caminho impacientes demonstrações da dor que lhe atravessava o coração. Depois se consolava, dizendo que ‘não devia admirar-se de ser vencido e derrotado por tão poucos Portugueses; porque era impossível que forças algumas bastassem para alcançar vitória de um Pai com seis ou sete mil filhos a seu lado’. Foi grande da parte contrária o número de mortos na batalha e depois dela no alcance O Padre Mariana, que sempre escreveu diminuindo as nossas coisas, diz que passaram de dez mil. Neles entram em grande número os maiores Senhores de Castela, que não referimos por não sair da nossa brevidade, e se acharem nomeados em outras notícias. No Exército Português faltaram cento e cinquenta soldados [coisa prodigiosa], e entre eles Vasco Martins de Melo, que havia prometido antes da batalha pôr as mãos em ElRei de Castela, e não duvidando comprar pelo preço da vida o desempenho da palavra, o seguiu com tanta resolução, que junto dele foi conhecido e morto. Assinalaram-se em memoráveis proezas Rui Mendes de Vasconcelos e o seu esquadrão dos Namorados, verificando-se neles que o amor, ou acha, ou faz valorosos os corações que domina. Antão Vasques da Cunha apresentou a ElRei o estandarte real de Castela.. O Arcebispo de Braga D. Lourenço, que pelo caráter e reputação da sua pessoa acreditava a Justiça das armas Portuguesas, a defendeu agora à espada com ações insígnes. O Grande Condestável, como raio da guerra, discorria a toda a parte e fazendo maior estrago onde achava maior resiliência, conseguiu neste dia imortal nome. ElRei obrando maravilhas, se coroou também de glória imortal, e fez, que agora, chorando, o confesassem Rei de Portugal aqueles mesmos que pouco antes, rindo, lhe chamavam Rei de Avis. Esta foi em summa, a celebradíssima batalha de Aljubarrota, assim chamada por suceder junto a uma povoação deste nome. Foi a maior que viu Hispânia entre Príncipe Cristãos, pelo pouco tempo que durou (não passou de meia hora o maior ardor do conflito), pela desigualdade do poder, pelo grande número de pessoas ilustres que nela morreram, pelos riquíssimos despojos que colheram os Portugueses, em que entrou a recamera dElRei de Castela, por serem os Generais do Exército vencedor dois mancebos de poucos anos (ElRei de vinte e seis, o Condestável de vinte e quatro) contra Capitães muito antigos e experimentados, e sobretudo porque esta batalha foi a última sentença no grande litígio de dois Reinos, que os Castelhanos intentavam dominar, e os Portugueses defender.
In A memorável Batalha de Aljubarrota, in ‘Monarquia Lusitana’, Tomo VIII (Parte I)
Um primeiro conjunto de aspectos que se encontra estabelecido com razoável segurança diz respeito aos objectivos estratégicos dos exércitos em causa e aos itinerários que estes seguiram até se encontrarem no campo de batalha de S. Jorge. Do ponto de vista castelhano, parece claro que D. Juan I abandonara o cerco de Lisboa, em Setembro de 1384, com o firme objetivo de voltar, para uma desforra cruel. Nos meses que se seguiram, o filho do bastardo trastâmara estou a melhor forma de invadir e conquistar Portugal, e – à boa maneira da época – acabou por engendrar um plano de ataque concêntrico ao reino vizinho. Assim, a partir de Abril de 1385, a frota castelhana cercou Lisboa por mar e preparou-se para abastecer as guarnições dos castelos da comarca da Estremadura que tinha voz por D. Beatriz; em Maio, um exército castelhano chefiado por João Rodrigues de Castanheda e composto por 300 ou 400 ‘lanças’ penetrou em Portugal pela Beira, numa incursão devastadora que só terminaria na veiga de Trancoso; pelo seu lado, em inícios de Junho, o próprio Juan I atacou o Alentejo, pondo cerco a Elvas. Face ao infeliz desfecho do segundo e terceiro daqueles movimentos, o monarca castelhano avançou para Ciudad Rodrigo, onde começou a reunir tropas e, na segunda semana de Julho de 1385, entrou em Portugal por Almeida, seguindo depois por Pinhel e Trancoso, onde infletiu a sua marcha, rumando a Celorico da Beira. Aqui redigiria, em 21 de Julho, o seu testamento e realizaria um alto mais demorado, para completar a reunião das tropas que mandara mobilizar. Feito isso, os castelhanos avançaram para Coimbra e Soure. Perante este panorama, o monarca português, que estivera atento à penetração de Juan I pela Comarca de Entre-Tejo-e-Guadiana, cruzou o Tejo e, em finais de Julho, instalou o seu quartel-general em Abrantes, uma posição excelente para poder agir rapidamente e em conformidade com a evolução da marcha da hoste rival. Neste momento, as intenções do exército invasor – com certeza acompanhado de perto por espias e enculcas portuguesas – deveriam afigurar-se já claras aos olhos de D. João I: os castelhanos marchavam em direcção a Lisboa, que tencionavam cercar por terra, efetuando assim um bloqueio total à capital do reino português; para o efeito, era natural que quisessem passar primeiro por Santarém, onde agrupariam as suas forças e de onde partiriam para a concretização do objetivo estratégico da invasão. Ora, D. João I sabia que só muito dificilmente Lisboa resistiria a um novo e prolongado cerco; e, perdida Lisboa, a causa do Mestre de Avis ficaria, ela própria, condenada. Por isso, os portugueses trataram de discutir, em Abrantes, a forma mais aconselhável de contrariar os propósitos castelhanos. Por razões que bem percebemos, hesitou-se muito, chegou-se a admitir um ataque de diversão na Andaluzia, centrado em Sevilha, mas – ao que parece por pressão de Nun’Álvares – acabou por se decidir interceptar a marcha do exército invasor e jogar o tudo por tudo numa batalha decisiva. Esta deveria travar-se num ponto ainda relativamente distante de Lisboa, mas com o inimigo já bem internado no reino, aproveitando assim os embaraços provocados pela sua vasta coluna e pela sua extensa linha de comunicações. Para esse efeito, a hoste portuguesa avançou de Abrantes para Tomar, procurando aproximar-se do adversário. Este, porém, chegado a Soure, evitou a estrada que de Penela e Alvaiázere conduzia à vila do Nabão e optou por rumar por Vila Nova de Anços e Pombal até alcançar – talvez na noite de 12 de Agosto – Leiria. Claramente, Juan I evitava um confronto direto com os Portugueses e chegava-se mais a mais ao litoral, acautelando também, desta forma, a protecção do flanco direito da sua longa coluna de marcha. Em resposta, o exercício português avançou, também ele, para Ocidente, deixando Tomar e seguindo, primeiro, para Ourém e, depois, para Porto de Mós, onde deve ter assentado o respetivo arraial a 12 de Agosto. Dessa forma, neste dia os dois exércitos ficaram apenas separados por cerca de vinte quilómetros itinerários. O confronto parecia, pois, inevitável. Todavia, os castelhanos persistiram na sua intenção de alcançar Santarém sem ter de se expor a um combate decisivo; por isso, evitaram a estrada que, por Porto de Mós, ligava a Santarém, e optaram por rumar de Leiria para Alcobaça. Foi justamente neste troço do trajeto que, no dia 14 de Agosto, D. João I lhes saiu ao encontro, disposto a vencer ou a morrer. Nas suas linhas gerais, as características da posição ocupada pelo exército anglo-português logo pela manhã do dia 14, bem como os desenvolvimentos tácticos que ela provocou até os dois exércitos se encontrarem frente a frente, prontos para combater, encontram-se também estabelecidos com relativa segurança. Assim, a hoste de D. João I barrou o caminho ao adversário numa posição próxima da confluência do rio Lena com a ribeira da Calvaria, na encosta sobranceira ao local onde se viria mais tarde a construir o Mosteiro da Batalha. Esta posição, escolhida por Nun’Álvares e seus auxiliares (nomeadamente ingleses e gascões, alguns deles veteranos da Guerra dos Cem Anos), deve ter sido decidida pelo Condestável no dia anterior, durante uma missão de reconhecimento do terreno e do inimigo que conduziu Nun’Álvares pelos cabeços dos atuais lugares de Cela, Golfeiros, Casal Novo, Casal do Alto e Picoto. Era, na verdade, uma posição excelente, praticamente inexpugnável Situada no extremo norte do dorso de um planalto de poucos quilómetros, relativamente estreito e com orientação NE-SW, tinha todos os condimentos recomendados: era um ponto alto (ao qual apenas se acedia ultrapassando um declive com pouco menos de 10% de inclinação nos últimos 400m), estava bem defendido à frente e dos lados pelas linhas de água que confluíam para o rio Lena, e – ficando de rosto para Leiria – obrigava os adversários que daqui provinham a receber de frente o sol e (segundo hoje se estima) o vento e o pó! Como seria de esperar, a desvantagem não passou despercebida aos batedores do exército castelhano. Por isso, chegada à Jardoeira por volta do meio-dia, a testa da coluna invasora depressa se afastou da estrada romana em que marchava, optando por tornear a posição portuguesa pelo lado do mar, na direcção do Casal do Relvas e da Calvaria. Aqui, com a hoste portuguesa poucos quilómetros à sua mão esquerda, parou para reagrupar e reexaminar a situação. Nestas circunstâncias, os comandos portugueses terão admitido que o adversário – que se interpusera já entre Lisboa e eles – se furtava definitivamente ao combate, ou então que procurava um local mais favorável para desencadear o ataque; decidiram, em todo o caso, mudar de posição, deslocando-se cerca de 2km para sul e, naturalmente, invertendo a sua ordem de batalha para ficar de frente para o inimigo. (…)
In “A Guerra em Portugal nos finais da Idade Média”, de João Gouveia Monteiro.
Penetraram o ânimo d’ElRey de Castela as razões briosas do Conde de Barcelos D. João Afonso [para armar guerra]; e movido da evidência, ou da eficácia, com que falou, resolveu aceitar a batalha que os Portugueses lhe ofereciam: para ella ordenaram seus Capitães o Exército na. forma seguinte: puseram na vanguarda mil e seiscentas lanças, e ahi o Condestável D. Pedro de Aragão, o Alferes-Mor Diogo Furtado de Mendonça com a Bandeira Real, D. Pedro Dias Prior da Ordem da Malta; D. João filho do Infante D. Telo, João Fernandes de Toar, Álvaro Gonçalves .de Sandoval, e outros fidalgos de conhecido valor; o Conde de Barcelos D. João Afonso de Meneses, Gonçalo Vasques de Azevedo, e seu filho Álvaro Gonçalves, Garcia Rodrigues Taborda, Vasco Pires de Camões, João Gonçalves Teixeira, e outros Portugueses dos seus parciais: na. .ala da mão direira setecentas lanças, e ahi D. Pedro Álvares Pereira Prior do Crato, na outra ala da mão esquerda outras tantas lanças, e ahi o Mestre da Ordem de Alcântara: na retaguarda três mil lanças, e ahi ElRey; e a esta proporção das lanças os besteiros, e peões; e. .todos a pé, porque os Portugueses também o estavam, e porque temeram que os botes de suas lanças lhes desordenassem a cavalaria: de fora deixaram dois mil ginetes montados para darem nas costas ao inimigo, e entrarem pela sua carruagem: a gente de serviço, os pagens, o roubo…..que traziam, puseram nas costas do Exército sem guarda, por verem que os Portugueses eram tão poucos, que não havia da sua parte quem os acometesse por aquela; e na frente da vanguarda puseram as dezesseis peças, ou bombardas com balas de pedra; cousa nova em toda a Hispânia ., mas despararam só uma vez ao que entendo ainda por pouco uso daquelle ministério: e nesta ordem clamando todos temerosamente: ‘Castilla, e Santiago’, moveram contra os Portugueses, sendo já sobre as três horas da tarde daquelle dia. Da outra parte, os seus adversários já. .estavam formados havia mais tempo; e pelo meio das suas fileiras o Arcebispo Primaz vestido de todas as armas com a sua Cruz Patriarcal diante, andava animando, e esforçando a todos; e que repetissem muitas vezes compungidos as palavras do sagrado mistério da Encarnação,. .’Et verbum caro factum est’; as quais não entendendo os soldados ordinários, perguntavam, ‘que dizia, ou queria dizer, ó Arcebispo’? Houve quem respondeu com desenfado militar: ‘Quer dizer. Muito caro feito é este’: e passando esta resposta ao comum, diziam animando-se uns. .aos outros; ‘verdade he, mas prazerá a Deus, que o torne hoje de bom mercado’. Também o Condestável D. Nuno Álvares Pereira, andava na sua vanguarda, e alas vendo, e notando se estavam os soldados naquela boa ordem, em que ele os pôs; e dizia para todos: que movessem o. .passo muito devagar, e ao ajuntar com os inimigos, estivessem quedos, e firmassem bem o pé, tendo as lanças direitas, e bem apertadas sobre os braços; louvava-os com semblante alegre, e os esforçava, que não temessem a multidão dos Castelhanos, nem os seus alaridos, porque. .tudo era hum pouco de vento, que dali a breve espaço havia de cessar; que pusessem em Deus a sua esperança, pois ali estavam a seu serviço, defendendo justa demanda pelo Reino, e pela Santa Igreja contra os cismáticos; que a purissima Rainha dos Anjos, cuja festa era naquele…..dia, seria sua advogada; e o glorioso Mártir S. Jorge seu Capitão; que aquele era o bom dia, que haviam desejado para ganharem muita honra; e que nele seus trabalhos haviam de ter fim por meio daquela vitória. ElRey do seu posto também fez a fala seguinte: Amigos, não. .embargando, que nossos inimigos vem contra nós em grande multidão, não temais o espanto que põem, como já vos disse; mas sede fortes, pois que ligeira cousa he ao Senhor Deus subjugar a muitos nas mãos de poucos; e pois eles vem a nós com grande soberba por nos destruir, e. .roubar, e tomar mulheres, e filhos, e quanto nos acharem; e nós por nossa defensa, e do Reino, e de nossa Madre a Santa Igreja pelejamos contra elles, vereis hoje como são vencidos: e porém, em nome de Deus, e da Virgem Maria, cujo dia he amanhã, sejamos todos fortes, e. .prestes para tomar deles vingança, &c.’ A este tempo já os Castelhanos clamando chegavam a tiro de lança, e diante os Portugueses, que tinham a voz de Castella, dos quais o Conde de Barcelos mandou ao Condestável D. Nuno em cerimónia de desafio, huma espada ricamente. .guarnecida, e o Condestável a elle em sinal de que aceitava huma facha de chumbo; e antes de outra cousa os Castelhanos deram fogo às suas bombardas, que despedindo as pedras, mataram dois Escudeiros Portugueses irmãos, e feriram de morte a hum Estrangeiro auxiliar, com. .tanto horror, e assombro dos Portugueses pela novidade, que por muy pouco os da frente não viraram as costas: percebeu o temor dos soldados outro Escudeiro; e desejando ter mão no alvoroço dos companheiros, bradou-lhes; que não temessem, nem tivessem por mau sinal aquele,. .que parecia desastre; mas antes se alegrassem muito, e entendessem por ali, que Deus lhes queria dar a vitória; por quanto havia menos de oito dias ele vira aqueles mesmos dois mortos, matarem a hum Clérigo estando revestido para dizer Missa; e quisera Deus purgar os seus……Fiéis daquelles sacrilégios, para que não tivessem parte na gloriosa vitória, que lhes queria dar: aonde vede quão frágil he o coração humano; porque bastou o acidente referido, por não ser esperado, a fazer desanimar a mayor parte de hum Exército; e no mesmo instante bastou .a restituí-los ao primeiro sossego a simples asseveração de hum homem só; senão quisermos dizer, que obrou Deus por ele. Finalmente chegou a desatar-se a furiosa tormenta; e debaixo do horrisono, e confuso vosear de ambos os campos, fizeram sinal de acometer as trombetas. .Castelhanas. Os Portugueses, esforçando-se quanto podiam, receberam a seus inimigos nas pontas de lanças, já desmontado, e diante da sua bandeira o invencível Condestável D. Nuno, e também desmontado, e posto na retaguarda o Arcebispo Primaz D. Lourenço com ElRey: Gonçalo. .Annes de Castelo de Vide em cumprimento do seu voto, adiantou-se das fileiras a ser o primeiro, que ferisse de lança; mas foy derrubado, e sendo socorrido, desempenhou bem o próprio valor; e parecendo aos Castelhanos, que atropelariam facilmente a vanguarda inimiga, por. .serem as fileiras Portuguesas singelas, e as deles dobradas, e reforçadas, acharam uma tal oposição, que por não poderem vencê-la foram parando uns atrás de outros, em modo, que da sua vanguarda, e alas se fez um corpo, mas tão grosso, e forte, que alfim romperam, e.. .penetraram dentro a pequena, e singela vanguarda dos Portugueses, e ficaram todos misturados, e tão juntos, que não poderam mais servir-se das lanças, pelo que deitando-as de si, vieram às fachas, e às espadas; e começaram a jogar golpes tão cruéis, como he lícito entender. .de duas Nações embravecidas as mais valentes de todo o Mundo; e como os Portugueses eram tão poucos, e mal armados, esteve pouco menos de perdida, e oprimida a sua vanguarda (…).
Autoria desconhecida (será emendado em breve).