O presente ensaio pretende elaborar um estudo acerca do caráter metaliterário da obra O Que Fazem Mulheres, escrita por Camilo Castelo Branco, em 1858. Texto de Alexandra Cleanu. Revisão de João N.S. Almeida. Imagem: Arrufos, Belmiro de Almeida, 1887, Scan: MNBA/Banco Santos catalogue, São Paulo, 2002.
Mais de cem anos antes de William Gass introduzir, no final dos anos sessenta do século XX, o conceito de metaficção, já Camilo tinha aplicado, à semelhança de Machado de Assis, a autorreflexão da literatura nos seus romances. De grosso modo, os investigadores em letras definem a metaliteratura como (1) qualquer texto pertencente a um determinado género literário que trate de textos de outros géneros literários, assim como também (2) as obras de um género literário que se voltem para si mesmas, ou seja, para a essência do género onde elas próprias se inscrevem, refletindo — de forma frequentemente auto-consciente — sobre o próprio processo de escrita e de ficcionalidade.
O subgénero literário do romance aqui sob análise é-nos revelado pelo próprio subtítulo de O que Fazem Mulheres — “Romance filosófico” —, definindo-se pela elaboração de máximas ou de teorias filosóficas dentro de uma história ficcionada, e sendo considerado um dos melhores subgéneros romanescos, uma vez que ilustra a dimensão antropológica e filosófica embebida na vida das personagens. Há que mencionar, também, que Camilo Castelo Branco escreve esta obra como forma de parodiar os romances românticos da altura, caracterizados por enredos repletos de aventuras amorosas convertidas em grandes paixões, que culminavam ora em finais felizes ora na manutenção da fidelidade dos amantes por meio da morte.
Os dois primeiros prólogos
Antes de iniciar a história propriamente dita, o autor introduz três prólogos no romance O Que Fazem Mulheres, sendo que os dois primeiros preparam o horizonte de expetativas do leitor, e testemunham o compromisso do autor perante o mesmo.
Em “A todos os que lerem”, Camilo recorre a uma abundância de frases exclamativas e propõe um conteúdo exagerado, prometendo “uma história que faz arrepiar os cabelos”[1] e o despertar lacrimogéneo de todo o leitor: “Há-de chorar toda a gente, ou eu vou contar aos peixes, como o padre Vieira, este miserando conto”[2].
Já em “A alguns dos que lerem”, prólogo muito mais curto, ocupando apenas uma página, o escritor demarca muito bem as fronteiras entre aquilo que o público deseja e aquilo que o autor irá apresentar. Esta introdução serve também para definir o projeto e a intenção do romance, o porquê da composição da obra. Com efeito, “as excelências da mulher” que Camilo irá esboçar, ou, por outras palavras, “a verdade de Ludovina”, constituem o embrião da novela que o leitor está prestes a ler[3]. Ainda neste prefácio, o autor aproveita para mencionar a condição moral que o irá guiar no relato da história, nomeadamente o compromisso com a veracidade dos factos: «Não será uma ação meritória amoldurar em formas verosímeis a virtude, que os pessimistas acoimam de impraticável neste mundo?»[4].
Como consequência desse compromisso, a partir deste momento a personagem Ludovina e romance tornam-se sinónimos e, de cada vez que o leitor (ou uma das personagens) desconfiar das virtudes de Ludovina, o próprio valor do livro será posto naturalmente em causa. Do mesmo modo, quando Camilo convida o leitor a acreditar nos dotes morais dessa mulher, estará, implicitamente, a pedir que este acredite na veracidade do livro que compôs:
Se me rejeitam a verdade de Ludovina, se me dizem que a este inferno do mundo não podia baixar tal anjo, sabem o que é esse descrer? é apoucamento de alma para idear o belo; é o regelo do coração que rebate as imagens ainda aquecidas do hálito puro da divindade.[5]
Capítulo avulso
“Capítulo avulso” é o terceiro (!) prólogo do romance O Que Fazem Mulheres, e é o único capítulo que aparece duplicado. Atendendo ao desejo de Camilo, expresso no próprio subtítulo — Para ser colocado onde o leitor quiser — o editor imprime o fragmento de texto na sequência deixada pelo autor, nomeadamente, após os dois primeiros prólogos, e duplica o mesmo de forma solta e avulsa para, literalmente, o leitor o colocar onde quiser.
Francisco Nunes é o protagonista da história inicialmente apresentada, e o seu monólogo ocupa a maior parte deste capítulo, sendo o restante reservado aos comentários complementares do próprio autor. Após a leitura íntegra do romance, concluímos que existe uma total ausência desta personagem no decorrer da intriga, dado que o autor resume-se apenas a anunciar a sua morte, no final do livro. Apesar de ser colocado no espaço fora da narrativa acessível ao leitor, o chamado espaço extradiegético, o seu gesto, aparentemente irrisório, irá desencadear o clímax da narrativa que o autor está prestes a contar. Surge então a seguinte problemática: o capítulo disposto assim por Camilo como avulso deve ser considerado autónomo em relação ao todo, ou deve ser visto como um capítulo integrante da narrativa? Ora, na sua relação com o livro propriamente dito, enquanto suporte material, o capítulo afirma-se como semi-independente; apesar de impresso num formato avulso, este aparece igualmente inscrito de forma presa ao todo, ou seja, comprometida com este, segundo a ordem deixada por Camilo.
Quanto aos termos da compreensão e interpretação da narrativa, de igual modo as coisas não são claras: o capítulo avulso mostra-se também como semi-independente. O leitor até pode, na verdade, subverter a leitura e deixar o capítulo avulso para o fim do romance, mas irá confrontar uma lacuna ao chegar ao capítulo VIII. Isso leva-nos a concluir que o pedido de coparticipação que o autor sugere ao leitor através do subtítulo do terceiro prólogo é ilusório, pois se este não for lido até ao capítulo VIII, o leitor não irá perceber quem é este Francisco Nunes e qual a sua relação com a narrativa descritiva, ou seja, a diegese.
Recordemos que as saídas frequentes da personagem Ludovina aos bailes, bem como a carta anónima que defendia a infidelidade desta, começaram a germinar dúvidas no interior de João José Dias, seu esposo, quanto à fidelidade da personagem principal. Desse modo, a conversa deste com os agentes policiais, juntamente com o charuto encontrado no jardim, foram os combustíveis que fatalmente incendiaram a desconfiança de João José Dias. Foi precisamente o charuto, única prova real, palpável, que levou a que esta personagem se convencesse de uma suposta infidelidade por parte da sua amada: «-Eis a prova da minha desonra!»[6]. No final de contas, a traição confirma-se, mas ela é o reflexo da ainda outra personagem, a de Angélica, e não da jovem Ludovina: a ponta queimada do charuto não pertencia realmente ao amante da mulher de João José Dias. Qual será, então, o grau de importância atribuído a esse objeto, atirado aleatoriamente por Francisco Nunes no jardim do barão de Celorico? Muito provavelmente, sem o miserável charuto, João José Dias nunca teria tomado a decisão de procurar e assassinar o suposto amante de Ludovina, o leitor nunca teria tomado conhecimento da infidelidade de D. Angélica e a loucura da figura brasileira teria sido evitada, tal como a reclusão das duas personagens femininas no convento. Por conseguinte, não é Francisco Nunes que intervém ativamente no desenlace da história, mas sim o seu gesto passivo de atirar a ponta do charuto, constituindo a ponte de ligação entre o capítulo avulso ao todo narrativo. Por outras palavras, o todo fica suspenso do avulso, depende dele para se completar ou corrigir, e não se completa ou corrige senão acolhendo-o num lugar algures, no interior de si mesmo.
A propósito disso, lembremos a advertência da coletânea de contos Papéis Avulsos de Machado de Assis, cujo parágrafo inicial afirma: «Avulsos são eles, mas não vieram para aqui como passageiros, que acertam de entrar na mesma hospedaria. São pessoas de uma só família, que a obrigação do pai fez sentar à mesma mesa»[7]. A distinção entre hospedaria e família distingue dois tipos de compilação – a primeira exprime uma junção mais aleatória; a segunda, descrita nas palavras de Abel Barros Baptista como «o regresso deles à origem comum do seu engendramento e por força dessa origem comum»[8]. É claro que em O Que Fazem Mulheres a peça avulsa não se trata de um conjunto de fragmentos autónomos que se compilam num livro, mas antes de um só fragmento que parece estranho ao todo, e que, ainda assim, encontra o seu lugar neste. Vejamos, também, o significado de avulso, segundo Abel Barros Baptista: na opinião do autor de Autobibliografias, o capítulo ou o papel avulso é aquele que foi arrancado ao todo, ou, ainda, «a folha que nunca integrou nenhuma coleção, nenhum conjunto, e que nunca se destinou ao livro»[9]. Será “Capítulo Avulso” um conjunto de anotações destinadas à composição não deste romance, mas de outro? Será este uma parte de texto que integrava já outro romance e que foi arrancada? Ou será um fragmento que sempre foi destinado ao romance em que acabou inserido, e cuja composição foi intencionalmente criada como “estranha” ao todo? Perante a impossibilidade de verificar tal suposição, resta-nos afirmar que, independentemente da origem desse capítulo, Camilo Castelo Branco reforça o caráter de “avulso” ao integrar a ficção de Francisco Nunes no livro sobre Ludovina, e ao atribuir-lhe a função de “motor” diegético, sem o envolver ativamente na intriga.
Cinco páginas que é melhor não se lerem
“Cinco páginas que é melhor não se lerem” é o fragmento de texto que se encontra entre o capítulo XIV e XV de O que dizem mulheres. Ocupando apenas cinco páginas escritas, o autor comenta, recorrendo à sua habitual e deliciosa ironia, uma das leis do Digesto do Imperador Justiniano, e que se refere precisamente à definição de pai, segundo o direito romano: «Pater is est quem nuptiae demonstrant»[10], princípio que define o marido como pai do filho nascido durante o casamento. Nas palavras de Camilo, o estatuto de pai civil define o homem que «tem tudo que é paternal, mas não é pai»[11]. A conclusão apresentada no corolário do fragmento é a seguinte: «Melchior Pimenta era um dos pais presumidos na intenção do Digesto, na lei citada…no cap. Paternidade e filiação legítima”»[12].
Este excerto, que Camilo não intitula de capítulo, é uma excrescência do capítulo anterior, cuja última página revela um diálogo emocionante entre António de Almeida e Ludovina. Temendo que o ferimento causado por João José Dias pudesse ser fatal, o enfermo António de Almeida despede-se da jovem Ludovina com um beijo na face, proferindo: «lembra-te sempre da situação em que te deu o seu último beijo…teu pai»[13]. O dramatismo emergente desse diálogo desperta no leitor a ânsia de um suplemento explicativo, e é assim que Camilo desenvolve cinco páginas de texto onde comenta a legitimidade do pai segundo o código romano, aludindo à ideia que o leitor já tinha assimilado pela última fala de António de Almeida no capítulo XIV — Melchior Pimenta não é o pai biológico de Ludovina, mas Pater est…
Este fragmento de texto, à semelhança de outros que integram o romance, coloca em pausa o fio da história, e surge como efeito de uma interrupção da própria ordem do livro. Por outras palavras, o excerto em causa integra-se numa sucessão de capítulos ao mesmo tempo que resiste ao todo formado por essa sucessão, definindo-se enquanto interrupção cuja relação com a sucessão se torna ambígua. Ademais, ao atribuir-lhe um caráter inútil, através do título — Cinco páginas que é melhor não se lerem — o autor apenas reforça a própria utilidade do capítulo inútil, e que se traduz, precisamente, na sua capacidade de interrupção, que suspende a série e neutraliza o programa.
Não é de ignorar tampouco o formato em que este fragmento nos é apresentado. Segundo o bibliógrafo D. F. McKenzie, «a essência do sentido de uma obra se revela no pormenor da sua apresentação formal»[14]. Debruçando a nossa atenção sobre o livro, observamos que o final do capítulo XIV é seguido por uma página em branco, seguida por uma página que contém apenas o título do fragmento, sendo esta igualmente seguida de outra página em branco. Finalmente, o texto aparece “fechado”/coberto por outra página em branco, que o leitor tem de abrir do lado contrário para revelar a parte escrita. Após a inscrição de cinco páginas escritas, o autor recorre a mais um intervalo de cinco páginas em branco até iniciar o capítulo XV.
Sendo também uma técnica encontrada em Machado de Assis, a interrupção por longos espaços em branco é, na opinião de Abel Barros Baptista, a primeira marca visível da intenção de protagonizar, não só o capítulo, mas também a organização do livro e a ideia de livro. Nesse sentido, afirma-se que o espaço branco intercalar é inseparável do protagonismo do capítulo, e acredita-se que a escrita que desorganiza o livro se dá a ver precisamente no branco da página[15]. Assim, ao sugerir a não-leitura do texto, ao fechá-lo, ao encobri-lo por um monte de folhas em branco, o autor tem esperança de que o generoso conselho desperte a rebeldia do leitor, e o faça ir à procura dos elementos que Camilo pinta como irrisórios, mas que são, efetivamente, pontos chave do seu romance.
Errata pensante
O capítulo XI começa com algumas considerações críticas do autor:
Não sei se rasgue estas cinco páginas de manuscrito. Se alguém me assegura que entre vinte mil leitoras (orça por isto o número das senhoras que compram livros em Portugal), se me asseguram que entre as vinte mil há duas que me entenderam a parlenda, e me ficam desejando muita saúde e graça por servir a Deus, não rasgo as páginas, embora os homens me mandem, em portuguesíssima frase, bugiar. Quando comecei o capítulo, tinha de olho dizer à quarta linha, que, acerca de culpas de mulheres, jamais consulto homens.[16]
À semelhança do que verificámos previamente acerca das técnicas de priorização de certos capítulos, o anúncio da supressão das páginas no capítulo XI funciona como realce das mesmas. O fragmento de texto corre o suposto risco de supressão, segundo o autor, pela perigosidade do conteúdo que desvenda, levando o leitor a uma leitura mais cuidadosa e, possivelmente, repetida, do mesmo. Visto ainda de outro modo, ao apresentar um excerto que aguarda decisão mas que ao mesmo tempo já não a aguarda, a obra revela a precariedade das decisões do autor, bem como uma certa autonomia que o livro exerce sobre si mesmo e sobre o escritor. Ademais, ninguém garante que “as cinco páginas de manuscrito” que o narrador refere coincidem com as três páginas tipográficas que o leitor tem à frente dos olhos, uma vez que haverá sempre cinco, dez, cinquenta páginas anteriores. Essa problemática provém, certamente, da própria constituição do livro como sucessão de segmentos, como sequência de páginas, o que nos leva a concluir que o anúncio da eventual supressão é, ao mesmo tempo e paradoxalmente, a afirmação da impossibilidade de as suprimir, ainda que tenham sido efetivamente suprimidas.
Gostaria de destacar, neste ponto do ensaio, a importância da errata no romance camiliano, um anexo cujo conceito é definido por Abel Barros Baptista como «um plural neutro que designa tanto o conjunto dos erros, como o lugar da respetiva correção»[17]. Ela é, assim, o corpo suplementar do texto, a declaração formal de que o livro provisório aguarda a edição definitiva, em que ainda existe a possibilidade de uma nova errata a tornar provisória. Exemplos de erratas mais heterodoxas neste romance, são, por exemplo, as indicações que o autor deixa aos futuros editores:
Rogo aos escritores contemporâneos, e aos futuros sábios, alinhavadores de remendos alheios, que se escreverem a seguinte máxima:
Há maridos que não desconfiam das mulheres, mas não vão aos bailes para que os outros não desconfiem; escrevam por baixo- O comendador JOÃO JOSÉ DIAS.[18]
Uma das características da errata, segundo Baptista, diz respeito à indicação de um “onde se lê” para apontar um “deve ler-se”, e na diferença entre um e outro mostra-se a distância do livro de si a si mesmo[19]. Torna-se também particularmente importante salientar que O que fazem mulheres apresenta uma série de erratas inscritas no próprio corpo do livro, durante o processo da sua elaboração, quando o escritor podia ainda corrigir, sem deixar vestígios. Esse aspeto leva-nos a sinonimizar a errata no romance camiliano como errata sem erro, ou erro intencional, onde o objetivo primordial torna-se o de transformar o livro noutro livro, sem tocar no que está escrito:
Errata sem erro nem correção, errata que produz apenas o efeito perverso das erratas, a insinuação de uma imperfeição multiplicada por n cópias, mais que isso, errata que afirma a impossibilidade de debelar a imperfeição, que sabota qualquer decisão possível quanto ao erro, que se guarda de apontar o erro para não prejudicar a errância.[20]
Por conseguinte, as páginas iniciais do capítulo XI do livro são simultaneamente provisórias e definitivas. Abel Barros Baptista chama a atenção para a importância do manuscrito na constituição da obra: «o original corrige-se de modo explícito, à semelhança do discurso oral, que também não admite apagamentos, apenas acrescentos corretores»[21]. Por outras palavras, o manuscrito original, antes de autenticar a reprodução, enfrenta a necessidade e a dificuldade de se autenticar a si próprio. A errata revela-se, assim, como a metáfora entre o provisório e o definitivo, sem uma verdadeira solução. Sendo metáfora do livro e do Homem, a errata pensante designa a identidade de ambos, uma vez que esta só se constrói na sucessão das erratas, numa correção progressiva da sua configuração própria. É relevante sublinhar que não se trata aqui do livro perfeito, ou do homo perfectus, pois aí não haveria reedições: «a errata é a metáfora do livro impedido e adiado…o livro que não se apresenta como construção acabada e estável…mas como movimento instável em terreno precário»[22].
Ainda relativamente à errata na ficção camiliana sob análise, observemos o excerto que encabeça o capítulo VIII:
Raivando contra si próprio, o barão de Celorico…O barão de Celorico! Personagem nova no conto? Novo! pois eu não disse já que João José Dias dera cinco mil cruzados às urgências do Estado, e seiscentos mil réis ao oficial maior da secretaria onde se fabricam os barões, e cinquenta moedas ao agente secreto das urgências do Estado e das urgências dos estadistas?
Se não leram isto já, perderam-se na tipografia quatro tiras de composição a mais rendilhada a buril clássico, a mais puritana da linguagem, com recheio de ideias substanciosas e gordura de pensamentos!
Finalizava o capítulo VII…[23]
De facto, nada disso se lê no final do capítulo VII, pelo que o narrador faz um resumo dessas páginas, supostamente perdidas, para que o leitor possa perceber a continuação desse mesmo capítulo. Desse modo, o final do capítulo VII torna-se repetição de si mesmo no mesmo lugar. Uma página e meia depois, o narrador recupera o suposto início do capítulo VIII: «Raivando contra si próprio (cá estamos na cabeça do capítulo), o barão de Celorico…»[24]. De notar, igualmente, que uma das funções decisivas desempenhadas pela errata em causa está no facto do capítulo que o narrador recupera diferir significativamente do livro que se propôs escrever, mostrando, assim, uma certa autonomia da obra.
Suplemento
«O romance já estava acabado»[25] quando Camilo Castelo Branco decide acrescentar ao livro um suplemento de aproximadamente trinta páginas, prolongando a narrativa depois do seu fim anunciado. Neste fragmento, o autor revela as primeiras opiniões sobre a sua obra, os problemas com o seu editor na publicação do romance, dá a conhecer ao leitor o informante que lhe forneceu o contexto da história já contada, e, não em último lugar, mostra o impasse do próprio livro, uma vez que a integridade da sua heroína é posta em causa. A realidade supostamente extradiegética incorpora-se na própria diegese, para a completar. O autor chega ao ponto de incluir um prefácio neste suplemento, como se de ainda outro livro se tratasse.
Numa leitura mais técnica, pode dizer-se que o suplemento se apresenta como uma cláusula após outra cláusula. O texto final desdobra-se para funcionar não apenas como encerramento do livro, mas também como resposta pelo mesmo. Ao confrontar as escolhas da diegese com as representações do mundo, Camilo Castelo Branco visa negar o óbvio, com vista a oferecer uma unidade articulada, de modo a reforçar a dignidade inabalável de Ludovina, levando-nos a acreditar, de início ao fim, não apenas nesta protagonista, mas nele próprio, como escritor, e na sua obra, contra todas as forças que ameaçaram essa dupla virtude. O que observamos no final de O Que Fazem Mulheres é a possibilidade de se projetar retrospetivamente, sobre todo o livro, um fio condutor que lhe determina a unidade, e de o final se destacar como revelação de um princípio exterior de organização: a lei do livro, o livro pelo livro.
A virtude do Livro
No início do ensaio, mencionei que a virtude de Ludovina será proporcional à virtude do próprio livro, e Camilo assim o confirma, logo no início do romance, no segundo prólogo. No final, e contra todas as adversidades, o livro cumpre o seu fim: está acabado e mantém intacta a virtude de Ludovina: «Ludovina continua a ser a flor da criação, o espelho dos infelizes, o elo que prende a criatura ao Criador, o anjo que chora, esperando que os anjos a levem deste desterro»[26]. Note-se que o romance só acaba quando a virtude de Ludovina é seguramente e perpetuamente garantida, quando não há resto de dúvidas acerca da sua total reclusão.
Ao mesmo tempo, o papel do leitor é significativo na constituição do romance. À semelhança de Diderot, Fielding ou Laurence Sterne, o leitor torna-se um dos polos da dialética camiliana[27]. O escritor coloca na narrativa o desvio, o obstáculo personificado na figura do leitor, aquele que não aprecia ou que não acredita no seu trabalho, para afirmar e reforçar o valor do mesmo. Não devemos ignorar a insistência com que o autor, mais do que insinua, impõe ao leitor um juízo, positivo ou negativo, sobre cada uma das personagens: «D Angélica era um assombro de esperteza. A leitora já admirou a eloquência persuasiva com que ela abalou o coração da filha»[28], «A Sr.ª D. Angélica é excelente mãe, no meu conceito; e no conceito de Sr. Melchior Pimenta, é excelente esposa»[29], “As angústias deste homem condenam Ludovina? Não. Ludovina é inocente como os anjos”[30]. Dito por outras palavras, na ficção camiliana, a própria relação autor-leitor é um dos elementos colocados ao serviço da afirmação da obra e do cumprimento intencional do seu criador.
Devemos ter em conta que em qualquer ficção persiste todo um suplemento de máscaras e de disfarces, artifícios que são destinados, por um lado, a suscitar perguntas, e, por outro lado, a evitar que o leitor direcione essas mesmas perguntas ao autor em vez de ler o texto: «Se os espanta as excelências da mulher que vou debuxar, antes de mas impugnarem, afiram-nas pela natureza, interroguem-se, concentrem-se no arcano imaculado da sua consciência»[31]. Do mesmo modo, não podemos esquecer que a figura de autor surge diretamente na narrativa, assumindo o estatuto de ente ficcional, isto é, ficando confinado à esfera da textualidade[32]. Assim, surge a emergência da irresponsabilidade do escritor, ou melhor, da responsabilidade da não-resposta no que respeita o texto em que ele próprio é personagem.
Após relatar um episódio em que Ricardo de Sá aparece desfavorecido, Camilo refere, «Isto, se eu o não contasse, era coisa que morria ignorada, porque o autor embrionário do SÉCULO PERANTE A CIÊNCIA nunca a diria»[33]. Esse aspeto mostra-nos, precisamente, que qualquer ficção, qualquer texto representa a voz de um ponto de vista, de uma única versão, pelo que não pode ser tomada necessariamente como verídica. Segundo o crítico literário e filósofo Jacques Derrida, a chave do texto está naquilo a que este chamou de segredo exemplar, e que se resume ao texto que diz tudo e que, ao mesmo tempo, não deixa de dizer que o segredo ficará para sempre inviolável[34].
Embora o conceito de metaliteratura seja pós-moderno, seria redutor confiná-lo a um espaço temporal limitado, sendo natural que encontremos exemplos da sua mecânica postos em prática em épocas anteriores. O Que Fazem Mulheres é pois um excelente exemplo de uma filosofia literária que reflete sobre si própria, e que se combina com a ironia e o espírito genial de Camilo, desafiando os limites e as convenções da escrita e do género romanesco através de um discurso não linear; e isto em pleno século XIX, evidenciando o vanguardismo do inimitável talento do autor.
Bibliografia
BAPTISTA, Abel Barros. Autobibliografias. Lisboa: Relógio D’Água, 1998. pp- 21-77; 95- 141; 183- 198; 429-469. Impresso.
BRANCO, Camilo Castelo. O Que Fazem Mulheres. Lisboa: Guerra e Paz Editores, S.A., 2016. Impresso.
COELHO, Jacinto do Prado. Introdução ao Estudo da Novela Camiliana. 1º volume. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2001. pp. 92-103. Impresso.
COELHO, Jacinto do Prado. Introdução ao Estudo da Novela Camiliana. 2º volume. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2001. pp. 221-300. Impresso.
Notas
LOPES, Óscar e CARLOS, Luís Adriano. Ensaios Camilianos. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 2007. Impresso.
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BRANCO, Camilo Castelo. O Que Fazem Mulheres. Lisboa: Guerra e Paz Editores, S.A., 2016.Pp.16. Impresso. ↑
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Ibidem.Pp.23. ↑
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Ibidem. Pp.23. ↑
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Ibidem.Pp.23. ↑
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Ibidem.Pp.94. ↑
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BAPTISTA, Abel Barros. Autobibliografias. Lisboa: Relógio D’Água, 1998.Pp.144. Impresso. ↑
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Ibidem.Pp.144. ↑
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Ibidem.Pp.143. ↑
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BRANCO, Camilo Castelo. O Que Fazem Mulheres. Lisboa: Guerra e Paz Editores, S.A., 2016.Pp.153. Impresso. ↑
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Ibidem.Pp.154. ↑
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Ibidem.Pp.157. ↑
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Ibidem.Pp.149. ↑
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BAPTISTA, Abel Barros. Autobibliografias. Lisboa: Relógio D’Água, 1998.Pp.136. Impresso. ↑
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Ibidem.Pp.136. ↑
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BRANCO, Camilo Castelo. O Que Fazem Mulheres. Lisboa: Guerra e Paz Editores, S.A., 2016.Pp.119. Impresso. ↑
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BAPTISTA, Abel Barros. Autobibliografias. Lisboa: Relógio D’Água, 1998.Pp.104. Impresso. ↑
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BRANCO, Camilo Castelo. O Que Fazem Mulheres. Lisboa: Guerra e Paz Editores, S.A., 2016.Pp.78. Impresso. ↑
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BAPTISTA, Abel Barros. Autobibliografias. Lisboa: Relógio D’Água, 1998.Pp.117. Impresso. ↑
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Ibidem.Pp.107. ↑
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Ibidem.Pp.109. ↑
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Ibidem.Pp.141. ↑
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BRANCO, Camilo Castelo. O Que Fazem Mulheres. Lisboa: Guerra e Paz Editores, S.A., 2016.Pp.89. Impresso. ↑
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Ibidem.Pp.90. ↑
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Ibidem.Pp.193. ↑
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Ibidem.Pp.220. ↑
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COELHO, Jacinto do Prado. Introdução ao Estudo da Novela Camiliana. 2º volume. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2001. Pp.276. Impresso. ↑
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BRANCO, Camilo Castelo. O Que Fazem Mulheres. Lisboa: Guerra e Paz Editores, S.A., 2016.Pp.43. Impresso. ↑
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Ibidem.Pp.96. ↑
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Ibidem.Pp.101. ↑
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BRANCO, Camilo Castelo. O Que Fazem Mulheres. Lisboa: Guerra e Paz Editores, S.A., 2016.Pp.93. Impresso. ↑
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COELHO, Jacinto do Prado. Introdução ao Estudo da Novela Camiliana. 2º volume. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2001. Pp.272. Impresso. ↑
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BRANCO, Camilo Castelo. O Que Fazem Mulheres. Lisboa: Guerra e Paz Editores, S.A., 2016.Pp.74. Impresso. ↑
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BAPTISTA, Abel Barros. Autobibliografias. Lisboa: Relógio D’Água, 1998.Pp.193. Impresso. ↑