A Democracia Participativa e a Iniciativa de Cidadania Europeia

Texto de Dora Resende Alves, Docente na Universidade Portucalense Infante D. Henrique, Investigadora do Instituto Jurídico Portucalense, e Mário Simões Barata, Professor Adjunto do Politécnico de Leiria, Investigador do Instituto Jurídico da Portucalense (IJP – IP Leiria). A democracia está presente nos valores da União Europeia enunciados no artigo 2.º do Tratado da União Europeia (TUE). A criação da iniciativa de cidadania europeia (ICE) surge como um dos instrumentos de democracia participativa da União Europeia. Em concreto, o artigo 11.º, n.º 4, do TUE visa reforçar a democracia da União. A democracia participativa convoca a participação dos cidadãos no processo político no sentido de conformar a agenda política e oferece um complemento à democracia representativa na União Europeia. Assim, a ICE institui um procedimento que visa oferecer ao eleitorado um instrumento capaz de mobilizar cidadãos oriundos de diversos Estados-Membros em torno de soluções comuns e abrangentes com vista a influenciar a eventual adoção de atos normativos pelas instâncias da União responsáveis pelo processo legislativo, de modo a resolver os problemas substanciais que os afetam. Por este mecanismo criado tardiamente, se bem que no sentido da integração europeia que considera o cidadão que participa ativamente, os cidadãos europeus têm a possibilidade de apresentar sugestões junto da Comissão Europeia, ainda que sem efeito vinculativo. Dessa forma, entendem os autores ser uma forma de participação dos cidadãos em democracia, um instrumento de exercício da cidadania europeia e participação na formação da vontade coletiva. Destina-se a ICE a sugerir um processo legislativo segundo os trâmites previstos nos Tratados institutivos e de modo previsto em regulamento próprio para este fim. Foi regulamentada em 2011 (Regulamento (UE) n.º 211/2011) que foi substituído em 2019 (pelo Regulamento (UE) n.º 2019/788). Reunindo dois requisitos mínimos em número expressivo de cidadãos da União (um milhão) e de Estados-Membros (sete). De tímido crescimento, viu uma grande evolução ao longo de poucos anos. Tendo motivado poucas situações de recurso ao Tribunal de Justiça da União Europeia, a jurisprudência sublinha que a ICE contribui, assim, para melhorar o funcionamento democrático da União através da participação dos cidadãos na sua vida democrática e política. Em suma, a ICE é um direito político conexo com a cidadania europeia que resulta da evolução e transformação da Comunidade numa União. Nos últimos anos, tem sido aperfeiçoada através do processo legislativo e da interpretação judicial. Finalmente, o exercício deste direito subjetivo público serve para concretizar um valor fundamental das nossas sociedades: a democracia. Revisão de Sílvia P. Diogo.Imagem: plataforma para oradores na colina de Pnyx, Atenas, Grécia, primeira localização conhecida do parlamento de então.

Iniciativa de Cidadania Europeia | Eurocid - Informação europeia ao cidadão [1]

Introdução

A democracia está presente nos valores da União Europeia enunciados no artigo 2.º do Tratado da União Europeia (TUE) e, na construção do Tratado de Lisboa, já foi ultrapassada a crítica sobre o défice de participação democrática no processo de integração. A criação da iniciativa de cidadania europeia (ICE) surge como um dos instrumentos de democracia participativa da União Europeia. Em concreto, o artigo 11.º, n.º 4, do TUE visa reforçar a democracia da União.

A democracia participativa convoca a participação dos cidadãos no processo político no sentido de conformar a agenda política e oferece um complemento à democracia representativa na União Europeia. Assim, a ICE institui um procedimento que visa oferecer ao eleitorado um instrumento capaz de mobilizar cidadãos oriundos de diversos Estados membros em torno de soluções comuns e abrangentes com vista a influenciar a eventual adoção de atos normativos pelas instâncias da União responsáveis pelo processo legislativo, de modo a resolver os problemas substanciais que os afetam.

Por este mecanismo criado tardiamente, se bem que no sentido da integração europeia que considera o cidadão que participa ativamente, os cidadãos europeus têm a possibilidade de apresentar sugestões junto da Comissão Europeia, ainda que sem efeito vinculativo. Dessa forma, entendem os autores ser uma forma de participação dos cidadãos em democracia um instrumento de exercício da cidadania europeia e participação na formação da vontade coletiva.

Destina-se a ICE a sugerir um processo legislativo segundo os trâmites previstos nos Tratados institutivos e de modo previsto em regulamento próprio para este fim. Foi regulamentada em 2011 (Regulamento (UE) n.º 211/2011 de 16 de fevereiro de 2011) que foi substituído em 2019 (pelo Regulamento (UE) n.º 2019/788 do Parlamento Europeu e do Conselho de 17 de abril de 2019). Reunindo dois requisitos mínimos em número expressivo de cidadãos da União (um milhão) e de Estados-Membros (sete). De tímido crescimento, viu uma grande evolução ao longo de poucos anos. Ao todo 91 foram registadas até julho de 2022, das quais 6 foram bem-sucedidas, entendendo-se como recebidas e examinadas pela Comissão Europeia.

Tendo motivado poucas situações de recurso ao Tribunal de Justiça da União Europeia, a jurisprudência sublinha que a ICE contribui, assim, para melhorar o funcionamento democrático da União através da participação dos cidadãos na sua vida democrática e política.

Em suma, a ICE é um direito político conexo com a cidadania europeia que resulta da evolução e transformação da Comunidade numa União. Nos últimos anos, tem sido aperfeiçoada através do processo legislativo e da interpretação judicial. Finalmente, o exercício deste direito subjetivo público serve para concretizar um valor fundamental das nossas sociedades: a democracia. Indica-se que são citados diversos endereços eletrónicos, numa via digital de acesso que faz, ela própria, parte da construção deste instrumento[2].

I. Democracia participativa: definição

No quadro da Ciência Política (CP) não encontramos uma definição de democracia participativa universalmente aceite e subscrita por todos os politólogos. Pelo contrário, existem várias definições que tendem a aproximar a democracia participativa da democracia direta, cujas origens remontam à Grécia Antiga, ou que acentuam o grau de participação dos cidadãos no processo político até àquelas que admitem elementos de democracia representativa na composição do “mix” democrático final.

Este ponto de partida baseia-se nas múltiplas definições que os autores encontram na literatura. Por exemplo, a Oxford Reference entende que a democracia participativa é “a reencarnação do século 20 do antigo ideal grego de governo pelo povo (demos). A democracia participativa é a democracia direta, no sentido de que todos os cidadãos estão ativamente envolvidos em todas as decisões importantes”. Em sentido não muito diferente, Andrew Heywood (2007, p. 74) chama a atenção para o facto da democracia direta ser designada como democracia participativa e esta baseia-se na participação direta, não mediada e contínua dos cidadãos nas tarefas do governo.

Por sua vez, Julia Keugten oferece uma noção do conceito sem qualquer alusão à democracia direta. Para a autora a “democracia participativa se preocupa em garantir que os cidadãos tenham a oportunidade de participar diretamente ou de se envolver nas decisões que afetam suas vidas” (Medina & Institute Montaigne, 2021). No mesmo sentido, as Nações Unidos definem democracia participativa como “um processo que enfatiza a ampla participação dos constituintes na direção e operação dos sistemas políticos. As raízes etimológicas da democracia (grego demos e kratos) implicam que o povo está no poder e, portanto, que todas as democracias são participativas. No entanto, a democracia participativa tende a defender formas mais envolventes de participação do cidadão e maior representação política do que a democracia representativa tradicional” (United Nations Economic and Social Commission for Western Asia).

Por fim, há quem defina a democracia participativa como um “processo de tomada de decisão coletiva que combina elementos da democracia direta e representativa: os cidadãos têm o poder de decidir sobre as propostas de políticas e os políticos assumem o papel de implementação das políticas” (Metropolis).

II. Democracia participativa: vantagens e desvantagens

A CP recorta ainda as vantagens e as desvantagens da democracia participativa.

Os defensores da democracia participativa argumentam que esta forma particular de democracia permite construir uma relação direta com os seus representantes e uma capacidade para influenciar o seu próprio destino/vida. Um bom exemplo reside no instituto do referendo. Os proponentes da democracia participativa não pretendem regressar à democracia direta que existiu na Grécia.

Contudo, olham para a mesma como um modelo que sublinha a participação dos cidadãos no processo político (i.e., na esfera pública) com vista a serem ouvidos e conformar as decisões políticas. Para além destas razões, os subscritores da democracia participativa entendem que a mesma é necessária para colmatar as insuficiências da democracia representativa, na medida em que esta regista níveis de corrupção significativos e uma falta de confiança entre representantes e representados (Schwartz & Galily, 2017, pp. 277–278).

Todavia, a democracia participativa é também alvo de críticas na CP. Nesse sentido, Schawartz e Galily oferecem como exemplo de uma avaliação menos positiva os escritos do politólogo N. Bary que não acredita na capacidade da democracia participativa para solucionar os problemas manifestados pelas democracias representativas, na medida em que seria necessário promover uma descentralização de competências para as unidades políticas de menores dimensões para fomentar os níveis de participação requeridos pela democracia participativa. Para além destas questões, Bary crítica a democracia participativa na medida em que ela nada diz sobre os mecanismos tradicionais de defesa da democracia, designadamente: a separação de poderes, o Estado de Direito; a fiscalização judicial da legislação (Schwartz & Galily, 2017, p. 278).

III Democracia participativa: formas

As várias definições apresentadas conduzem à seguinte conclusão: a democracia participativa pressupõe uma maior participação dos cidadãos na conformação da agenda política e nas decisões tomadas pelo sistema político. Dito de outro modo, a democracia participativa vai para além do mero exercício do direito de sufrágio que é uma forma de participação política.

O objetivo da democracia participativa é, de acordo com Noyberger (2004, pp. 115–121), desenvolver o cidadão através da inculcação de conhecimento e experiência política e, inversamente, reduzir as lacunas existentes entre ele e as instituições governamentais e os formuladores de políticas. Esta maior participação dos cidadãos nos assuntos da polis (i.e., o Estado) poderá revestir várias formas. Assim, a doutrina alude às seguintes configurações: assembleias de cidadãos; os town meetings; os referendos, o orçamento participativo; o gerente comunitário; a iniciativa legislativa.

IV A iniciativa de cidadania europeia: origens, enquadramento normativo; tramitação

No entender da Comissão (2014, p. 2),

A iniciativa de cidadania europeia, introduzida pelo Tratado de Lisboa para incentivar uma maior participação democrática dos cidadãos em assuntos europeus, prevê que um milhão de cidadãos da União Europeia de, pelo menos, sete Estados-Membros da União apelem à Comissão Europeia para apresentar propostas legislativas em domínios em que a UE tem competência para legislar. É o primeiro instrumento da democracia participativa a nível da UE.

  1. Origens

A União Europeia sempre se mostrou sensível às críticas oriundas da esfera política e académica que era pouco democrática ou que havia um défice democrático no seio da mesma. Essa preocupação conduziu a ampliação dos direitos políticos dos cidadãos europeus. Assim, o Tratado de Lisboa, que entrou em vigor em 2009, veio alargar o elenco de direitos políticos dos cidadãos europeus para incluir a chamada iniciativa de cidadania europeia (ICE) que se encontra consagrada no n.º 4 do artigo 11.º do Tratado da União Europeia (TUE) e no artigo 24.º do Tratado sobre o funcionamento da União Europeia (TFUE).

  1. Enquadramento normativo

Conforme afirmam Alves e Silva (Alves & Silva, 2019) a iniciativa de cidadania europeia está regulada em dois preceitos dos Tratados europeus. Assim, o n.º 4 do artigo 11.º do TUE estabelece o seguinte:

Artigo 11.º

1. (…).

2. (…).

3. (…).

4. Um milhão, pelo menos, de cidadãos da União, nacionais de um número significativo de Estados membros, pode tomar a iniciativa de convidar a Comissão Europeia a, no âmbito das suas atribuições, apresentar uma proposta adequada em matérias sobre as quais esses cidadãos considerem necessário um ato jurídico da União para aplicar os Tratados.

Os procedimentos e condições para a apresentação de tal iniciativa são estabelecidas nos termos do primeiro paragrafo do artigo 24.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

Por sua vez, o artigo 24.º do TFUE completa no entendimento de Patrícia Galvão Teles (2012, pp. 264–267) o preceito anterior e determina o seguinte:

O Parlamento Europeu e o Conselho, por meio de regulamentos adotados de acordo com o processo legislativo ordinário, estabelecem as normas processuais e as condições para a apresentação de uma iniciativa de cidadania na aceção do artigo 11.º do Tratado da União Europeia, incluindo o número mínimo de Estados membros de que devem provir os cidadãos que a apresentam.

A leitura conjugada dos dois preceitos que pertencem ao direito originário da UE remete-nos para o plano do direito derivado, ou seja, os regulamentos adotados pelas instituições da União, nomeadamente o Parlamento Europeu (PE) e o Conselho da União Europeia (Conselho), que visam concretizar os preceitos que disciplinam a ICE nos Tratados.

  1. Regulamentos

Em 2011, o PE e o Conselho adotaram o Regulamento n.º 211/2011 (2011, p. 1), que estabelece os procedimentos e as condições para a apresentação de uma iniciativa de cidadania, tal como previsto no artigo 11.º do TUE e no artigo 24.º do TFUE (Alves, 2012, pp. 49-56; Parlamento Europeu & Conselho da União Europeia, 2011, artigo 1.º). O Regulamento n.º 211/2011 entrou em vigor em 2012 (Alves, 2012, pp. 49-56). Contudo, o ato normativo incluía uma disposição relativamente à avaliação da implementação do mesmo (Parlamento Europeu, 2011, artigo 22.º).

Assim, em 2015, a Comissão Europeia aprovou o primeiro relatório referente à implementação da ICE. Posteriormente, em 2018, a Comissão Europeia adotou um segundo relatório relativamente à aplicação da ICE. Estes relatórios estão na base do segundo regulamento referente à ICE. Em 2019, o Parlamento Europeu e o Conselho adotaram o Regulamento n.º 2019/788 (2019, pp. 55–81), cujo objetivo central prendia-se com a simplificação da ICE (Organ & Alemanno, 2021). O novo Regulamento revogou a regulamentação de 2011 e entrou em vigor em 2020 (Parlamento Europeu, 2019, artigo 28.º).

Em termos de tramitação, a ICE comporta seis fases obrigatórias e uma fase facultativa. Em nossa opinião, o ciclo de vida de uma iniciativa atesta a dimensão participativa dos cidadãos europeus.

Em primeiro lugar, a informação oficial fornecida pela UE (União Europeia, a) e doutrina aludem à fase inicial ou começo e que trata dos requisitos aplicáveis aos organizadores e aos subscritores da mesma. Assim, de acordo com o regulamento é necessário formar um comité composto por sete cidadãos que residem em sete Estados-Membros diferentes (Parlamento Europeu, 2019, artigo 5.º). Tal significa que o grupo de cidadãos tem de encontrar pessoas que queiram apoiar a causa/iniciativa em toda a Europa!

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Em segundo lugar, os organizadores devem criar uma conta de organizador com vista a gerir os contactos bem como formalidades com a Comissão ao longo de todo o seu ciclo de vida (Parlamento Europeu, 2019, artigo 6.º). Paralelamente, devem fornecer uma descrição da iniciativa numa das línguas oficiais da UE.

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Em terceiro lugar, a ICE tem que obter o apoio de pelo menos um milhão de assinaturas de um quarto dos Estados-Membros (Parlamento Europeu, 2019, artigo 3.º). Depois da data de lançamento da mesma, os organizadores dispõem de 12 meses para recolher as assinaturas (Parlamento Europeu, 2019, artigo 8.º). Os apoiantes de uma ICE devem preencher uma declaração de apoio específica: em papel ou em linha. Para tanto, os formulários estão disponíveis em todas as línguas oficiais da UE. Esta terceira fase obedece a um determinado calendário. Quando o grupo estiver pronto para avançar, deve fixar uma data de lançamento (nos 6 meses seguintes à data de registo da iniciativa) e comunicá-la à Comissão. A partir desta dispõe depois de 12 meses para recolher o número mínimo de declarações de apoio. Para subscrever uma ICE é necessário ser cidadãos da UE (i.e., ter a nacionalidade de um EM da UE) e ter idade para votar nas eleições para o PE ou mais de 16 anos em alguns países.

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A quarta fase diz respeito à verificação dos apoios, na medida em que os organizadores da ICE devem apresentar as declarações de apoio, em suporte de papel ou em formato eletrónico, às autoridades competentes para verificação e atestação (Parlamento Europeu, 2019, artigo 12.º). Os organizadores dispõem de um prazo de 3 meses para o fazer. Por sua vez, as autoridades dispõem de mais 3 meses para verificar a validade das declarações de apoio (emitindo um certificado para o efeito).

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A quinta fase diz respeito à apresentação da iniciativa. Assim, após a emissão do último certificado de verificação, os promotores têm três meses para apresentar a sua iniciativa à Comissão (Parlamento Europeu, 2019, artigo 13.º).

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A sexta etapa refere-se à resposta que encerra um calendário próprio. No prazo de 1 mês o grupo reunir-se-á com representantes da Comissão para lhes explicar pormenorizadamente as questões levantadas na ICE. No prazo de 3 meses o grupo terá a oportunidade de apresentar a iniciativa numa audição pública no PE. O Parlamento pode debater a iniciativa numa sessão plenária e eventualmente adotar uma resolução relacionada com a ICE. Por último, a Comissão tem um prazo de seis meses para comunicar as medidas que pretende tomar ou justificar a ausência de ação (Parlamento Europeu, 2019, artigo 15.º).

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Para além destas seis fases, a doutrina alude a uma última etapa que pode não ocorrer. Esta fase diz respeito ao ato legislativo propriamente dito. Se a Comissão achar a ICE oportuna, começa a preparar uma proposta formal/início do processo legislativo. Esta passo poderá implicar uma fase preliminar com consultas públicas, avaliações de impacto, etc. Uma vez adotada pela Comissão, a proposta é apresentada pelo grupo de cidadãos ao PE e ao Conselho da UE (ou, em alguns casos, apenas ao Conselho), que têm de a adotar para que se torne lei.

Em suma, uma ICE bem-sucedida resulta nas palavras de Garcia Macho (2013, p. 463) “num convite dirigido à Comissão para submeter uma proposta”.

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V A participação dos cidadãos

O desenho da ICE pretende tornar possível aos cidadãos levar à ponderação do desencadear do processo legislativo (um input) situações que lhes sejam próximas. Assim surgem preocupações[3] que envolvem a proteção dos animais[4], variadas quanto à proteção do meio ambiente[5], a apicultura[6], as migrações[7], preocupações com a saúde pela utilização de produtos tóxicos[8], os direitos dos consumidores[9], ainda numa consciência ecológica preocupações específicas como o acesso à água[10], questões de cidadania[11] e direitos políticos[12] e ligadas à dignidade humana[13]. Entre muitas outras num universo que ascende já a 91 ICE registadas[14] em 113 pedidos de registo, visto que 23 foram recusadas.[15] É certo que estes números evoluem num crescendo já difícil de acompanhar. De notar que não é possível, por vezes, distinguir apenas uma preocupação central, porque temas como a saúde, os direitos dos consumidores, o ambiente, são transversais a muitas delas.

Variados são os desfechos. Até à data, seis (6) iniciativas atingiram com êxito o limiar de um milhão de apoiantes[16] e outras quatro (4) estão em vias de alcançar essa meta. Três (3) iniciativas deram origem a alterações na legislação da UE. Outras ajudaram a orientar as políticas, nomeadamente a nível nacional. A ICE relativa ao acesso à água foi a primeira iniciativa de cidadania europeia a respeitar os requisitos enunciados no regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho sobre a iniciativa de cidadania. Foi a primeira a reunir as condições necessárias a uma resposta da Comissão após ter recebido o apoio de mais de 1,6 milhões de cidadãos e motivou Comunicação da Comissão (2014, p. 2).

Curioso notar que essa proximidade com o cidadão chega cada vez mais às camadas mais jovens da população pela descida da idade necessária para intervir. A idade mínima para apoiar as iniciativas de cidadania europeia corresponde à idade exigida para poder votar nas eleições para o Parlamento Europeu[17]. Já são 5 os países a reduzir essa idade (Estónia, Grécia, Malta, Áustria e, recentemente, Bélgica[18]). Tal medida mostra-se consonante com as preocupações da União com os jovens no Ano Europeu da Juventude para 2022 (União Europeia, b) por proposta da Comissão (2021b) tal como intenção anunciada (Comissão Europeia, 2021a) no Discurso do Estado da União de 15 de setembro de 2021 (“propor que 2022 seja o Ano Europeu da Juventude”).

Celebrada com um dia anual comemorativo desde 2012 – este ano aconteceu no dia 2 de junho de 2022 – conta já com 10 anos em que mais de 16 milhões de cidadãos participaram ativamente.

Dia da ICE 2022
Centro de Informação Europeia Jacques Delors, 2022 [19]

VI Ainda a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia

Em estudo anterior (Alves & Barata, 2022), os autores já se debruçaram sobre a presença da ICE na jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, até ao ano de 2021. Atualizando os dados até 2022, quase nada há a acrescentar ao já comentado: acrescem poucas decisões finais e ainda menor número de situações, isto é, ICE a que se referem, seja do Tribunal de Justiça em situação de recurso, seja do Tribunal Geral. Remete-se maior detalhe para a publicação anterior já mencionada.

Continua ainda válido que todos os litígios se referem ainda ao normativo anterior do Regulamento (UE) n.º 211/2011. Atento que o Regulamento (UE) 2019/788 apenas entrou em vigor em 1 de janeiro de 2020; não se encontram ainda decisões das jurisdições do TJUE relativamente a este normativo.

As questões levadas a juízo são relativas a aspetos de procedimento e fundamentação, colocam em causa o preenchimento de requisitos, mas nunca a pertinência do instrumento da ICE ou a sua importância. Mantêm-se muito reduzidos os novos processos que tocam a ICE (três em 2021 e um em 2022, até à data).

Tal como selecionado no estudo anterior[20], a mais recente decisão do TJUE, de 2022, refere-se ainda à ICE “Minority SafePack — one million signatures for diversity in Europe[21], apresentada à Comissão em 2012[22]. Mantinha-se litígio, nos aspetos previamente salientados, que remonta a 2017 e já atravessou cinco processos[23], entre o Tribunal Geral e o Tribunal de Justiça, sem sucesso. Isto é, o TJUE mantém-se coerente na necessidade de cumprir o rigor dos requisitos estabelecidos no regulamento que enquadra a ICE ainda que num caminho de manter a ICE como um mecanismo de utilização simples, sem validar pretensões de enredar a sua utilização.

Lack of action on fifth-successful European citizens' initiative, Minority  Safepack, would be a letdown for European democracy | Democracy  International e.V. [24]

Conclusões

Enquanto novo instrumento jurídico da União Europeia que permite aos cidadãos uma tomada de posição sobre questões sentidas como relevantes para impulsionar o sistema político, a iniciativa de cidadania europeia (ICE) surge como um veículo democrático que consideramos ser relevante.

Pela sua base extensa de apoio, pela possibilidade de intervenção dos cidadãos, pela acessibilidade digital, pela base de diversidade que revela atentos os requisitos jurídicos, revela-se um mecanismo democrático e uma forma de participação cívica de grande relevo.

Levantando poucas questões na jurisprudência do TJUE e em poucas facetas de discussão jurídica, parece ser um instrumento bem construído e eficaz. Porém, não recebe ainda a atenção suficiente. Mereceria mais divulgação e beneficiaria de uma melhor educação cívica para poder traduzir um sentir político mais extenso e alcançar maior impacto legislativo.

Crê-se ser uma realização jurídica de futuro para a democracia na União Europeia.

Referências

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  1. Imagem em https://eurocid.mne.gov.pt/artigos/iniciativa-de-cidadania-europeia-0 , retirada em 10/03/2023.

  2. Já estudado pela autora (Silva et al., 2019).

  3. A União Europeia mantém atualizada a lista de iniciativas de cidadania europeia para consulta e adesão. Disponível em: https://europa.eu/citizens-initiative/find-initiative_pt.

  4. A iniciativa de cidadania europeia com o título “Acabar com as gaiolas”, registada a 11 de setembro de 2019, com resposta da Comissão Europeia a 30 de junho de 2021. Disponível em: https://europa.eu/citizens-initiative/initiatives/details/2018/000004_en.

  5. Numa “ecocidadania” (Fernandes, 2018, p. 141). Também quanto a esta área preferencial ver (Anastácio & Porto, 2012, p. 762).

  6. A iniciativa de cidadania europeia com o título “Salvemos as abelhas! Proteção da biodiversidade e melhoria dos habitats dos insetos na Europa”, atenta à preocupação que precisamos de insetos para os ecossistemas e para garantir a segurança alimentar. Registo da iniciativa em 27 de maio de 2019. Disponível em: https://europa.eu/citizens-initiative/initiatives/details/2019/000016_pt.

  7. A iniciativa de cidadania europeia com o título “Somos uma Europa acolhedora, deixem-nos ajudar!”, registada pela Comissão em 14.02.2018, atentas as dificuldades dos Estados-Membros em lidar com a migração. Disponível em: https://europa.eu/citizens-initiative/initiatives/details/2018/000001_pt.

  8. A respeito, a iniciativa de cidadania europeia com o título “Proibição do glifosato e proteção das pessoas e do ambiente contra pesticidas tóxicos”, registada a 25 de janeiro de 2017, com resposta da Comissão Europeia a 12 de dezembro de 2017. Disponível em: https://europa.eu/citizens-initiative/initiatives/details/2017/000002_en.

  9. Variadas encerram esta preocupação, como a iniciativa de cidadania europeia com o título “Eat ORIGINal! Unmask your food”. Aceite pela Comissão em 19 de setembro de 2018, acabou por não prosseguir por apoio insuficiente. Disponível em: https://europa.eu/citizens-initiative/initiatives/details/2018/000006_pt.

  10. A respeito, a iniciativa de cidadania europeia “Right2Water” cuja premissa fundamenta-se sobre “A água e o saneamento são um direito humano! A água não é um bem comercial, mas um bem público!”, submetida a 10 de maio de 2012, com resposta da Comissão Europeia a 19 de março de 2014. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX:52014DC0177&qid=1657660432416.

  11. A respeito, a iniciativa de cidadania europeia “Minority SafePack Iniciative”, registada a 3 de abril de 2017 e comunicação da Comissão Europeia a 15 de abril de 2021. Disponível em: http://ec.europa.eu/citizens-initiative/public/initiatives/open/details/2017/000004/en?lg=en.

  12. Uma iniciativa de cidadania europeia com o título “Votantes sem fronteiras – plenos direitos políticos para os cidadãos da EU”, com decisão de registo de 4 de março de 2020 também não prosseguiu por apoio insuficiente. Disponível em: https://europa.eu/citizens-initiative/initiatives/details/2020/000002_pt.

  13. A respeito, a iniciativa de cidadania europeia “One of us”, registada a 11 de maio de 2012, com resposta da Comissão Europeia a 28 de maio de 2014. Disponível em: https://ec.europa.eu/transparency/documents-register/detail?ref=COM(2014)355&lang=pt.

  14. As iniciativas de cidadania podem ser procuradas na página em linha criada para o efeito. Disponível em: https://europa.eu/citizens-initiative/find-initiative_pt.

  15. A página em linha da Iniciativa de Cidadania Europeia apresenta estes dados principais a fim de promover a interação dos cidadãos europeus em temas pertinentes para o desenvolvimento da União. Disponível em: https://europa.eu/citizens-initiative/find-initiative/eci-lifecycle-statistics_pt.

  16. Essas iniciativas podem ser encontradas em: https://europa.eu/citizens-initiative/find-initiative_pt?STATUS%5b0%5d=ANSWERED.

  17. As normas para submissão de iniciativas de cidadania dependem das disposições de cada Estado-Membro. Disponível em: https://europa.eu/citizens-initiative/data-requirements_en.

  18. Disponível em: https://europa.eu/citizens-initiative/data-requirements_en.

  19. Imagem em https://dgpj.justica.gov.pt/Noticias-da-DGPJ/Tribunal-de-Justica-da-UE-garante-continuidade-do-servico, retirada em 10/03/2023.

  20. Conforme mencionado (Alves & Barata, 2022).

  21. A iniciativa de cidadania europeia “Minority SafePack Initiative”. Disponível em: http://ec.europa.eu/citizens-initiative/public/initiatives/open/details/2017/000004/en?lg=en

  22. Com o objeto de melhorar a proteção das pessoas pertencentes a minorias nacionais e linguísticas e a reforçar a diversidade cultural e linguística na União, no objetivo de aprovar uma série de atos legislativos para melhorar a proteção das pessoas pertencentes a minorias nacionais e linguísticas e a reforçar a diversidade cultural e linguística junto com medidas relativas às línguas regionais e minoritárias, à educação e à cultura, à política regional, à participação, à igualdade, ao conteúdo dos meios de comunicação social e ao apoio estatal concedido pelas autoridades regionais.

  23. Os: Acórdão do Tribunal de Justiça, Roménia/Comissão, de 20 de janeiro de 2022, no processo C899/19 P (ECLI:EU:C:2022:41). Em CURIA – Documents (europa.eu); Acórdão do Tribunal Geral, Roménia/Comissão, de 24 de setembro de 2019, no processo T-391/17 (ECLI:EU:T:2019:672). Em CURIA – Documents (europa.eu); Despacho do Tribunal de Justiça, Comitetul cetăţenilor ai iniţiativei cetăţeneşti europene Minority SafePack…/Comissão, de 5 de setembro de 2018, no processo C-717/18 P  (ECLI:EU:C:2018:691). Em  CURIA – Documents (europa.eu) (indeferido); Despacho do Tribunal Geral, Roménia/Comissão, de 13 de novembro de 2017, no processo T-391/17 R  (ECLI:EU:T:2017:799) (medidas provisórias). Em  CURIA – List of results (europa.eu) (indeferido); Acórdão do Tribunal Geral, Minority SafePack – one million signatures for diversity in Europe/Comissão, de 3 de fevereiro de 2017, no processo T646/13 (ECLI:EU:T:2017:59). Em CURIA – Documents (europa.eu)

  24. Imagem em https://www.democracy-international.org/lack-action-fifth-successful-european-citizens-initiative-minority-safepack-would-be-letdown , retirada em 10/03/2023.