Ao contrário do que intuitivamente, e erroneamente, se pode hoje pensar, não existe nenhuma relação necessária entre “universidade” e “transformação social”. Para a persistência dessa confusão na psique colectiva contemporânea contribuem vários factores. Primeiro, a ideia de que ser-se jovem implica pugnar por algum tipo de transformação social; segundo, a ideia de que quem está na universidade são os jovens ou devem ser os jovens e nunca foi de outra maneira: e terceiro, a ideia de que todo o pensamento crítico sobre a realidade deve levar a algum tipo de transformação social. Analisemos, ou recordemos, brevemente, cada uma destas falácias.
A primeira delas reside, como muita gente com conhecimento sabe, outros com conhecimento fingem que esquecem e muitos sem conhecimento não fazem a mínima ideia e pensava que as coisas tinham caído assim do céu, no paradigma hegeliano primeiro, posteriormente marxista, que lê o seguimento da actividade humana como uma narrativa a que chamam de história e cuja teleologia é de um permanente aperfeiçoamento, rumo à perfeita adequação da vida humana e do pensamento humano à natureza e às forças naturais que o dominam, dentro e fora dele, ou seja, invertendo-se o nexo causal e sendo o homem que passa a dominar a natureza. Ora nem sempre se pensou assim. Nem sempre se pensou que o decorrer do tempo se tratava de um processo, muito menos de um processo progressista, e de igual modo também nem sempre se achou que a actividade humana segue algum tipo de narrativa meta-teosófica, postulando uma espécie de desenho inteligente das suas manifestações, que levaria a um mundo futuro progressivamente mais perfeito. Isto encontra-se justificado logicamente nas teses de Hegel, que muito entusiasmaram e muito entusiasmam ainda hoje jovens filósofos, essa raça de gente pontualmente inteligente e muitas vezes completamente alheada da realidade de todos os tipos — da realidade material, da realidade imaterial, da realidade da sua própria imaturidade e dos seus próprios objetivos, da realidade da história específica dessa disciplina, etc. —, entusiasmo esse que se estende para outros autores, como Karl Marx. Este, que deu ainda mais entusiasmos maníacos e eventualmente pestilentos às teses de Hegel, conclui em parte dizendo que se a filosofia até esse ponto tinha descrito o mundo, restava-lhe agora transformá-lo. Parece ser em parte com este mote que o jovem contemporâneo — materialista histórico-dialéctico, progressista, e “activista” — pretende abordar o mundo, começando nos poisos que, actualmente por desígnio social e por planeamento político nesse sentido, têm de receber as suas neuras: o espaço da multi-secular universidade.
A segunda implica que a ideia de universidade é a de uma espécie de escola prática de preparação para a vida adulta e profissional, confusão instalada desde meados do século XIX e que só se agravou durante o benditamente democratizante século XX, estando agora em pleno período de consolidação, sem no entanto deixarem de existir vozes fortes que põe em causa esse modelo (vd. Feijó, Tamen, 2017). Efectivamente existem grandes diferenças entre entrar num estabelecimento de ensino e proporem-nos uma aprendizagem plural, desinteressada e formadora de inteligência a partir de vários saberes diferentes, e entrar num estabelecimento de ensino que mais não é do que uma escola profissional orientada para o seguimento de determinado ofício e dirigida para a aprendizagem das técnicas relacionadas com o mesmo. Ora, por planeamento, interesse e conveniência política, parece que actualmente, depois do alargamento da escolaridade obrigatória até aos doze anos da mesma, número francamente exagerado para as necessidades e interesses de muitos, não é de espantar que estejamos num panorama social presente em que a frequência da universidade é quase expectável, quase forçada, para pessoas jovens com o mínimo de condições materiais para isso, o que evidentemente se trata de uma premissa muito discutível. Mas resumindo: hoje, se “és jovem”, espera-se que vás para a universidade, fazer coisas “de jovem”.
A terceira está mais uma vez ligada ao dito pensamento hegeliano-marxista de que um pensamento crítico sobre a realidade levará necessariamente à transformação da realidade, o que não é necessariamente o caso, e além do mais representa de modo preocupante um comprometimento da acção crítica per se com acções materiais subsequentes, o que pode levar a alguns paradoxos e algumas falácias. Não é certo que, por exemplo, alguém que cogite, como Aristóteles cogitou, que cidadãos da polis como mulheres e escravos não deveriam ter os mesmos direitos, parta imediatamente para a acção que estabeleça o primado material dessa tese, tal como não é certo que alguém que cogite a existência de uma raça sub-humana de gente designada por judeus, como inúmeras criaturas das cúpulas teórico-políticas do nacional-socialismo alemão do passado século fizeram, parta imediatamente para a elaboração de um plano de eficazes câmaras gaseificadas que irão resolver todo o problema. Não é certo que o façam, e muito menos é certo que o devam. Qualquer uma destas cogitações, que teriam consequências a nosso ver aberrantes para a vida civilizada actual, são no entanto positivas por si só: são enunciados lógicos inteligíveis e devem ter lugar no mundo do pensamento humano, aquele mundo em que nada nos deve ser estranho, precisamente também para que possam ser devidamente sujeitos a contraditório e mereçam ou não mereçam lugar no livre mercado das ideias, adoptando termos um pouco toscos. Que o facto de estes enunciados serem encarados instintivamente, e de forma correcta, com um juízo moral muito negativo não deve toldar a nossa apreciação dos princípios aqui expostos: mesmo que um enunciado filosófico que nos pareça deslumbrante e às mil maravilhas, como decerto esses pareceram a Aristóteles ou aos nazis, e mesmo que alguns desses enunciados sejam de facto excelentes ensaios para aplicação no mundo material da vida e das relações humanas, eles estão tolhidos à partida pela maleita do comprometimento com acções subsequentes, e esse não é, ou não deve ser, primeiramente, o compromisso das universidades.
Por vezes podem pessoas legitimamente preguiçosas quanto à prática do exercício físico, do desporto, do “ir ao ginásio”, pensar: mas para que é que aquilo serve? Para que é que eu preciso disto? Estão no direito de pensar assim, mas a verdade é que a musculatura do corpo, e suas outras partes, precisam de se movimentar, estão desenhadas para isso, e o exercício físico representa nessa medida um bem por si só. O mesmo pode ser pensado em relação à actividade livre e descomprometida do pensamento crítico. Ninguém deve estar numa universidade, de modo ideal, para prosseguir determinado objectivo, mas sim de uma forma desinteressada, descomprometida e formativa. O exercício, as musculações e alongamentos que se realizam nesse domínio, são actividades com valor próprio e que, grosso modo, treinam os músculos do pensamento para estarem mais aptos para o resto do mundo e do tempo. Tanto no ginásio — que peculiarmente no português do brasil se chama de academia — como na academia intelectual propriamente dita a actividade do pensamento crítico vale por si só. Ninguém precisa de sair de lá para transformar o mundo, e muito menos estar lá dentro com ideias de transformar o mundo logo ali. Isso tolhe, por muito que possa parecer contra-intuitivo às massas de hoje, a capacidade intelectual livre e descomprometida.
Por isso acontecimentos breves, já bem conhecidos, e sobejamente aborrecidos, nalgumas universidades portuguesas nos últimos dias, encerram em si todas estas confusões. A actividade cívica da política, fundamental e importante, pode e deve ser exercida, mas exercê-la numa universidade é exactamente o mesmo que exercê-la numa padaria ou num talho. A universidade não é um espaço adequado para a efectivação da mesma só porque “tem jovens” lá dentro, nem alguém por “ser jovem” está ou deve estar interessado na actividade política ou na variante frequentemente desbragada da mesma que envolva “transformar o mundo”. As pessoas que estão na universidade, na sua maior parte, ignoram as acções excitadíssimas, dramáticas, e muitas vezes desonestas, interesseiras e comprometidas dos grupelhos de “activistas” que frequentemente dominam as associações de estudantes devido a já terem nascido — é um talento que já vem da grande escola da União Soviética — com grandes dotes para o domínio das burocracias e dos institucionalismos associativos, trâmites que são geralmente indigestos para qualquer pessoa normal. A maior parte dos alunos, investigadores e docentes das universidades não quer saber destas patacoadas e está mais interessado em trabalhar nos seus interesses, nas suas funções, nas suas áreas de estudo. Grande parte da turba “activista”, porém, monopolizando o discurso público, enganando jornalistas ou já colhendo deles a simpatia à partida, estranha imenso que manifestações não autorizadas sejam alvo de acções por parte de directores, que a polícia seja chamada a intervir quando o respeito pelo espaço dos outros, pela propriedade e pelas regras de manifestação em democracia não são cumpridos, ou que estudantes sejam identificados quando agridem outros também por questões de divergência política.
Todo o comportamento das classes burguesas jovens, intoxicadas com os mantras acima referidos, incapazes de conceber o mundo das pessoas normais que não querem saber destas coisas — e nem vale a pena aqui entrar pelo mérito ou demérito das “lutas” correntes, cujos conteúdos são frequentemente autênticas trapalhadas de equívocos, fanatismos e mentiras com pouco ou nada a ver com os interesses de quem quer que seja, e isso explica em geral estas jornadas “das lutas” incluirem geralmente não mais de uma vintena de pobres-diabos — lembra-nos um pouco um dos momentos marcantes da acção política dentro das universidades nas últimas décadas, o famosíssimo e muito romantizado Maio de 68. Pier Paolo Pasolini, cineasta magistral e demoníaco, comunista de gema, respondeu, à pergunta sobre quem apoiava nos confrontos que estavam a ter lugar na universidade em 68, se os estudantes se a polícia, que apoiava sem sombra de dúvida a polícia, pois eram a classe trabalhadora e popular, os filhos de operários; os estudantes representavam a burguesia, os filhos da burguesia, e não a classe pobre e materialmente desfavorecida. Ora aqui está um ponto de vista que convém sempre lembrar quando vemos polícias contra estudantes e vice-versa: os primeiros ganham não muito bem e têm um trabalho ingrato; os segundos basta aparecerem com uma “causa” histérica, desmiolada e sem o mínimo de nexo qualquer e têm logo o babysitting dos jornalistas, dos políticos extremistas e dos néscios em redor. Será boa ideia desmistificar este dualismo e pensar melhor se alguém tem direito de censurar polícias e directorias de faculdade por agirem no estrito cumprimento da lei e se os estudantes que frequentemente a infringem com consciência disso não estão a fazer mais do que um número de circo sensacionalista e mediático para colherem atenções e atingirem assim algum tipo de objectivo, já que pelos meios normais e leais ninguém lhes liga patavina.
O comportamento destes “activistas”, frequentemente, assemelha-se ao dos evangelizadores: querem espalhar a palavra divina da verdade e da vida pelo mundo, querem chatear toda a gente, bater à porta até se converterem à sua religião, única e verdadeira palavra. Por razões de contingência histórico-social, acontece que temos neste momento numerosos jovens deste tipo, e jovens a mais em geral, nas universidades, pessoas cujos talentos seriam provavelmente melhor aplicados noutros sítios já que não se vislumbra qualquer tipo de vontade de exercer o sentido crítico e de formação do pensamento que é suposto suceder nas universidades. Portanto fica o conselho, mais uma vez: façam política e religião lá fora, e deixem as pobres das pessoas que estudam e trabalham nas universidades em paz, porque estas têm mais que fazer que aturar miúdos ignorantes, mimados e completamente equivocados quanto ao que se pratica nas universidades e quanto ao lugar das mesmas. Aproveitem e levem os jornalista convosco. Aluguem um pavilhão no Beato ou na Campanhã e façam aí os vossos fantásticos comícios, não se esquecendo de abastecer o stock de cervejas e substâncias ilícitas pois a luta não se faz sem a gasolina dos torpes. Desapareçam e vão pela sombra, ou então continuem a fazer figuras de ursos a que ninguém liga absolutamente nenhuma. Cumprimentos a todos e boas “lutas”.